A polémica paira sobre a produção fotográfica da edição de outubro da Vogue americana que ilustra a entrevista com a primeira-dama da Ucrânia, Olena Zelenska, captada ao lado do marido, Volodymyr Zelensky, pela lente de Annie Leibovitz. O texto centra-se na guerra na Ucrânia, e no papel que a primeira-dama pode ter no simbolismo diplomático de um conflito como este, mas desenha a linha vermelha do nosso pudor: será certo mostrar o casal Zelensky quando o seu país está em chamas e desfeito pela guerra? É uma forma de dar visibilidade aos mais frágeis e exibir a injustiça da guerra, mostrar como o Ocidente está do lado da paz e da soberania? Ou uma manobra oportunista para vender revistas explorando a imagem de um casal bem-parecido e que veio do meio do entretenimento para a política, com algum talento natural para a telegenia e as redes sociais? Diria que mais do que aparecer, é precisar de aparecer num título icónico da cultura ocidental. É prender as atenções da maioria para falar da guerra absurda que vivem no seu quintal. E porque não na capa de uma Vogue?
Trabalhei 15 anos na edição portuguesa da Vogue, a grande referência das revistas de Moda, colaboro com a Máxima desde os anos 90, e conheço as revistas femininas por dentro – e os preconceitos que sempre as rodearam, vindos dos meios mais clássicos e conservadores, os ditos "sérios". Filha dos anos 70 e da revolução, quando cheguei às redações, e comecei na TSF, éramos uma primeira geração no jornalismo sem o peso do elitismo, do social ao intelectual, o importante para nós era o mundo que queríamos, mais justo e mais belo quanto possível, e mostrar os talentos que conspiram a seu favor. Mas a geração anterior ainda levantava um sobrolho, como se escrever nas revistas não fosse bem jornalismo, fossem devaneios inconsequentes de raparigas – Moda, Artes e lifestyle, as cintilações do mundo.
Ninguém parece lembrar-se que Virginia Woolf, Aldous Huxley ou Truman Capote, por exemplo, escreveram regularmente na Vogue; também Richard Burton, Federico Fellini ou Marcello Mastroianni fizeram por lá as suas perninhas; ou que Joan Didion foi junior editor da Vogue nos anos 60. Não vale a pena nomear os fotógrafos superlativos, porque esses são mais óbvios e mais do que muitos. Volto a uma frase de Oscar Wilde que não tatuo apenas porque não preciso: "Só as pessoas fúteis consideram fúteis os temas fúteis."
Joan Didion, 1968
Foto: Julian Wasser/Netflix
A capa com Olena Zelenska é tudo isto, como sempre foi. É a Vogue americana ser a Vogue no país dos audazes, ou seja, a mostrar os heróis do momento, da forma mais bonita possível. E Annie Leibovitz sempre assinou esta ideia por baixo: ela fotografa celebridades em grandes cenários e com grande circunstância, mas por detrás destes retratos estão as causas e as lutas todas que carregam. Recordemo-nos que Leibovitz foi lançada pela famosa fotografia que apanhou John Lennon e Yoko Ono na cama para a icónica capa da Rolling Stone. Assim retratava um casal nos seus 44 anos, que pensava ir viver um sonho de mudança no seu país e acordou no meio de um pesadelo. Porque não contar a sua história ao mundo? Se a revista fosse a Time já podia ser?
Nesta fase de confusão moralista, que continua a atropelar a ética, e passados tantos séculos sobre os pilares que lhe foram erigidos, temos os conservadores por um lado – que horror, glamourizar a guerra! – e os extremistas das causas por outro – que horror, continuamos com o discurso da heteronormatividade tóxica! – e no meio da barulheira ninguém pensa no papel diplomático, à falta de outros, de Olena. Quando, por exemplo, viaja para Washington, numa visita não oficial, para se encontrar com o presidente Biden, a sua mulher, Jill Biden, e o secretário de Estado Antony Blinken, ou quando se dirige ao Congresso. Como primeira-dama, mas também como "mãe e filha", é inequívoco o forte simbolismo destas imagens. E, como se costuma dizer, melhor falarem mal de nós do que não falarem de todo. Apesar do cansaço mediático dos nossos tempos, é mais uma oportunidade para o mundo se curvar à dor da Ucrânia e chorar com ela.
