Crónica Isabel Stilwell. Não suporto a ideia de ser acusada de anti-semitismo, fenómeno usado para calar os críticos de Netanyahu

Cresci a ouvir que o horror dos campos de concentração durante a II Guerra Mundial só tinha sido possível porque, na altura, não havia televisão. Numa família que viveu a guerra na pele, em que nela lutaram tanto o meu pai como os meus tios, de ambos os lados, e em que tragicamente dois deles perderam a vida —, parecia-lhes seguro que se a opinião pública tivesse visto com os seus próprios olhos aquela abominação, a indignação teria sido suficientemente poderosa para lhe por um ponto final mais cedo. A convicção era, aliás, generalizada e dela resultavam, e continuam a resultar, as acusações feitas ao suposto encobrimento do papa Pio XII ou ao silêncio da Cruz Vermelha — se tivessem denunciado o que estava a acontecer, milhões de pessoas teriam sido salvas.
E eu quis acreditar que era assim, e sentia-o de cada vez que assistia a um filme sobre o Holocausto, que apesar de ser o milionésimo que via continuava a produzir em mim o mesmo choque pela brutalidade de que um ser humano é capaz contra outro, pela forma como estas vidas foram “coisificadas”, num estranho processo mental que as desclassificava a uma subespécie a exterminar, eliminando todos os resquícios de empatia, numa cadeia de pequenos males que aniquilava o sentido de responsabilidade pelos crimes que se cometiam. Afinal, estávamos a falar de gente contemporânea dos meus pais, não de homens das cavernas.
Por isso, sim, queria pensar que não se repetiriam nunca, não agora que corajosos jornalistas de guerra tinham não só câmaras, como a possibilidade de transmitir em direto, menos ainda nos últimos anos em que todos possuímos um telefone inteligente e a capacidade de “postar” para o mundo. Mas enganei-me redondamente. É mentira! Podemos ver e ficar de braços cruzados, podemos saber e não fazer nada, podemos encontrar bodes expiatórios para acarretarem com a culpa da nossa indiferença, porque, se formos honestos connosco próprios, temos de reconhecer que continuamos a dividir o mundo em pessoas de primeira e de segunda, que quando estão em jogo grandes poderes, temos facilidade em encontrar pretextos para nos afastarmos do assunto.
As imagens que nos chegam de Gaza, apesar da proibição de entrada dos jornalistas e das cadeias de televisão ocidentais, são da maior barbárie e agora que a fome entrou com o propósito de matar, engolimos em seco. Crianças com tiros em diferentes partes do corpo, alvejadas como se fossem coelhos numa batida, centenas de pessoas assassinadas pelo crime de quererem chegar aos alimentos distribuídos, num país reduzido a destroços pelas bombas, privado de tudo, quando ouvimos relatos de médicos britânicos em missão de auxílio, a quem foi confiscado das bagagens o leite em pó destinado aos bebés subnutridos. A lista é terrível e interminável e já não é possível afirmar que a informação que nos chega é propaganda.
Vemos, mas afinal a única coisa que mudamos é de canal, num clique rápido no comando para que aquela criança deixe de nos fitar nos olhos. E calamo-nos, eu pelo menos tenho estado calada porque o 7 de outubro foi um ato terrorista de um horror indiscritível e me identifiquei com todas aquelas mães, com todas aquelas famílias inocentes, porque podia ter sido eu a dizer, como aquele pai de uma menina feita refém, que a preferia saber morta junto de mim, a capturada e sujeita a violências indiscritíveis, sozinha e aterrorizada; porque tenho consciência plena de que cada palestiniano morto dá um jeito extraordinário ao Hamas, que se está absolutamente nas tintas para o seu próprio povo, que rejubila por cada herói que Israel faz o favor de produzir, garantindo-lhe um exército de novos recrutas inflamados de dor e desejo de vingança, que mantém os reféns para acicatar a guerra, mas também, tenho de o reconhecer, porque não suporto a ideia de ser acusada de “anti-semitismo”, um fenómeno real e condenável, mas que tem sido usado para calar todos os críticos de Netanyahu e do seu governo. Utilizado, mesmo dentro daquele país, para silenciar todos os que recordam que, na prática, o Hamas venceu a partir do momento em que conseguiu que Israel deixasse cair qualquer sombra de compaixão, como se tivesse esquecido os horrores de que os judeus foram vítimas ao longo dos séculos.
Quando vejo imagens de Gaza, e oiço os ideólogos das decisões de Netanyahu, Donald Trump à cabeça, promovendo o fechar dos palestinianos em “campos de confinamento” ou de os obrigar a partir da sua própria terra, só me vem à cabeça o mês de setembro de 1497, em que o rei D. Manuel I, na sequência do seu édito de expulsão dos judeus e mouros, atraiu ao Rossio mais de cem mil judeus com a promessa de que os deixaria partir de Lisboa, o único porto que deixara aberto no país. Mas uma vez concentrados num terreiro adjacente ao palácio dos Estaus, o rei anunciou apenas duas opções a esta gente deixada durante dias à fome e à sede: a conversão ou a prisão perpétua/morte, sendo que a muitos já lhes tirara os filhos menores de 14 anos. O cronista Rui de Pina, enviado à cidade para fazer o relato do sucedido, não consegue esconder o incómodo que lhe causou esta cilada, enquanto nos descreve como os soldados levavam os judeus em prantos dali à Igreja de Santa Justa, onde eram batizados, todos exceto uns quarenta ou cinquenta irredutíveis, que preferiram a morte a abjurar. Rui de Pina procura atenuar esta mancha negra no currículo de um rei tido por tolerante, recordando que D. Manuel só procurava salvar-lhes a alma, tornando possível a devolução dos filhos, isentando-os até de taxas e impostos, assegurando que desde que aceitassem as condições podiam viver tranquilos em Portugal, coisa que o futuro e a inquisição se encarregaram de desmentir.
É disto que me lembro, mas recordo também as vozes dissonantes que nesse mesmo tempo se levantaram, a do bispo do Algarve que protestou publicamente contra o escândalo das conversões forçadas, as famílias cristãs que esconderam os meninos judeus para os entregar aos pais assim que as “brigadas” reais deixavam a sua vila ou cidade, o exemplo daqueles que, com enorme coragem, respeitaram e fizeram respeitar os seus concidadãos de outras religiões e etnias. Foram essas as vozes que promoveram a mudança e tornaram o mundo melhor, mesmo que tantas vezes nos pareça continuar igual, é uma dessas vozes que mais de quinhentos anos depois temos de conseguir ser. Por Gaza, pela Ucrânia, por todos os lugares onde os direitos humanos são espezinhados, mas acima de tudo por respeito a nós mesmos, porque são estes os momentos que nos definem enquanto pessoas.
