Opinião

Uma primeira-ministra tem de ser recatada e do lar?

"Nos últimos dias, depois de terem sido publicados vídeos nas redes sociais onde se encontra a dançar numa festa privada entre amigos, Sanna Marin encontra-se novamente sob os holofotes do escárnio e do preconceito."

Foto: Getty Images
20 de agosto de 2022 Cláudia Lucas Chéu

Não é a primeira vez que Sanna Marin, a primeira-ministra da Finlândia, é criticada por se divertir. Em Dezembro de 2021 recebeu inúmeras críticas por ter ido a uma discoteca em Helsínquia, depois de ter tido um contacto de risco com uma pessoa infectada pela COVID-19. Marin foi então fortemente criticada e acabou por pedir desculpas publicamente, assumindo um comportamento descuidado. Nos últimos dias, depois de terem sido publicados vídeos nas redes sociais onde se encontra a dançar numa festa privada entre amigos, Sanna Marin encontra-se novamente sob os holofotes do escárnio e do preconceito.

A opinião pública critica-a por se ter permitido filmar a dançar e a cantar, e a oposição partidária exige um teste para comprovar se a primeira-ministra não estaria sob o efeito de estupefacientes. Ora bem, eu fui ver os vídeos e até me senti uma quadrilheira de bairro porque, verdade seja dita, são vídeos privados numa festa privada entre amigos (com alguém menos amigo de Marin que decidiu publicar os vídeos, certamente ciente da celeuma que lhe iria causar) e, ainda assim, ninguém tem obviamente nada que ver com isso. O que uma primeira-ministra faz na sua esfera privada, dançar e cantar e eventualmente beber copos ou o que mais lhe aprouver, só a si diz respeito, a não ser que seja algo criminoso. O problema é que neste caso o essencial da polémica ultrapassa a linha do privado e do público da mais alta figura política actual da Finlândia.

Temos de colocar em causa, porque é óbvio, o facto de se tratar de uma mulher. Só para dar um exemplo: há uns meses assistimos às imagens do nosso Presidente da República em calções de banho na praia em Copacabana a conversar com duas raparigas que se encontravam no areal. Na altura perguntei-me se tal seria possível a uma Presidenta da República: deixar-se filmar em biquíni na praia enquanto mete conversa com dois rapazes atraentes que se encontram no areal. Estou certa de que seria sujeita a fortes críticas: pelo facto de se deixar filmar em trajes menores e por ousar falar com rapazes nessas circunstâncias. Ou seja, mesmo numa saída oficial - como foi o caso da deslocação de Marcelo Rebelo de Sousa ao Brasil para a Bienal Internacional do Livro, que teve nesta edição Portugal como país homenageado -, uma mulher política nunca poderia fazer aquilo que um homem pôde. Mas fez o descontraído e carismático Presidente Marcelo algo de mal? Obviamente que não.

Nem ninguém pensou em tal coisa; a questão que se coloca é: poderia uma mulher com um alto cargo político fazer o mesmo sem ser sujeita a críticas, mais que não fosse reparos sobre a sua forma física? Obviamente que não. Por isso, a questão que se coloca no caso da primeira-ministra finlandesa vai, quanto a mim, muito além de ter dançado e cantado de forma sexy numa festa privada, de ter consumido ou não drogas ou se deveria ou não ter-se deixado filmar. As imagens que eu vi foram as de uma mulher a divertir-se. Animada e entre amigos. Com alguns movimentos sensuais, livre e atraente, sim. Mas e depois? A verdade é que ainda se espera de uma mulher, ainda para mais com responsabilidade política, que se comporte como um ideal de boas maneiras e que corresponda a um certo perfil «feminino», que é como quem diz: que seja recatada e do lar. Mesmo, e como é o caso, que essa mulher esteja à frente de um país.

*A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990.

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