Novas Lisboetas. Sete mulheres que espelham a multiculturalidade histórica da capital
Fizeram de Lisboa a sua casa. São estrangeiras, mas consideram-se lisboetas, vivem e trabalham aqui, e a urbe faz parte da(s) sua(s) geografia dos afetos. Válidas, inteligentes, diversas, contribuem para a multiculturalidade histórica desta cidade. Têm crescido com ela e, como tal, vêem-lhe qualidades e defeitos.

Palestiniana da Graça
Shahd Wadi chegou a Portugal em 2006. Mas diz muitas vezes que a sua história de vida começou em 1948, o ano a que os palestinianos chamam de nakba, e quer dizer catástrofe. Os avós eram oriundos de Al-Muzayri'a, uma vila ocupada naquele ano. Como tantas outras a sua família foi expulsa da Palestina, por isso assume-se como descendente de refugiados. Investigadora, escritora, tradutora, cronista, curadora independente, esta ativista dos direitos humanos nasceu em 1983 (ano da guerra no Líbano). "Nasci no Egipto, a minha mãe é egípcia, mas cresci na Jordânia. Para o povo palestiniano, o que interessa é a terra de origem, porque senão vamos desaparecer."

Veio para Lisboa por causa de um namoro com um português. Hoje, o homem com quem escolheu viver também é português, e Lisboa é a cidade que lhe dá um sentimento de pertença. "Havia a possibilidade de regressar a outras cidades onde morei, mas volto sempre para Lisboa".

Refere que a razão pela qual este sentimento é tão forte será ter construído uma relação sólida com a cidade. Talvez mais do que um local, sempre viveu aqui e tem a cidade como um dado adquirido.

"A Lisboa colorida é a cidade dos meus sonhos. A primeira vez que a vi dos céus pensei que correspondia exatamente à cidade que vejo nos meus sonhos". É em Lisboa que a sua relação com a Palestina se fortalece. É aqui, também, que desenvolve o seu ativismo pelos direitos humanos. Em 2009 foi, pela primeira vez, a uma manifestação pela Palestina. "É a partir daqui que sinto necessidade de falar sobre a Palestina. Ultimamente, a sociedade portuguesa tornou-se mais consciente do que se passa nos territórios palestinianos. Penso que um genocídio não é um problema local, mas do mundo inteiro. Qualquer pessoa que testemunha um genocídio tem de fazer qualquer coisa, ou será cúmplice."
Em Lisboa, admite, já não sente uma solidão tão grande relativamente à causa palestiniana. "Quando passeamos pelas ruas da cidade vemos bandeiras palestinianas nas janelas. Parece que a Palestina, de repente, mora em várias casas portuguesas."
Lisboa é parecida consigo. Uma cidade vibrante do sul da Europa. O fado tem semelhanças com a música árabe, mas pensa que a sua relação com a urbe não passa necessariamente por aí. É mais estrutural, arquitetónica até: "gosto dos cantos, dos becos e das ruas da cidade. O meu marido é lisboeta e tenho a certeza que conheço mais tascas do que ele. Apesar de já haver alguma dificuldade de se achar aquele lugar que ninguém conhece".

Em termos gastronómicos adora a cozinha portuguesa e sabe fazer um bom arroz de polvo ou uma cataplana. "A coisa mais bonita de Portugal é a abundância de pão, azeite e arroz." Na cozinha palestiniana estes três ingredientes também estão em todas as mesas. "Para nós é mesmo impensável viver sem azeite", admite.
"Até vir para Lisboa nunca senti que pertencesse a nenhum lugar". Hoje gosta muito da Língua Portuguesa. De falar e de escrever em português. Lê vários autores portugueses contemporâneos como Judite Canha Fernandes, Afonso Cruz, ou Adília Lopes, mas também José Saramago ou Fernando Pessoa. "Sou vizinha de Natália Correia no afamado Botequim, espaço que frequento bastante".
Ao velho bairro da Graça onde vive deixa algumas críticas. "Está muito mais turístico do que há dez anos. Lisboa deixou de ser uma cidade tão espontânea. Fazer algum programa de improviso tornou-se mais difícil. Perdeu-se alguma vida de bairro, não é fácil encontrar um simples café e agora todos os pratos têm abacate".

