Bret Easton Ellis: “Escrever era mais divertido que a cocaína.”
Escritor absoluto e ícone de várias gerações. O autor do “Psicopata Americano” falou-nos de atração sexual, literatura e Moda, a propósito do seu novo romance “Estilhaços” – livro de suspense capaz de questionar o desejo heterossexual e gay? Quem deseja quem afinal? Quem se assume? Quem morre?

Bret Easton Ellis pega numa almofada e aperta-a contra o peito. Senta-se à nossa frente num pequeno sofá na sala de conferências da Fundação Luso Americana, em Lisboa. A chuva parou na Lapa. Depois de um aperto de mão tentamos uma primeira abordagem, "essa almofada, funciona como uma proteção?" Bret solta uma gargalhada, não responde. Vai ficar abraçado ao acessório de veludo azul durante toda a entrevista. Descontraído, quase se deita no sofá demasiado pequeno para ele. As pernas gigantescas estão dentro de umas calças de fato de treino pretas, o seu polo não tem marca aparente, é também preto. O escritor de culto de 59 anos habituou-nos a descrições detalhadas das roupas que vestem as suas personagens, aqui assemelha-se a um contrarregra de teatro, ou um marionetista que em palco tenta desaparecer enquanto dá voz a uma história. O seu primeiro romance, Menos que Zero, publicado em 1985, não parou de fascinar gerações. O seu estilo depurado e hipnótico descrevia a juventude de Los Angeles entre a paranoia e uma busca de sentido para uma existência hedonista. Tornou-o numa estrela mundial. Seguiram-se As Regras da Atração (1987) e o polémico Psicopata Americano (1991) que mais tarde se tornaria num filme, o ator Christian Balle emprestou o rosto a Patrick Bateman, personagem inesquecível, capaz de transpor as barreiras da ficção. Há quem tenha tornado Bateman num ídolo para o quotidiano. Sátira, fantasia ou realidade? O livro não deixa ninguém indiferente e a fama de provocador nato cola-se a Ellis. Publicou depois romances num ritmo irregular; em Glamorama (1998) continuava a descrever uma sociedade fascinada pelo capitalismo e a celebridade; em Lunar Park (2005) metia-se em cena, uma auto-ficção para lidar com questões ligadas ao pai.
Na última década tem feito sobretudo um podcast, onde tenta desvendar obsessões ligadas ao cinema, arte ou sexo. Estilhaços é um romance que nos obriga a trancar a porta de casa, tal é a sensação de paranoia instalada durante a leitura. Bret mete-se em cena novamente, conta-nos o seu último ano de liceu quando já tentava escrever Menos que Zero. Um assassino em série faz desaparecer pessoas em Los Angeles. O jovem Bret sente-se observado. Seguimos em detalhe as suas aventuras sexuais, mulheres e homens – em 1981, quase tudo se fazia em segredo. Esta entrevista não contém spoilers.


Podemos começar a falar de pornografia?
Claro.

A personagem do jovem Bret de Estilhaços pensa em vários homens para se masturbar. Um deles é um célebre ator de filmes para adultos. No teu ensaio Branco (2019) evocavas a quantidade de pornografia a que os jovens têm acesso atualmente, comparando-a à escassez pornográfica do início dos anos 80. Dizias que nessa altura ir a uma sex-shop era um commitment.
Achas que a internet matou a nossa possibilidade de fantasiar?
Comecei a ver muita pornografia recentemente. Tenho pensado muito em fazer alguns podcasts sobre pornografia gay e sobre como todos os atores populares na pornografia gay são todos heterossexuais... fazem o que se chama de "gay for pay". E comecei a ver muitos clipes, não para me excitar, apenas queria ver quem atuava melhor ou quem gemia de forma mais autêntica. E reparei que não se pode ver demasiada pornografia, pode ser prejudicial para a vida sexual. Nunca pensei que isso fosse uma coisa real. Eu só queria mesmo escrever sobre o que era fazer gay for pay.

Mas começaste a falar com esses atores porno?
Eu escrevia-lhes, enviava-lhes e-mails. Seguia-os no Twitter. Queria saber porque o faziam, e conheço algumas das histórias. Alguns desses miúdos vão para as forças armadas ou vão fazer porno. Quando percebem que são 20 vezes mais bem pagos a fazer porno gay (do que hétero) dizem: "dêem-me um Viagra". De qualquer forma, é só disto que estamos a falar – o investimento, e tudo isso está ligado ao meu livro Estilhaços.
Por exemplo, eu nunca tinha ido ao site Goodreads, até porque eu já não escrevia um livro há 13 anos... Mas fiquei meio chocado com muitas ideias que ali circulam. Não queria acreditar em como os leitores mais jovens são tão púdicos. Muitos pareciam realmente enojados com as cenas de sexo do meu livro. Eu queria escrever estas cenas de sexo da forma mais honesta possível, foram inspiradas diretamente nas minhas experiências. Queria escrever sobre elas, tal qual como aconteceram comigo quando tinha 17 anos. Os três protagonistas do livro, o Dennis, o Matt e o Ryan aconteceram-me. Apercebi-me que nem tinha de idealizar nada nessa fisicalidade.

