O nosso website armazena cookies no seu equipamento que são utilizados para assegurar funcionalidades que lhe permitem uma melhor experiência de navegação e utilização. Ao prosseguir com a navegação está a consentir a sua utilização. Para saber mais sobre cookies ou para os desativar consulte a Politica de Cookies Medialivre
Atual

Histórias de Amor Moderno: “Sinto-me uma adolescente a gerir os meus primeiros ordenados”

“O plano dele era simples: ele trabalhava e ganhava o sustento; eu cuidava do lar e, eventualmente, dos filhos, quando os tivéssemos.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Netflix
15 de fevereiro de 2025 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

Percebi que estava em apuros quando, no fim de umas compras de supermercado, peguei no talão e comecei, item por item, a compreender o verdadeiro valor de cada produto. Os euros que cada coisa custava foram para mim uma abstração até ao dia do meu divórcio. E essa abstração já se prolongava desde os tempos do escudo, porque estive casada durante mais de trinta anos. Só temos a real noção do peso de cada compra nas nossas finanças quando fazemos finalmente as contas ao que o preço delas representa para o nosso orçamento. Oito, dez ou quinze euros não são uma coisa absoluta; pelo contrário, são uma percentagem, uma fatia concreta do total do nosso dinheiro. O divórcio trouxe-me, entre muitas outras consequências boas e más, essa extraordinária revelação.

O meu ex-marido sempre me tratou bem, no sentido em que nunca me faltou com nada no plano material. Sempre pudemos comprar o que era preciso, felizmente, e as nossas contas eram religiosamente pagas a tempo e horas. No plano sentimental e íntimo, as coisas nem sempre correram bem. Aliás, se tivessem corrido, não faria sentido que nos tivéssemos separado. Alguma coisa falhou. Mas não se trata de um homem que me tenha tratado mal. Pelo contrário, é e foi uma pessoa decente, com os valores no sítio certo.

O problema do meu ex-marido era a sua necessidade de controlar. Era como se tivesse um vício, precisava de gerir tudo o que acontecia na nossa vida. Inicialmente, eu não percebia essa compulsão. Confundia aquele comportamento com uma maneira carinhosa e cuidadosa de tomar conta de mim. Ele fazia de mim uma pessoa livre de preocupações. "Só tens de te preocupar com a casa", dizia-me. E eu, aos poucos, fui aceitando essa condição, sem nunca a questionar.

Quando nos casámos, eu tinha terminado os estudos havia pouco tempo. O plano dele era simples: ele trabalhava e ganhava o sustento; eu cuidava do lar e, eventualmente, dos filhos, quando os tivéssemos, ou seja, quando ele determinasse que seria a altura ideal para os ter. Foi pouco depois de nos casarmos que surgiu o nosso primeiro conflito: eu queria trabalhar. Depois de tantos anos a estudar, não me via a passar os dias em casa, a arrumar, tratar da roupa e ver televisão, tendo todos os dias a refeição pronta à espera que o meu marido chegasse do emprego. Quando lhe disse que andava à procura de trabalho, irritou-se comigo. Perguntou-me se não me dava o suficiente. É certo que dava, ele tinha e ainda tem uma boa posição na empresa, ganha muito bem. Só que eu não queria aquela vida para mim, precisava de mais. Ele acabou por aceitar, mas com uma condição: que o meu ordenado entrasse diretamente na conta dele. "É para controlar os ganhos e os gastos", justificou. Não me opus. Só queria poder fazer aquilo para que tanto estudara.

A nossa vida era simples, nenhum de nós era dado a luxos, mas também não se pode dizer que vivêssemos modestamente. Nos primeiros anos de casamento, comprámos casa, comprámos um carro para mim e outro novo para ele. Uma vez por ano, fazíamos uma viagem grande. Dos continentes, só não conheço a Oceânia, de resto fizemos férias em todos os outros. Os nossos rendimentos eram mais do que suficientes para o nosso dia-a-dia frugal, o que nos permitia pôr dinheiro de parte. Não sei ao certo quanto nem com que finalidade, uma vez que essa informação não me era acessível. Mas a verdade é que, até ao nascimento do Francisco, nosso único filho, nos permitíamos fazer as tais viagens longas uma vez por ano. Depois de termos o Quico, as coisas mudaram um pouco, mas não ao ponto de nos tornarmos monásticos - simplesmente, em vez de duas semanas em Madagáscar, tínhamos de nos contentar com sete dias em Cancún, por exemplo.

Se falo das nossas viagens de férias para ilustrar o que era a nossa vida é porque, na verdade, não há muito mais a assinalar nos pouco mais de trinta anos que eu e o Júlio vivemos juntos. Agora que olho para trás, penso na quantidade de pequenas coisas que podíamos ter feito na vida e nunca fizemos. O controlo obsessivo daquele homem foi tirando a graça a tudo o que tínhamos. Além disso, impediu-nos de viver, de experimentar, de explorar, de conhecer.

Quanto ao dinheiro, não havia problemas. Eu não sabia o que acontecia ao que eu ganhava, não fazia ideia de onde ia parar. O Júlio dizia-me sempre que aplicava nas poupanças do miúdo e no nosso próprio pé de meia. "Na velhice, há de nos fazer falta", justificava. A poupança do nosso filho é real, está lá, e bem recheada, valha a verdade. Já o que poupámos para a velhice, não sei se esse dinheiro existe ou não. Nunca lhe pedi a minha parte, ainda não tive coragem para o confrontar. Mas a verdade é que, desde que nos separámos, nunca faltou a pensão para o miúdo, que entrou este ano na universidade. O Júlio também paga - por iniciativa própria, que eu nunca lhe pedi nada - metade da prestação da minha casa. Diz que é justo, pois é lá que o filho mora e ele quer pagar a parte do filho.

Como disse, o meu ex-marido é um homem decente, sério. Só me aflige que nunca me tenha deixado perceber o verdadeiro custo da vida. O custo das coisas, o dinheiro que elas representam, a fatia que nos sai do orçamento, o peso que têm naquilo que ganhamos. Os meus primeiros meses após o divórcio foram de um grande desgoverno, sentia-me completamente perdida. Não sabia o que havia de comprar primeiro, não conseguia organizar as minhas prioridades, não era capaz de fazer escolhas consequentes. Aos 54 anos, dei por mim a aprender a gerir a minha conta e a minha carteira porque o Júlio nunca me deixou fazer nada disso, tomava conta de tudo. E, sim, bastava que eu lhe dissesse "dá-me 200 euros para compras" e ele dava-mos na hora. E, sim, nunca, durante a nossa vida em conjunto, eu tive de fazer horas extra para compor o orçamento. Mas agora custa-me. Sinto-me uma adolescente a gerir os meus primeiros ordenados. E tenho muito medo de perder o controlo, de fazer as contas erradas, de ficar em falta. Mas nunca é tarde demais para aprender. Aos poucos, vou-me adaptando a esta nova maneira de organizar a vida.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

As Mais Lidas