Ainda assim, Lisboa ainda é Lisboa. "Apesar de tudo teremos sempre o Tejo".
A italiana de Chelas
La Piena quer dizer "plena". O nome da livraria italiana onde Elisa Sartor (1985) nos recebe é o adjetivo perfeito para definir a sua relação com Lisboa. Para dizer a verdade, a história começa por causa da afamada Escola do Porto, para onde a livreira vai para cursar arquitetura. Regressada a Itália, mas cheia de saudade, encontra uma forma de voltar através de uma bolsa Leonardo, e em 2013 vai estagiar para o Atelier Mob, já em Lisboa. "Quando chego à capital sinto-me em casa", revela com um sorriso. Paralelamente, criou o projeto Mani in Pasta, sediado em Lisboa, que, como se apresenta no Instagram, cria todo um universo que vai da cultura da comida ao design. Uma empresa que cria desde eventos de culinária até uma linha descontraída de sacos e t-shirts, cuja produção é portuguesa, e tem como cliente final o mercado italiano. Entretanto, com a chegada da pandemia em 2020, Elisa viu-se com um bebé pequenino nos braços. Nessa altura aparecia-lhe, vinda da Sardenha, Sara Cappai. Conheceram-se através do Instagram. Sara era uma fã e comprou-lhe uma t-shirt. Nessa altura muita gente da comunidade italiana regressou a Itália. Elisa e Sara falavam de tudo, mas sobretudo de livros. Criaram um clube de leitura, mas a Sara era editora e propôs-lhe abrir uma livraria onde se "falasse italiano". Elisa deu os seus conhecimentos de como montar uma empresa e Sara tinha contactos no meio editorial italiano. Estavam criadas as bases para a livraria. Elisa apaixonou-se por Portugal desde a época que foi estudar arquitetura para o Porto.


Em 2013, quando decidiu ficar em Lisboa, a cidade era um lugar onde a vida era fácil. Hoje tem um companheiro e um filho com cinco anos com nacionalidade portuguesa e italiana. Mas confessa que, mesmo que não tivesse constituído família, teria ficado na mesma. A vida em Milão é mais rápida e stressante, ao passo que em Lisboa é relaxante e simples. Arroios, o bairro onde fica a livraria, ainda não está gentrificado. Destaca as pastelarias antigas da zona e o mercado de Arroios. Como não podia deixar de ser, adora ler. Lê sobretudo nos transportes públicos que usa de casa para o trabalho. "Na livraria conseguimos criar uma comunidade de leitores", declara com orgulho. Que tanto podem ser portugueses que viveram em Itália, italianos que vivem em Portugal ou estudantes. Elisa refere a diversidade da vida cultural lisboeta como um dos predicados da cidade. "Gosto de frequentar as rodas de samba ou bares de música africana. A música da cidade é o que me faz mais feliz. Há festivais de cinema documental, feiras do livro independente e, sobretudo, muita cultura gratuita, é só preciso estar atento."
A espanhola do Marquês

Madrilena de nascimento, Amaya Sumpsi (1979) chegou a Lisboa depois de ter vivido uns anos em São Miguel, nos Açores. "Nas ilhas vive-se em rede e quando aqui cheguei, em 2005, não conhecia ninguém e não tinha como fazê-lo. Na altura pensava, só quero ter alguém com quem tomar um café. Hoje sinto que metade da minha vida está aqui." E, de facto, a criar dois filhos portugueses, não há como fugir e também não quer.

Deu aulas em escolas de línguas, e inscreveu-se em cursos para conhecer pessoas. "Tinha de encontrar o meu lugar". É esse o sentimento que experimenta quando atravessa a ponte sobre o tejo. "Sinto que estou a chegar a casa. Assumes, finalmente, que a tua casa é esta e que não estás só de passagem". Licenciada em Realização de Cinema e Televisão na Escola Superior de Artes e Espetáculos de Madrid, em 2003, lembra-se que decidiu ir para os Açores através do programa Erasmus. "Não fazia parte das rotas europeias. A que país pertence o Açores? Perguntava-me na altura."

