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"Não conheci nenhuma associação LGBT que tivesse ido ao Conde Redondo para interagir com as travestis"

Nélson Alves Ramalho investigou a realidade da prostituição travesti em Portugal ao longo de cinco anos. Num livro que luta contra a estigmatização, expõe as vidas reais das travestis que lutam por ver a sua profissão regulamentada, enquanto tentam sobreviver.

Foto: Nélson Alves Ramalho @ CIES-IUL
03 de dezembro de 2020 às 08:42 Rita Silva Avelar

Em "Virar Travesti. Trajetórias de vida, prostituição e vulnerabilidade social" [Tinta da China], vencedor do Prémio APAV para a Investigação de 2019, Nélson Alves Ramalho traça um retrato de uma realidade ainda relativamente desconhecida, do ponto de vista da abordagem empírica, em Portugal. É este, aliás, o primeiro grande estudo de uma realidade que permance um estigma dentro do estigma maior que é a atividade dos profissionais do sexo em Portugal, ou a prostituição.

Neste estudo convertido em livro para ser de maior acesso ao leitor, o investigador, que é também assistente social e conviveu de perto com esta face da prostituição, analisa a vivência e a trajetória social das travestis trabalhadoras do sexo que continuam a ser representadas no imaginário social como "aberrações" e tudo aquilo que nesta palavra pode ser contido. 

Numa tentativa de destruir o efeito estigmatizador que tem empurrado as travestis para territórios "periféricos, marginais e ligados ao submundo", neste livro o autor escava até às mais profundas camadas do fenómeno, expondo-o sem medos nem constrangimentos, num retrato fiel da verdade que é a real vivência destas travestis no país. Conversámos com o autor, que dedicou cinco anos a esta investigação.

Em que momento percebeu que havia uma urgência em fazer este retrato social?                               

A urgência em dar a conhecer um dos grupos mais incompreendidos da sociedade portuguesa – as travestis trabalhadoras do sexo – partiu de um conjunto de razões. Desde logo, razões de ordem profissional, na medida em que, sendo assistente social, com experiência na intervenção com trabalhadoras do sexo, fui verificando ao longo do tempo que a população travesti se encontrava, de certa forma, "marginalizada" por parte dos serviços de ação social, havendo pouquíssimos projetos de intervenção que fossem ao seu encontro. Depois, por razões de ordem social, pela perceção destas pessoas serem representadas no imaginário social como "aberrações", "doentes", "sexualmente desviantes", "promíscuas", "delinquentes" ou "perigosas". Basta procedermos a uma rápida consulta aos jornais diários, disponibilizados na internet, para percebermos que, grande parte das notícias sobre travestis tende a apresentá-las como violentas, ladras, criminosas, assassinas ou com uma personalidade instável. Ora, estas ideais, alimentadas reiteradamente por discursos sociais, religiosos, políticos ou de outros formadores de opinião, têm um efeito profundamente estigmatizador, com consequências na promoção de comportamentos transfóbicos, na incitação ao ódio e na constituição de um clima de violência socialmente aceite, impulsionando as travestis para territórios periféricos, marginais e ligados ao submundo.

Por fim, as razões de ordem científica prenderam-se, sobretudo, com a constatação de um limitado conhecimento sobre a população travesti trabalhadora do sexo. Embora estas pessoas marcassem presença nas ruas da cidade, nas páginas de internet e nos classificados dos jornais diários, não eram abordadas, comentadas e analisadas, academicamente, razão pela qual se mantinham praticamente desconhecidas. Não havendo um real entendimento sobre as suas experiências de vida, os motivos que as levavam a estar ligadas aos contextos de prostituição e as dificuldades com que se confrontavam no seu quotidiano, tentei aceder às suas vozes por forma a compreender o seu modus vivendi, as suas trajetórias de vida, a sua identidade e os processos de exclusão social a que estavam sujeitas.

As travestis são a expressão mais visível do nosso mercado sexual? Quais podem ser as vias possíveis para combater o estigma?

Não digo que as travestis são a expressão mais visível do trabalho sexual porque não são. A maior do trabalho sexual, em Portugal e na Europa, é praticado maioritariamente por mulheres. Elas, seguramente, são a população mais visível por serem, também, a mais numerosa. Porém, não é menos verdade que as travestis se têm constituído um grupo cada vez mais significativo na indústria do sexo.

De onde partiu esta investigação?

