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Joana Vasconcelos. A audácia de ocupar espaço

Mesmo os menos atentos à Arte Contemporânea conhecem o seu nome e algumas das suas obras mais mediáticas. Depois de mais de 30 anos de uma carreira que já passou pelo Palácio de Versalhes, Guggenheim de Bilbau ou várias bienais de Veneza, a artista apresenta "Plug-In", a sua exposição no MAAT, em Lisboa, ao mesmo tempo que inaugura outra exposição, na Galeria das Uffizi, em Florença. Sempre em tamanho extra large.

Foto: Getty Images
10 de outubro de 2023 Maria João Martins

"Ela controla e não descola", ouvia-se numa canção antiga dos Roquivarius, de quando Joana Vasconcelos era uma adolescente num país que se aventurava na modernidade. Filha de um conhecido repórter fotográfico, Luís Vasconcelos, Joana optou pelas Artes Plásticas, mas, ao contrário do que era habitual nas mulheres portuguesas, ousou ocupar espaço. Veio com tudo, sem pedir licença nem desculpa por ter uma linguagem muito sua, que "exige" reação ao visitante. 

Joana Vasconcelos apresenta Plug-In, a sua exposição no MAAT, em Lisboa.
Joana Vasconcelos apresenta Plug-In, a sua exposição no MAAT, em Lisboa. Foto: Arlindo Camacho

Foi sempre assim desde o princípio da sua carreira com mais de 30 anos. Nascida em 1971, afirmou-se ainda jovem com a conquista do Prémio Novos Artistas Fundação EDP (2000), mas a consagração internacional chegaria em 2005 com a obra A Noiva, que esteve na primeira Bienal de Veneza curada por mulheres. Voltaria a essa Bienal mais sete vezes (até à data), uma das quais (em 2013) com Trafaria Praia, um cacilheiro por ela transformado em Pavilhão de Portugal, o primeiro pavilhão flutuante alguma vez visto naquele certame. Seguiram-se outros lugares de eleição como o Guggenheim de Bilbau ou o Palácio de Versalhes, onde a sua exposição de 2012 foi a mais vista em França em meio século, com um record de 1, 6 milhões de habitantes. Mas também espaços não museológicos, mas de grande visibilidade, como o Casino MGM Macau, para o qual concebeu a "Valkyrie Octopus" (2015) que podemos ver na sua exposição no MAAT - Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa, até 25 de março de 2024. Plug In marca, com efeito, o seu regresso a uma sala nacional (com muitas novidades, como veremos), ao mesmo tempo que a Galeria Uffizi e o Palácio Pitti, em Florença, acolhem a sua exposição Between Sky and Heart. Joana controla, sabe onde quer chegar, o que quer dos outros e não descola. Nem desfoca. 

Solitário (2019), de Joana Vasconcelos
Solitário (2019), de Joana Vasconcelos Foto: Joaquim Norte de Sousa

Plug In, a exposição que acaba de inaugurar no MAAT marca o seu regresso a um grande museu nacional depois de vários anos. O que podemos ver aqui?

Esta é uma exposição onde eu quis mostrar peças que, pela sua grande dimensão, ainda não tinha mostrado em Lisboa. São peças de exterior, como esta grande valquíria (em Portugal, as pessoas só tinham visto pequenas valquírias) ou a "Arvore da Vida", que elaborei com as pessoas do meu atelier durante o período do confinamento. 

No Valkyrie Octopus, concebido para um casino de Macau, evoca as valquírias, figuras femininas da mitologia nórdica, muito presentes na obra operática de Wagner…

São figuras que sobrevoam os campos de batalha para devolver à vida os mais bravos guerreiros caídos em combate. É uma peça gigantesca composta por elementos de materiais têxteis, croché e passamanaria. Com a escolha de tecidos nobres (como a seda) procurei cruzar as tradições de comércio de Portugal e China, que são seculares.

"Valkyrie Octopus" (2015), de Joana Vasconcelos Foto: Luís Vasconcelos

Outra peça de grandes dimensões nesta exposição é A Árvore da Vida. Disse há pouco, na apresentação à imprensa, que ela nasceu durante o confinamento e com a necessidade de fazer alguma coisa importante durante esse tempo.

Esta peça, que é exposta pela primeira vez no nosso país, nasceu do desafio de dialogar com uma escultura de Bernini na Villa Borghese, em Roma. Mas só pusemos mãos à obra durante o confinamento, quando pedi aos artesãos do meu atelier que se ocupassem da produção das 140 mil folhas que compõem esta árvore, todas bordadas à mão, assentes em 354 ramos. Foi uma criação site-specific criada de raíz para a Sainte-Chapelle de Vincennes em Paris, no âmbito da Temporada Cultural Portugal-França 2022.