O propósito era fazer um corte radical com a vida que tinha tido até ali. Ficou em São Miguel durante três anos porque, entretanto, arranjou um namorado que lecionava lá. Em paralelo trabalha para a cooperativa Kairós – Criações Periféricas como responsável pelo laboratório de fotografia. Cria raízes no arquipélago e realiza dois documentários sobre temáticas açorianas. O primeiro, Meu Pescador, Meu Velho e o segundo, Entre ilhas. A base, no entanto, é Lisboa. É nesta cidade que faz o mestrado e doutoramento em Antropologia Social. Nas horas vagas vive intensamente a cidade entre tascas e cinema, livros e basquetebol.
A brasileira do Parque das Conchas
Mirna Queiroz veio para Portugal à procura das origens. Tinha 25 anos. Passou dois meses em Portugal e quatro em Itália. Acabou por ficar sete anos em Lisboa. "Encantei-me com o país, compreendi coisas sobre a minha história pessoal e senti-me acolhida. Tornou-se correspondente da BBC em Lisboa. "Em 1993 havia uma grande leva de brasileiros que vinham viver para aqui, lembra." Acompanha a visita de Bill Clinton a Portugal, faz a cobertura da Expo 98 e da independência de Timor Leste. "Em Lisboa tive a minha primeira experiência internacional como jornalista". Pode dizer-se que é uma brasileira do mundo. Estabeleceu-se profissionalmente em Bruxelas, Singapura e São Tomé e Príncipe, onde teve a sua primeira experiência africana. Regressa ao Brasil. Na casa da partida fundou a Revista Pessoa. Esta plataforma digital nasce com o objetivo de promover as literaturas dos países lusófonos. O jornal Valor Económico considerou-a como umas das "iniciativas mais inovadoras" dos últimos tempos. Quando Jair Bolsonaro ganhou as eleições, a editora sentiu que estava a sufocar. Regressou a Portugal a 31 de dezembro de 2018. Já não estava no país quando ele tomou posse. Em 2020, em plena pandemia, cria em Lisboa o projeto cultural Mombak. "Mombak", em tupi, significa despertar, e teve o mérito de cruzar várias disciplinas. À conta deste projeto organizou vários cursos, desde escrita criativa à fotografia. Agora é a KEF (Kees Eijrond Foundation) que ocupa os seus dias. Tal como no outro projeto, conta com a parceria do holandês proprietário do Hotel Verride. Paralelamente organiza o Fes Think, um festival que procura criar pensamento critico na sociedade. "Não me sinto mais estrangeira, tenho qualidade de vida", admite. Quando chegou a Portugal tinha uma visão anacrónica sobre Portugal, agora não. Falamos dos resultados das últimas eleições e da subida da extrema direita na Europa. "Pessoalmente nunca fui vítima de racismo". Mas o racismo não é exclusivo da Europa. "Os paulistanos descriminam os nordestinos". A eleição da direita radical preocupa Mirna. "Faz com que se acredite que existe um inimigo".

É necessário denunciar o discurso das fake news através da imprensa séria. Esta tem o dever de desconstruir as dissertações de ódio que proliferam nas redes sociais. "Penso que a arte humaniza, que através dela é mais fácil reforçar os pilares da democracia." Os lugares preferidos são "o Parque das Conchas, o Teatro D. Maria II e a Culturgest", destaca.
A francesa da Feira da Ladra
O espírito aventureiro de Margot Rident trouxe-a para lisboa. Por acidente. Na altura era babysitter dos filhos de uma cantora pop internacional que, subitamente, escolheu a capital para viver. Estavamos em 2017. Quando acabou esta fase decidiu continuar por cá. Videógrafa, montadora de cinema e fotógrafa, Margot pôs pela primeira vez os pés em Portugal no verão de 2007. O pai ouvia música brasileira e, influenciada por ele, decidiu ficar em Lisboa, atraída pela sonoridade da música portuguesa.
Desde então está ligada ao meio e confessa: "quase todos os meus amigos são músicos".
Atualmente está a trabalhar na Agência Clave na Mão, onde trata da promoção internacional de bandas de jazz portuguesas. "Gosto muito de mostrar a cultura portuguesa ao mundo". Em casa ouve fado. De Carminho a Cristina Branco, passando por Teresinha Landeiro.
"Tenho um sentimento casa em relação a este lugar que não consigo explicar. É uma coisa física e visceral."