Investiguei o mundo da prostituição travesti, tendo por base o território do "Conde Redondo", na medida em que este é considerado, na Grande Lisboa, como o local de maior expressão de prostituição de rua travesti. Esse território, ao se encontrar contíguo à Praça do Marquês de Pombal – um espaço central da cidade – e, em simultâneo, acolher pessoas em posição de isolamento e segregação socioespacial, cuja visibilidade é bastante diminuta, faz dele um espaço paradigmático no qual conviviam o centro e as margens. O «Conde» – designação pela qual era conhecido entre as travestis – foi o território onde desenvolvi a maior parte das minhas atividades de pesquisa.

Constatei que, à primeira vista, as travestis pareciam ser as únicas protagonistas que, durante a noite, prestavam serviços sexuais por se encontrarem facilmente visíveis a quem ali passava. Mas através de uma observação mais atenta foi possível perceber que, ali, existia um número considerável de outros agentes que, direta ou indiretamente, estavam ligados à indústria do sexo, dos quais faziam parte sexshops, saunas, clubes privados de alterne e sexo gay, pensões, residenciais, «puteiros»,  bares de striptease, boates e discotecas, um verdadeiro rodízio de estabelecimentos comerciais que vendiam múltiplas formas de diversão, erotismo, sexo e prazer. A diversidade era tal que conseguia captar, até si, diferentes tipos de públicos em termos de género, orientação sexual, idade, classe e nacionalidade. Por isso, o Conde não era um território onde apenas existiam travestis. Essa é uma ideia errada. As travestis são apenas a expressão mais visível (e também a mais estigmatizada) que ali se encontra na medida em que disputam as ruas e o espaço público para conseguirem trabalhar. Contrariamente a outros agentes que ali atuam, as travestis têm de se valer de uma enorme exposição pessoal, o que leva grande parte da população a associar o Conde às travestis.

Foto:

Assistiu de perto a essa estigmatização?

A estigmatização das travestis é imensa. Como referi anteriormente, os discursos sobre elas, produzidos na sua maioria a partir de um contacto superficial, são geradores de imagens estereotipadas baseadas na "desordem", no "caos" e na "perturbação da ordem pública". A ciência e o conhecimento permitem precisamente contrariar estas ideias e combater o estigma. Este livro tem, por isso, esse sentido, dando às pessoas a oportunidade de se aproximarem de histórias de vidas que, de outra forma, teriam dificuldade de conhecer.

Não falar do problema, claramente foi a solução adoptada pelas pessoas… Este livro também serve para trazer à tona esta discussão?

Claramente. A sociedade não fala das travestis e, quando o faz, aborda-as de forma negativa como relatei. O próprio movimento LGBT, a quem deveria caber um papel relevante nesta matéria, apresenta alguma relutância em falar destas pessoas. Ainda que manifeste preocupações com a vulnerabilidade e a marginalização das pessoas "T", em termos práticos, a sua ação, é fundamentalmente dirigida para a transexualidade, não contemplando no "pacote" das suas preocupações as questões ligadas à travestilidade e, muito menos, ao trabalho sexual.

Veja que, no durante os cinco anos de trabalho de campo, não conheci nenhuma associação LGBT que tivesse ido ao Conde para interagir com as travestis e providenciar-lhes apoio. A distância que apresentam desta população faz com que não tenham conhecimento sobre o seu modus vivendi, as dinâmicas prostitucionais, a precariedade das condições laborais, as práticas migratórias, os riscos inerentes aos processos de transformação corporal ou os níveis de vitimação de que são alvo.

Porque é que considera existir este desinteresse tão grande para com esta realidade?

Numa leitura pessoal, isto parece ocorrer porque a ambiguidade corporal das travestis – expressa, por exemplo, no desejo de preservação da genitália, na mistura de traços masculinos e femininos e na não reivindicação da identidade "mulher" – torna-as, de certo modo, "indefiníveis", trazendo dificuldades ao movimento LGBT que, diante da sociedade, apresenta dificuldade em "explicá-las". Na estratégia política de reconhecimento e afirmação social das pessoas trans, o movimento LGBT acabou por outorgar maior importância às identidades que mostravam maior probabilidade de vir a reintegrar a "normalidade" de género, como é o caso das pessoas transexuais. As restantes, as que, de alguma forma, "perturbavam" a ordem social e colocavam em causa todo o trabalho de legitimação, foram sendo secundarizadas. Em resultado, estabeleceu-se uma divisão entre "bons" e "maus" desviantes de género, que, ao longo do tempo, contribuiu para o desenvolvimento de uma hierarquia dentro da comunidade trans, na qual as travestis se encontram totalmente subalternizadas.

