
Não é nada de novo; sabe-se que o excesso de proximidade, a partilha constante de rotinas, trazem desgaste aos próprios e consequentemente tensão às relações amorosas. Quem é que se quer deparar de cinco em cinco minutos com o companheiro/a em qualquer divisão da casa? É perfeitamente natural que as idiossincrasias do outro, que antes pareciam tão fofas (por exemplo, aquele barulhinho engraçado que o amor da vida faz desde o início da relação, quando coça a garganta por dentro), se revelem os mais detestáveis sons do demónio a atiçar as labaredas do inferno dentro da nossa cabeça. Para os casais com os filhos em casa, o cenário não parece mais animador: deixam de ter qualquer espécie de descanso. Bem tentam, em vão, dar conta do recado. Basta pensar no esforço que fazem aqueles que se encontram em teletrabalho, ao tentar manter um olho no computador e outro nos dois ou mais filhos que não conseguem sossegar mais de 15 minutos. É claro que ao fim de umas horas, os pais não têm outra hipótese se não deixá-los como selvagens à solta pelo apartamento de 60m² (com sorte, com uma varanda ou uma marquise, que têm de interditar, não vá dar aos pequenos ideias de pára-quedistas durante uma call com o chefe).
Quando os miúdos finalmente adormecem, depois de terem virado do avesso a sala, o quarto, e as casas de banho, e de terem berrado durante horas por frustração de terem ali os pais todo o dia sem receberem nenhuma atenção, os casais só pensam em dormir ou tentar alienar-se ao máximo da realidade e do outro através de algum programa de junk tv, ou em aquecer os olhos no micro-ondas das redes sociais.
Viver com alguém é bastante difícil; imagine-se agora ter de partilhar na íntegra todas as horas do dia com um companheiro ou companheira que também se encontra em teletrabalho. Obviamente não há desejo nem paz que resista. A casa torna-se uma jaula onde os humanos ganham a noção de que são animais que se atacam e que, apesar da vida em comunidade poder ser boa, todos precisam de um espaço só seu. Penso que a frase "o inferno são os outros", récita de uma personagem da peça de teatro Huis clos (em português: Entre Quatro Paredes), de Jean-Paul Sartre, escrita em 1945, é bastante apropriada para os tempos que estamos a viver. No texto de Sartre, duas mulheres e um homem encontram-se no inferno, condenados a permanecer para sempre juntos, entre quatro paredes. Ao aprisioná-las no inferno, Sartre faz com que cada uma das figuras aja como carrasco das outras duas. A célebre expressão quer mostrar também que o outro (o carrasco que habita connosco), na verdade, é fundamental para o conhecimento de si próprio, mesmo que as descobertas que vamos fazendo neste período de transição não sejam animadoras.
*A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990.

Atualidade, Discussão, Crónica, Opinião, Teletrabalho, Cláudia Lucas Chéu, A Flor Do Cacto
Empregar o choro
"Seria ali o melhor destino para chorar. Não há nenhum artigo no contrato que impossibilite chorar no local de trabalho. Tal como não existe nenhuma cláusula que impossibilite de rir".
Deus veste Primark
"Eu estava à bancada da cozinha a tirar um café na máquina do anúncio do George Clooney — esse Deus para muitas pessoas, mas não para mim — e senti a presença d’Ele nas minhas costas."
Uma primeira-ministra tem de ser recatada e do lar?
"Nos últimos dias, depois de terem sido publicados vídeos nas redes sociais onde se encontra a dançar numa festa privada entre amigos, Sanna Marin encontra-se novamente sob os holofotes do escárnio e do preconceito."