Cresceu em Rouen, na Normandia, e aos 17 anos foi para Paris estudar publicidade. Talvez o facto de vir da província francesa a faça valorizar esta cidade feita à escala humana. "Vou a pé para todo o lado e tenho uma grande conexão com o mar." Na Normandia vivia a cinco minutos do mar. Cresceu no campo a sonhar com a grande cidade e agora precisa da natureza de forma desesperada. "Lisboa tem esse equilíbrio urbano-rural. Por outro lado, encontrei aqui uma humanidade que já não encontrava em Paris."
Essa generosidade alfacinha encontra-se com ela no Campo de Santa Clara, onde ainda há o tasco com favas com chouriço onde uma dose chega e sobra para dois.
"Sinto que encontrei o meu lugar. Se a ideia de sair de Portugal me dá angústia, sempre que chego ao aeroporto sinto uma leveza incrível".
Alem de Paris já viveu em cidades caóticas como Nova Iorque ou Rio de Janeiro. Assume-se caseira. "Gosto cada vez mais de estar em casa. Para ter inspiração artística preciso de estar mais recolhida, não me interessa sair, vou ao cinema e faço aulas de dança".
Sente falta da oferta de Museus que há em Paris. "Já imaginaram a quantidade de pintura que dorme nas caves do Louvre?"
A cabo-verdiana de Queluz
Nascida na Cidade da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde, Karine Couto veio para Lisboa aos oito anos.
Gestora operacional numa empresa de telecomunicações, Karine cresceu num ambiente artístico e musical. O pai, Zeca Couto, é pianista da banda cabo-verdiana Os Tubarões. Quando veio para Portugal, a mãe decidiu que à mesa só falariam português para que fossem mais fáceis a adaptação e o aproveitamento escolar. Só voltou ao crioulo na adolescência, quando Patrick, o irmão mais velho, começou a falá-lo com os amigos. "Foi desta forma que reaprendi o crioulo, e hoje, quando o falo, o meu pai diz sempre 'o teu crioulo é horrível.'" E, de facto, Karine sente-se lisboeta. Cresceu em Campo de Ourique, frequentou as Escolas Bartolomeu de Gusmão e Josefa de Óbidos. O primeiro, padre jesuíta inventor da passarola, a segunda, pintora do barroco português. "Com um professor de história criámos um clube em que falávamos das várias culturas existentes na cidade de Lisboa".
Na verdade, por mais lisboeta que seja, Karine nunca deixou de se sentir cabo-verdiana. "Nunca deixo de me sentir cabo-verdiana, seja na música, seja na cachupa ou na gastronomia do resto do arquipélago. Não vou à ilha de Santiago desde 1993, mas pelo menos de dois em dois anos rumo ao Mindelo (na ilha de São Vicente), porque é lá que mora a minha avó materna. É uma cidade muito cultural e, além disso, muito calma, em comparação com a Cidade da Praia." Gosta da cultura dos bairros. Da Bica à Madragoa. "Os meus amigos portugueses de ascendência cabo-verdiana entram nas marchas populares a representar o bairro da Bica. Pessoalmente vivo muito a marcha, e até já participei como aguadeira." Gosta de ir aos fados à Tasca do Chico. "A multiculturalidade de Lisboa é uma das suas melhores características. Não me vejo a viver noutro sítio. Talvez volte para Cabo Verde daqui a 15 ou 20 anos, mas atualmente seria difícil voltar e ter a mesma qualidade de vida que tenho em Portugal.

"Nunca me senti vítima de racismo, a não ser aquele clássico no autocarro: vai para a tua terra. Mas só fiquei com essa sensação um par de vezes, até adulta."
Nos tempos livres assiste aos jogos de futebol do filho, vai ao cinema ou sai com os amigos. "Basta um raio de sol e lá vou eu para a linha de Cascais". Um dos sítios prediletos é o restaurante Cabeça de Touro, nos Olivais, onde vai pelo bacalhau. As suas imersões na cultura cabo-verdiana dão-se, sobretudo, quando o pai está em Portugal. "Sempre que há um concerto dos Tubarões faço questão de assistir", admite.
A Macaense da Sé
Nascida em Macau em 1965, Virgínia Or tem nacionalidade portuguesa. À primeira vista nada o denuncia, a não ser o seu sorriso único, tal como a luz lisboeta. A viver intermitentemente na capital portuguesa desde 2015, e de forma mais efetiva a partir da pandemia, em 2020, esta produtora freelancer, licenciada em filosofia, confessa que mal visitou a capital portuguesa se sentiu em casa. "Cresci com muita da herança portuguesa. Quer a nível arquitetónico, quer a nível cultural. A panorâmica é lindíssima e foi amor à primeira vista."

Gosta de se perder nas ruas de calçada portuguesa da velha cidade, parar nos cafés dos bairros tradicionais, ver um filme na cinemateca, ir a um museu ou a uma exposição numa galeria. Encontrar um novo restaurante vegetariano, não come carne há mais de 20 anos.
"Lisboa é linda e inclusiva. Mas simultaneamente única, apesar de receber bem quem vem de fora. Apesar de ter vindo do outro lado do mundo encontrei aqui a minha casa". Ainda assim, ultimamente fazem-lhe confusão as multidões e o turismo de massas.
Senhora de uma sensibilidade fora do comum, Virgínia gosta de fotografar o que não é óbvio, o humor dos locais, paredes que parecem mapas mundi, ou ruas que lhe lembram outras geografias. Lisboa é tudo isso e vê o rio Tejo da sua janela.