Em que momento se dá essa divisão? E porquê?

Embora a categoria "travesti" seja a mais antiga de todas as categorias de género presentes na sociedade portuguesa, ela foi sendo eclipsada do discurso associativo a partir do momento em que a transexualidade se tornou o discurso dominante. Na tentativa de se consolidar essa identidade, torná-la legítima e distinta, procedeu-se a um ocultamento do termo "travesti" – marginal e "inaceitável" – e, em simultâneo, a um fortalecimento do termo "transexual" (ou, simplesmente, "trans") na intenção de se delimitar e diferenciar aquilo que uma mulher transexual não era, nem devia ser.

Como a prostituição, o VIH/Sida e as dependências estavam intimamente ligadas à vida travesti, a associação de estigmas que muito provavelmente poderia ocorrer com a transexualidade, prejudicaria a sua imagem pública, pautada por uma maior "respeitabilidade". Por isso, identificar uma mulher transexual como travesti acabou por se tornar altamente ofensivo na medida em que a sua identidade – diferenciada, por ter sido construída a partir dos saberes médicos e psicológicos e estar enquadrada dentro das normas binárias de género – poderia correr o risco de vir a ser associada à "desordem", à prostituição, à pobreza, ao espetáculo, ao exagero por via da contaminação do estigma que as travestis carregavam. O receio que estas duas identidades – aparentemente de "lugares sociais" distintos – fossem misturadas, e até confundidas, fez com que o movimento LGBT se demarcasse discursivamente deste termo mal-afamado e reforçasse práticas de deslegitimação, desqualificação, difamação e transformação progressiva da categoria "travesti" numa forma de insulto.

É por isso que vemos e lemos com mais frequência a palavra transexual?

Veja-se que, nos últimos anos, o crescente interesse social e cultural pelo fenómeno transexual fez surgir, em Portugal, uma mediatização das histórias de pessoas transexuais em diferentes revistas, páginas de internet e programas de televisão como telejornais, telenovelas, reportagens e reality shows. Em contrapartida, o fenómeno "travesti" foi sendo silenciado ao ponto de o movimento associativo (e ao contrário do que ocorre no contexto brasileiro) não fazer uso dessa categoria identitária nos seus discursos e intervenções sociopolíticas  por se encontrar ligada a uma forma de transgénero "‘antiquada’ ou mesmo ‘ultrapassada’".

As vidas das travestis trabalhadoras do sexo, ainda que extremamente precárias, parecem não ser tão prioritárias e merecedoras de ativismo LGBT quanto outras. Este livro permite trazer a debate estas identidades "silenciadas", possibilitando a sua visibilidade, reconhecimento, aceitação e humanização.

A regulamentação continua a ser uma realidade distante, apesar das tentativas de petição. Há uma solução à vista? Que modelo poderíamos adoptar como exemplo?

A luta pela concessão de direitos laborais e proteção social às trabalhadoras do sexo deverá passar por uma reestruturação do enquadramento jurídico-político da atividade prostitucional dado, em Portugal, encontrar-se num vazio legal: não é reconhecida como trabalho, mas também não é criminalizada. As recomendações elaboradas pela APDES e subscritas pela Rede de Trabalho Sexual, em 2012, apontam para a necessidade de alteração do artigo 169.º (Lenocínio) do Código Penal, de forma a permitir a organização do trabalho sexual, mantendo-se a condenação, de forma sistemática, de todas as formas de exploração sexual e do trabalho sexual forçado. A forma como está formulada a prática de lenocínio no Código Penal impulsiona para a ilegalidade as relações estabelecidas com atores (gerentes e proprietários de bordéis, rececionistas, taxistas, seguranças, senhorios, hotéis que arrendam quartos para transações sexuais, operadores de sites que gerem os anúncios de trabalho sexual) que facilitam o comércio sexual.

Isto favorece a clandestinidade e consequentemente a precariedade?

Sim, como tal, ele tende a ocorrer na clandestinidade, o que favorece condições laborais mais precárias, sobretudo ao nível da saúde, higiene e segurança, e relações potencialmente abusivas e de exploração difíceis de serem identificadas. Por isso, deverão ser garantidos às trabalhadoras do sexo os mesmos direitos laborais e sociais que assistem qualquer outro trabalhador: direito a condições de trabalho dignas; direito a baixa médica, férias, horas extraordinárias, subsídio de desemprego, reforma; e direito à proteção jurídica e sindical para defesa dos seus interesses (quando lesados).