Claro que as imagens têm glamour, mas o que criou celeuma foi o facto do casal Zelensky ser fotografado junto à chapa amolgada de um avião Antonov ou de uma pilha de sacos brancos cheios de areia, como os que se usam nas trincheiras de guerra. Como se isso fosse minorar o sofrimento que os rodeia. Podemos discutir o gosto que, na maior parte dos casos se lamenta mais do que se discute, mas não podemos dizer que estranhamos os cenários épicos, muitas vezes apocalípticos, a que Annie Leibovitz nos habituou nas suas produções para a Vogue e a Vanity Fair originais, as americanas. Ela quis retratar a resiliência e a esperança.
Quando julgávamos derrubadas quase todas as barreiras clássicas da incensada elegância e do chique ditados por Paris no século XX, a Moda continua a sacudir as mentalidades, na aparência de ser só aparência. Esse é um dos seus maiores talentos, dos mais generosos e fascinantes. Mais do que roupas bonitas, através da Moda, as cabeças modernas do design puderam sempre vestir novas formas de ver o mundo. As causas que estão agora no centro da mesa social, e até já ganharam direito a debate formal na praça pública e, por isso, conquistaram algum poder informal nas conversas entre amigos, coisa que quase nunca acontecia, passaram primeiro pela Moda. Pela sua capacidade de ver a grande fotografia nos pequenos detalhes e porque, na verdade, por detrás de uma grande turba de fascinados que só querem ser mais belos, ou mostrar status através da sua imagem, está a meia dúzia que pensa a Moda como conteúdo. E estes são os principais.
A jornalista Rachel Donadio, que fez a entrevista a Zelenska, depois de descrever a primeira-dama e o seu apoio a várias causas, das crianças à saúde mental e aos artistas da sua terra natal, escreve: "É estranho falar da exterminação ucraniana e da Moda ucraniana na mesma conversa, e no entanto esta é a dissonância cognitiva da Ucrânia de hoje, onde designers e profissionais de todos os tipos estão mobilizados, em casa ou no estrangeiro, para apoiar o seu país. Essa dissonância cognitiva é especialmente verdadeira em Kiev, onde se pode beber um matcha num café e depois conduzir uma hora até Bucha para visitar uma vala comum."
Para lá do fogo-fátuo, ainda que legítimo, da vaidade e da badalação, a Moda sempre usou a atenção que estes colhem para falar da vida e da civilização. A Moda fez uma boa parte do percurso do empoderamento feminino, e dos seus vários corpos, dos atléticos aos esguios e aos roliços; trilhou o caminho da igualdade de género e da inclusividade, aliás, muitos dos seus criativos são não binários ou aquilo que quiserem ser; e depois a raça, claro, que a Vogue americana sempre trouxe para a capa, e que a edição inglesa segue agora, às vezes de forma até um pouco obsessiva, desde que é dirigida por um homem negro e gay, Edward Enninful. Tirando a ditadura do bom aspecto e da magreza, que mata todos os hidratos de carbono à refeição, a Moda é muito livre de pensamento, é artista. Se a Vogue italiana sempre foi a mais ousada nas capas e nas produções – quem não se lembra das páginas e páginas de fotografia assinadas por Steven Meisel, as modelos arrastadas num manicómio, como viúvas sicilianas e em cenários de guerra? – da Vogue americana sempre fascinaram as capas icónicas, que elevam os seus protagonistas a estrelas planetárias, como na máquina de sonhos que é Hollywood.
Nos anos da Segunda Grande Guerra, a modelo tornada fotógrafa, a fascinante Lee Miller, foi correspondente para a Vogue e cobriu a libertação de Paris ou o Blitz de Londres, e a miséria nos campos de concentração de Buchenwald e Dachau. Não só uma mulher bonita pode ser interessante como uma revista pode falar de temas fundamentais. Mais do que uma imagem poderosa de fragilidade, esta capa é uma lição sobre as ténues linhas do pudor com que a Moda sempre gostou de brincar, cria uma grande ilusão para falar muito a sério.
Depois de partilharem com a Máxima os testemunhos do segundo dia da guerra na Ucrânia, Dariia, Anastasia e Sasha dão-nos agora conta do seu paradeiro. Sasha continua abrigada, Dariia conseguiu fugir e Anastasia juntou-se à resistência.
Analista de política internacional, é um dos rostos que mais se tem destacado na análise à guerra da Ucrânia. No seu novo livro, "Mulheres na Guerra", resgata as histórias das muitas mulheres esquecidas pelas narrativas oficiais, provando que o lugar delas é onde quiserem estar. Seja num estúdio de televisão ou na frente de combate.
A mulher de Volodymyr Zelensky não deixa margem para dúvidas que não quer estar à margem do que se passa no país. "A nossa resistência tem um rosto particularmente feminino."