Árvore da vida que desenvolveu com os seus colegas de atelier na altura do confinamento
Árvore da vida que desenvolveu com os seus colegas de atelier na altura do confinamento Foto: Didier Plowy

O título Plug-in remete para preocupações com a sustentabilidade?

São uma constante, essas preocupações. Acredito vivamente que a ideia de conseguirmos sustentabilidade parte muito das nossas ações. No nosso atelier, usamos sempre materiais que estão à nossa volta, porque é que iríamos buscar rendas à Áustria ou crochets a Veneza, quando temos aqui coisas tão boas?

Como é que começou a abrir as gavetas das tradições portuguesas? Não era algo que os artistas portugueses fizessem.

Compreendo que a geração anterior à minha quisesse abandonar memórias que estavam muito ligadas ao discurso propagandístico da ditadura e caminhar no sentido de um Portugal mais contemporâneo e europeu. Mas a minha geração compreendeu que havia muita coisa boa deixada para trás. 

Lembra-se quando é que teve esse clique?

Não, é uma coisa que se vai desenvolvendo e pensando nela. É uma questão de autovalorização. À medida que fui viajando, mais eu pude comparar: Olha, este bordado em Bruges é tão bom como o bordado da Madeira ou os azulejos ou os crochets. As nossas tradições são muitas vezes melhores do que as que vou encontrando.

Foto: Didier Plowy

Os artesãos tinham consciência desse valor do seu trabalho?

Não, pelo contrário. À conta dessa falta de auto-estima imposta pela ditadura (sobretudo às mulheres), não tinham consciência. Houve uma desvalorização dessa dimensão. Para mim, tem sido um grande prazer ajudar à revalorização destas técnicas através da obra-de-art

Peças suas como A Noiva (o famoso lustre feito de tampões) estão cheias de ironia e subversão. Gosta de brincar com temas que são tabu, ou que o foram durante muito tempo, como a menstruação?

Gosto de subverter estereótipos e de abordar temas que não são falados. Os assuntos das mulheres são muitas vezes vistos como coisas menores.Temos vergonha do corpo, da identidade, daquilo que somos. Eu faço parte dessa corrente quase almodovariana de ter prazer, de brincar com as coisas e de as usar.

Nesta exposição reencontramos uma peça sua antiga, Strangers in the Night, em que as mulheres evocadas são prostitutas…

A peça é de 2011 e deu muito que falar. Trata-se de um décor inspirado numa cabine de peep-show aberta ao olhar do espectador, forrada exteriormente com farolins de carros que piscam continuamente.

Strangers in the Night (2011), de Joana Vasconcelos
Strangers in the Night (2011), de Joana Vasconcelos Foto: DMF Lisboa

Há algum tempo, o galerista Mário Roque dizia-me que as jovens artistas ainda não sabem promover ou pedir o justo valor pelo seu trabalho com a mesma eficácia que os seus colegas do sexo masculino. Concorda com ele?

As coisas mudaram. As mulheres estão muito mais inseridas no mundo da arte do que estavam quando eu comecei, por exemplo, mas tendo a concordar com o Mário Roque. Ainda há um longo caminho a percorrer, ainda há muitas mulheres que não recebem o que deveriam nem vêem o seu devido valor reconhecido. É verdade que têm mais dificuldade em afirmar-se. O meio artístico ainda não é um local favorável às mulheres.

Como é que adquiriu o know how para se afirmar?

Fui trabalhando com grandes museus e com grandes estruturas internacionais que me permitiram aprender a fazê-lo a par e passo. Eram grandes desafios e, perante eles, ou eu fazia ou não fazia. Muito depressa percebi, também com a ajuda de mulheres que fui encontrando (diretoras de museus, comissárias) que precisava de saber agir. Fui a primeira mulher em muitas situações: Fui a primeira mulher na primeira Bienal de Veneza comissariada por mulheres, depois fui a primeira mulher em Versailles, depois fui a primeira portuguesa no Guggenheim. O primeiro Prémio EDP foi para mim e para a Lourdes Castro, o que só por si já seria uma grande honra. 

DragRace2023, de Joana Vasconcelos
DragRace2023, de Joana Vasconcelos Foto: Lionel Balteiro

Tem uma Fundação com o seu nome. Que trabalho faz?

Apostamos muito na educação. Recebemos jovens do mundo inteiro que queiram saber mais sobre artes plásticas, mas os reformados também são muito bem-vindos. É um lugar onde se pode aprender e onde estamos muito interessados em conciliar as tradições e a arte contemporânea.

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