O que é que tem vindo a ser feito lá fora?

Inúmeras organizações internacionais têm vindo a recomendar a descriminalização total do trabalho sexual, incluindo a despenalização do lenocínio (permitindo a existência de terceiros envolvidos no comércio sexual), pelas crescentes evidências de ser a melhor estratégia de proteger os direitos humanos de quem realiza trabalho sexual, traduzidas na promoção da saúde e bem-estar, na redução da violência, no maior acesso à justiça, na melhoria das condições de trabalho (mais justas e menos abusivas) e no maior controlo do crime organizado.

A Global Network of Sex Work Projects apela à descriminalização do lenocínio a fim de ser concedida aos profissionais maior controle sobre seu ambiente de trabalho e as suas relações com terceiros, buscando criar um ambiente legal e político que permita às trabalhadoras do sexo desafiar as práticas de exploração onde elas ocorrem. Evitar tomar uma posição perante o trabalho sexual é, na verdade, fechar os olhos às extensas vulnerabilidades que as travestis (e restantes trabalhadores do sexo) enfrentam no seu quotidiano profissional. A meu ver, não reivindicar a reestruturação do enquadramento do trabalho sexual é, pois, contribuir para o não reconhecimento desses direitos e para a perpetuação da precarização das condições sociolaborais.

O que há a fazer, para já e durante estes tempos de pandemia, para salvaguardar a segurança e o bem estar destas travestis? Como fazer chegar estas vozes à discussão política e societal?

Desde o início da pandemia que as travestis têm vindo a relatar enorme preocupação com o impacto da Covid-19 nas suas condições de vida e laborais. Muitas delas viram-se confrontadas com a impossibilidade de circular entre «puteiros» dadas as fortes restrições à mobilidade não só em Portugal, comos nos vários países europeus, trazendo consequências na perda de rendimentos. 

Por desenvolverem a sua atividade no mercado informal, a maior parte das profissionais do sexo não foram elegíveis para as medidas económicas emergenciais disponibilizadas pelo governo. Com efeito, a perda de rendimentos acabou por promover enormes vulnerabilidades, tendo tido conhecimento de situações de pobreza, dificuldade de assegurarem as necessidades básicas, como a alimentação ou o pagamento das despesas de água, luz, gás e renda.

A Rede de Trabalho Sexual, da qual faço parte, enviou uma carta aberta à Ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, com o conhecimento dos diversos grupos parlamentares, alertando para a situação de total desproteção que as pessoas que fazem trabalho sexual e seus familiares enfrentam, reclamando um pacote de medidas extraordinário. Todavia, até então, não houve resposta a esta carta.

Que alternativas encontraram estas profissionais do sexo, perante a ausência de apoios?

O desespero levou a que muitas travestis tivessem de continuar a trabalhar durante a pandemia para sobreviver, correndo o risco de serem infetadas por Covid-19 e, inclusive, punidas legalmente por infringirem as regras de confinamento e distanciamento social obrigatório. Esta situação foi, para muitas delas, causadora de enorme sofrimento emocional. 

Em conjunto com os restantes elementos da equipa do projeto Trans-porta (projeto de apoio a travestis trabalhadoras dos sexo onde estive inserido para desenvolver a investigação) tentou-se dar resposta às situações de maior fragilidade social, fornecendo informações, apoio alimentar, apoio psicológico, materiais de proteção (preservativos, lubrificantes, máscaras e desinfetantes), encaminhando para parceiros e serviços de ação social local e, inclusive, acionando a Linha Nacional de Emergência Social - 144 para solicitar alojamento temporário por forma a ser evitadas situações de sem-abrigo.

Neste momento, acho que todos/as podemos tirar algumas conclusões sobre como a falta de enquadramento legal do trabalho sexual pode ter impactos extremamente negativos na vida destas pessoas, já tão estigmatizadas. 

A transfobia é um problema real em Portugal? Que formas de expressão descobriu, como o seu estudo, que ganha, cá?

