Fortes e misteriosas: As mulheres do cinema de David Lynch
Aparecem sempre envoltas numa aura de mistério e sonho (ou pesadelo), mas as personagens femininas do cinema de David Lynch, que nos deixou esta 5ª feira, são tão marcantes como as de Almodóvar ou Truffaut. Eis uma galeria de protagonistas, de Dorothy Vallens a Chrystabell.

A François Truffaut foi aplicado o título de um dos seus filmes, O Homem que Amava as Mulheres, e é de chicas Almodóvar que nos lembramos quando queremos nomear uma filmografia em que as mulheres estão no centro da história e dos nossos olhares. No entanto, o norte-americano David Lynch, que morreu esta 5ª feira, aos 78 anos, não lhes prestou menos atenção, envolvendo algumas das suas protagonistas numa atmosfera onírica de fascínio e sonho. Para atrizes como Isabella Rossellini, Naomi Watts, Laura Dern, Diane Ladd ou Chrysta Bell, criou personagens que ficarão para sempre na História do Cinema.

Dorothy Vallens (Isabella Rossellini, em Veludo Azul)
Na noite em que conheceu Isabella Rossellini, então no auge da fama como modelo fotográfico, Lynch ter-lhe-à dito: "Você poderia ser filha de Ingrid Bergman". Ao que ela terá respondido: "E sou mesmo." A partir daí, tornaram-se inseparáveis, formando um dos casais mais mediáticos do mundo do Cinema dos anos 1980.


O mais auspicioso fruto dessa relação é o filme Veludo Azul, em que Isabella interpreta o papel da femme fatale Dorothy Vallens. Usando uma atmosfera e um estilo inspirados no film noir das décadas de 40-50, Lynch desafia o espetador a questionar s suas próprias noções de inocência, sexualidade e amor. Dorothy é uma cantora num clube noturno de uma pacata cidade de interior, abusada por um criminoso (papel interpretado por Dennis Hopper), que tem em seu poder o marido e filho dela. Tudo isto se passa em frente do olhar simultaneamente fascinado e aterrorizado do jovem Jeffrey, que acaba também ele por se envolver eroticamente com a muito sensual Dorothy.
Isabella voltaria a trabalhar sob a direção de Lynch em Coração Selvagem, como Perdita Durango.


Lula Fortune (Laura Dern, em Coração Selvagem)
Entre as temporadas da série Twin Peaks, Lynch realizou Coração Selvagem (1990), a partir do romance de Barry Gifford. Em foco estavam os amores malditos de Sailor Ripley (Nicolas Cage) e Lula Fortune (Laura Dern), jovem casal apaixonado obrigado a fugir de criminosos contratados pela mãe de Lula, interpretada por Diane Ladd, de facto, a verdadeira mãe de Dern.


Aclamado no Festival de Cannes, onde ganhou a Palma de Ouro, o filme gerou alguma controvérsia pelo conteúdo explícito. Este é também o filme que marca a consagração da sua principal atriz, num papel de grande sensualidade, muito diferente da jovem ingénua que Laura Dern interpretara em Veludo Azul.
Laura Palmer (Sheryl Lee, Twin Peaks)
No princípio da década de 1990, a pergunta "quem matou Laura Palmer?" circulava nas cabeças de meio mundo, como um peixinho no aquário. Mas, ao longo dos 30 episódios de Twin Peaks, pouco nos é dado a conhecer sobre esta misteriosa personagem, cujo assassínio abala uma cidadezinha sem história, no norte interior dos Estados Unidos. Nas duas temporadas fica-se a saber que Laura Palmer era uma bela e popular alunas do liceu local, mas, aos poucos, começamos a perceber que, sob essa fachada de glamour rural, existia uma vida demasiado cheia de coisas inconfessáveis, factos que vão sendo revelados através das outras personagens, também elas bem diferentes das aparências.

Mas o quadro completo só nos seria dado um ano depois do fim da série, no filme prequela: Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer (1992). É nesse momento que os apaixonados da série (que eram muitos) ficarão a saber que a menina bem comportada, rainha do baile do liceu, estava, afinal, viciada em drogas e sexo perigoso.
Audrey Horne (Sherilyn Fenn, Twin Peaks)
Outra das personagens centrais de Twin Peaks. Filha de Ben e Sylvia Horne, irmã de Johnny Horne, tem uma paixão pelo agente Dale, protagonista da série. Um dos momentos mais dramáticos da série é aquele em que Audrey descobre que o pai fora um dos vários amantes da malograda Laura.

Betty Elms e Rita (Naomi Watts e Laura Harring, Mulholland Drive)
Um dos mais aplaudidos filmes de Lynch, Mulholland Drive foi concebido originalmente como piloto para uma série de TV mas, rejeitado pelo canal ABC, o projeto foi transformado em longa-metragem. No coração da história está uma jovem canadiana aspirante a vedeta de Hollywood (interpretada por Naomi Watts) que se envolve amorosamente com uma mulher amnésica, alegadamente chamada Rita, na sequência de um acidente de automóvel, em que apenas ela sobrevivera. Na verdade, ficamos depois a saber, o acidente salvou-lhe a vida porque, quando este aconteceu, ela estava prestes a ser assassinada pelo seu próprio chauffeur e não se chamava Rita - foi o nome que adotou ao olhar para um poster do filme Gilda, com a atriz Rita Hayworth. Em 2016, a BBC considerou Mulholland Drive o melhor filme do século XXI até essa data.

Renee Maddison (Patricia Arquette em Estrada Perdida)
Após o sucesso de Coração Selvagem, Lynch repetiu a parceria com o romancista Barry Gifford. O filme apresenta, uma vez mais, uma trama que desafia a linearidade narrativa, focando-se num saxofonista, interpretado por Bill Pullman, que é preso sob a acusação de ter morto a sua mulher (Patricia Arquette). A narrativa fragmentada e repleta de simbolismos introduziu um universo onde a realidade se desintegra, refletindo os temas recorrentes da obra de Lynch: identidade, violência e obsessão. Numa entrevista recente, Patricia Arquette recordou a sua perplexidade face ao papel que tinha de interpretar: "Perguntei a David quem era aquela personagem: Uma ou duas? Um fantasma, uma alucinação? Ele respondeu-me: Eu não sei, Patricia. O que é que tu achas?".

Nikki Grace/Susan Blue (Laura Dern em Inland Empire)
Em 2006, Lynch levou a sua linguagem surrealista ao extremo, com Inland Empire, o seu primeiro filme rodado inteiramente em vídeo digital. O papel principal foi uma vez mais confiado a Laura Dern, numa obra que explora a fragmentação da identidade e a desconstrução narrativa, ao explorar os mundos de uma atriz "possuída" por uma personagem demasiado absorvente.

Chrystabell
Cantora norte-americana, iniciou uma frutuosa relação artística com David Lynch, em 1999, de que resultou a banda sonora de Inland Empire, mas também três álbuns musicais This Train (2011), Somewhere in the Nowhere (2016) and Cellophane Memories (2024). Como atriz, Chrystabell apareceu em Twin Peaks: The Return (2017), no papel de agente especial Tamara Preston.