Sim, a transfobia existe e é um problema real em Portugal. O facto de as travestis exibirem e/ou incorporarem atributos de género não-conformes ao sexo designado no nascimento, torna-as vítimas preferenciais de perseguição e de uma variedade de atos violentos não só em contextos de trabalho sexual, como também fora deles, através de insultos verbais, ameaças, intimidações, assaltos, roubos, agressões físicas, sequestros, tentativas de abuso sexual, violações e, inclusive, homicídios. A violência é, na verdade, o "pano de fundo" da vida travesti. Esta violência, motivada pelo ódio, tende a atuar como uma ferramenta "normalizadora" na medida em que é usada para policiar, corrigir e domesticar (e, se for caso disso, eliminar) determinados sujeitos considerados "indesejáveis": a escumalha da sociedade.

A transfobia encontra-se intimamente conectada a outras formas de opressão, como a misoginia, a homofobia ou o racismo. Por isso, expressar a feminilidade, ser percebida como tendo uma orientação sexual não-heterossexual ou ser portadora de determinadas características étnico-raciais (como, por exemplo, ser negra) é, também, motivo de violência. Algumas travestis, ao congregarem várias identidades estigmatizadas, intensificam a sua vulnerabilidade porque ficam expostas a múltiplas opressões. Apesar dos elevados níveis de vitimação de que são alvo, raramente têm visibilidade na comunicação social. Na maior parte das vezes, essas situações tendem a ser tratadas com alguma apatia ou indiferença por não terem um real interesse jornalístico. Como as travestis são socialmente desacreditadas, as agressões sobre elas são encaradas como "algo normal" e, de alguma forma, justificadas pelo seu comportamento "desordeiro". Somente as mais graves, ou as que resultam em morte, como foi o caso da Luna (Lisboa) e da Gisberta (Porto), acabam por ser mediatizadas. A restante violência, aquela que é diária, é ignorada por ser vista como "não tendo gravidade".

Quais foram as suas maiores descobertas neste sentido?

Constatei, também, que a maior parte desta violência não é denunciada às autoridades policiais. As travestis consideram, por um lado, que as denuncias "não dão em nada" e, por outro lado, receiam reações negativas e transfóbicas por parte dos agentes policiais: de serem discriminadas, ridicularizadas, humilhadas, intimidadas ou, simplesmente, ignoradas, provocando uma espiral de violência, revitimação e retraumatização. Este receio não é infundado. Algumas tiveram, de facto, experiências prévias bastantes desagradáveis com agentes de autoridade que as trataram de forma inapropriada, fazendo troça delas, rindo-se da sua aparência e, muito especialmente, do nome (masculino) que constava no documento de identificação legal. Mesmo estando perante alguém com uma aparência feminina e alterações corporais visíveis, dirigiam-se a elas reiteradamente no masculino, chamando-as de "senhor", situação que é bastante desconfortável, constrangedora, vexatória e atentatória contra a dignidade pessoal. Mas o facto de serem prostitutas agrava ainda mais a situação porque, sobre elas, pairava o total descrédito. Se tinham sofrido algum tipo de violência era porque, certamente, fizeram "por merecer", culpabilizando as próprias travestis pelos crimes de que eram vítimas.

Todas estas situações promovem a sua resistência em deslocar-se às esquadras policiais para denunciar os crimes cometidos contra si. As baixas taxas de notificações são, assim, geradoras de um círculo vicioso através do qual é impossível determinar a real dimensão (e gravidade) do problema, acabando os agressores por não serem punidos e, com efeito, instituído um clima de impunidade. Na generalidade, as políticas públicas tendem a ser desenvolvidas com base em fontes "oficiais" como, por exemplo, as estatísticas criminais. Ora, ao não haver informação adequada sobre o nível de vitimação das travestis, torna-se difícil a implementação de respostas político-legais que as protejam das experiências de violência. Elas saem deste sistema opressivo ainda mais vitimizadas: sozinhas, desprotegidas e um alvo fácil para novas agressões e crimes violentos.

O que é que mais o perturbou, do ponto de visto da impotência e da injustiça, ao descobrir em profundidade esta realidade?

O que mais me perturbou foi constatar que estas pessoas partilham um sentimento generalizado de "desproteção", a todos os níveis, não havendo praticamente ninguém a quem elas possam recorrer em caso de necessidade. Em termos habitacionais, confrontam-se, por exemplo, com a dificuldade de arrendar casa: ou porque os senhorios não vêm com bons olhos uma travesti habitar o seu imóvel ou porque lhes é exigida a apresentação de comprovativos da sua capacidade financeira (que não têm), pelo que, muitas vêm-se obrigadas a viver confinadas em pensões ou partes de casa.

No acesso ao mercado formal de emprego, a discriminação é semelhante. A grande parte das entidades empregadoras recusa a entrada de travestis nas suas organizações, pelo que as oportunidades de emprego tornam-se bastante limitadas. No domínio da saúde, as travestis, especialmente as imigrantes, tendem a apresentar um bem-estar físico e psicológico mais deficitário, afetado negativamente pelas inúmeras dificuldades de acesso aos serviços de saúde, procurando-os, na maior parte das vezes, em casos de emergência ou quando um problema já surgiu. Os serviços de sexologia clínica, por sua vez, não estão alinhados para atender as suas necessidades específicas. Atendendo a que as travestis não se enquadram nos parâmetros médicos, nem reproduzem o discurso clássico da transexualidade, o processo de modificação corporal é-lhes vedado. Ao serem impossibilitadas de aceder a tratamentos seguros e adequados, são levadas a recorrer a automedicação de substâncias hormonais e à aplicação de injeções caseiras de silicone industrial, realizadas em condições precárias e sem supervisão médica, mesmo sabendo dos enormes riscos dessas práticas virem a provocar danos irreversíveis no corpo.

E as suas famílias? Há redes familiares de apoio ou é raro?

Diante de todas estes constrangimentos, as frágeis redes pessoais que possuem, têm dificuldade em assegurar-lhes o suporte e proteção que necessitam. São raros os familiares que se implicam na gestão dos seus problemas. A maioria, quando não as rejeita ou mantêm relacionamentos distanciados, estabelece com elas relações de dependência material. Ainda que as interações no Conde favoreçam a interajuda e minimizem os efeitos dos constrangimentos societários, são escassas as verdadeiras amizades entre travestis. Por essa razão algumas experienciam situações de isolamento e solidão. No domínio institucional, os serviços sociais não estão sensíveis para lidar com as questões da identidade de género e as associações LGBT, como já referi, apresentam um distanciamento físico e discursivo da sua realidade social e, como tal, as reivindicações sociopolíticas não têm em conta muitas das dificuldades vividas por esta população.

Encontrou muitas destas travestis em situações psicológicas fragilizadas?

Não é, pois, de estranhar que todo o conjunto destas vulnerabilidades as ponha em risco de desenvolverem problemas de saúde mental e comportamentos auto lesivos relacionados com o consumo excessivo de álcool e drogas.

Confidencio que houve muitas situações em que eu próprio, depois de longas conversas estabelecidas com as travestis, saía delas, por vezes, emocionalmente esgotado pela intensidade da violência, abuso, negligência e exploração presente nalguns relatos. Experiências de desespero, dor e sofrimento levaram a que, muitas vezes, me sentisse fortemente angustiado e perturbado, pelo que tinha a necessidade de me encontrar sozinho para lutar contra estes meus próprios sentimentos. Admiti-los nem sempre foi fácil porque há sempre o receio de evidenciar uma atitude menos competente, enquanto investigador. Por isso, a opção foi forçar a contenção desses sentimentos a fim de continuar com o trabalho de campo. Eu estava, de certa maneira, preparado para as dificuldades e riscos inerentes ao contexto do trabalho sexual, mas não para a enorme quantidade de "trabalho emocional" que ele envolvia.

O que é que está a ser feito, neste momento, em Portugal, para apoiar esta face da prostituição?

Em Portugal são ainda incipientes as políticas desenhadas para as questões da identidade de género e orientação sexual. Ainda que, atualmente, e pela terceira vez, a Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação (2018-2030) inclua uma área estratégica focada nestas temáticas, com objetivos centrados na prevenção e combate da discriminação; na promoção da sensibilização da sociedade portuguesa; e na implementação e monitorização dos compromissos internacionais de não-discriminação em razão da orientação sexual e da identidade de género, a população travesti trabalhadora do sexo parece não se encontrar contemplada (pelo menos diretamente) nas medidas de intervenção enunciadas. Dado que elas requerem uma atenção especial pela sua condição de maior fragilidade e discriminação, é importante um conjunto de medidas sociais e políticas que garantam uma efetiva proteção e, acima de tudo, dignidade. 

É importante que se defendam os direitos humanos de tantas outras "Gisbertas" e "Lunas", talvez menos mediáticas, mas que correm riscos de, também elas, vivenciarem consequências de uma sociedade profundamente transfóbica.

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