O lado físico, entre vocês todos, era realmente assim, como no livro?
O lado físico da época chocou-me... (pausa). Havia algo que me andava a assombrar desde o começo de 2019. A personagem de Matt Kellner? O que andava ele a fazer comigo naquela altura? Porque tinha sexo comigo? Nunca fomos a um cinema juntos ou a um restaurante, mal falávamos na escola. Eu percebi que ele tinha sido o meu primeiro amor e só percebi isso aos 57 anos. Em 2019 eu não conseguia deixar de pensar no sexo que tínhamos, não conseguia parar de pensar em nós. Não consigo deixar de pensar nesse físico.


Falas do cheiro dele a certa altura no livro.
Quase podia ter tido um acidente de carro, porque era como se ele estivesse sentado ao meu lado. Deitava-se na cama ao meu lado, e eu falava com ele em conversas imaginárias e percebi que tinha de escrever sobre isso. E também tentei escrever sobre o produtor de cinema que me faz sexo oral, a certa altura, no livro. Já tinha tentado fazer isso, em 1981, no Menos que Zero, mas troquei as voltas e meti outra personagem a ter essa experiência. E para mim aquilo não foi traumático... Estes jovens, que são agora tão púdicos no que toca as cenas de sexo, vão pensar: ‘ah finalmente estás a lidar com o teu trauma de teres sido agredido num hotel por um homem mais velho’, e eu penso que aquilo não foi uma agressão. O meu trauma foi todo o amor não correspondido que experienciei na época e não o facto de me ter sido feito um broche por um produtor de 40 anos.
No teu romance Glamorama (1998) havia já uma cena de sexo marcante, a cena passada num barco...

As cenas de sexo têm de fazer parte da estrutura dramática do que está a acontecer. Não podem ser simplesmente atiradas para ali. Para que funcionem plenamente têm de ter algum tipo de ideia emocional por trás, ou então é como escrever pornografia. As cenas têm de estar ligadas ao enredo ou aos sentimentos emocionais da personagem em relação a alguém. Têm de ter a ver com a sua luxúria. Não se pode só deixar aquilo cair ali no meio.
Mas o que é que mudou na forma como escreveste as cenas de sexo em Estilhaços? Apercebeste-te de que tinhas tido um primeiro amor? Estavas mais vulnerável ao escrevê-las por isso?
Claro que estou mais vulnerável. Eu agora sei que sou capaz de me estar nas tintas. As cenas de sexo no Menos que Zero eram um pouco frias e juvenis, como eu era. No Psicopata Americano era pornografia, e o Patrick Bateman não conseguia ver mais nada para além disso. Ele vivia o sexo como pornografia. E depois, no Glamorama, a cena de sexo estava lá para provar que personagem podia ser gay...escrevi essa cena em 1996, acho.

Em Estilhaços escreves sobre o mundo pré-digital em que os segredos eram mais fáceis de guardar. É bonita essa ideia de ter segredos.
Todos nós tínhamos segredos. E eu era provavelmente o que tinha mais, mas nessa altura as pessoas tinham segredos impossíveis de guardar nos dias de hoje.
A escritora Joan Didion é constantemente citada por ti neste livro, por este jovem Bret que narra a história. Tu conheceste-a? E achas que devemos conhecer os nossos ídolos?

A Joan Didion foi uma grande influência para mim. O Menos que Zero foi baseado no ensaio dela Slouching Towards Bethlehem e no White Album. Portanto, houve coisas que fui buscar diretamente à Didion. Ela teve um enorme impacto em mim. Ela, tal como Hemingway, ensinou-me que o estilo é tudo. O estilo é o veículo. Todas as histórias contadas dependem da forma como são contadas, dependem da voz. E eles mudaram-me as ideias. Na escrita deles o que importava era a forma como as coisas estavam a ser contadas, as palavras que estavam a ser usadas e como eram usadas. (pausa)
Acabei por conhecer a Joan bastante bem. Eu conheci-a porque a filha dela andou na minha universidade. Ela dedicou-me um livro. (pausa)
É difícil estar perto dos nossos ídolos. E para mim era um bocado difícil estar com ela. Não é que ela fosse difícil como pessoa, mas eu ficava uma pilha de nervos.


Porque voltam as tuas narrativas sempre para Los Angeles?
Os anos em que lá vivi formaram-me. Acho que isso fez com que voltasse lá sempre. Eu queria ter escrito este livro em 1982, quando eu tinha aquela idade aquelas coisas aconteceram mesmo comigo. E não sei... Talvez seja só porque nasci em Los Angeles. Além disso, escrevo sobre os locais onde me encontro. Apercebi-me que queria escrever Estilhaços há 40 anos. Mudei-me de Nova Iorque para L.A. em 2006 e estava sempre a pensar escrever esta história do ponto de vista de um jovem de 17 anos (...) Em 2013 apercebi-me de que tinha de ser o homem mais velho, de 57 anos, a contar a história, e não o rapaz de 17 anos. Então tudo se abriu para mim. E o livro acabou por me dizer: ‘Aqui estou’.

Tu viveste os anos 80, mas fizeste alguma pesquisa adicional? Porque quando evocas a presença do pintor David Hockney num restaurante ou as vitrines das lojas de música, enquanto leitores sentimos que mergulhamos realmente na L.A. da época…
Eu próprio fiquei admirado de como me lembrava de tudo. Mas queria ter a certeza de algumas coisas que foram difíceis de encontrar. Não há quase fotografias do restaurante onde vou almoçar com o produtor da agressão (onde está o Hockney). Ou das galerias onde o Bret se encontra com o Robert, isso foi frustrante, porque eu queria mesmo obter a disposição exata das lojas. Eu sou velho, e por isso tenho um jovem informático que trabalha comigo há anos, ele é ótimo, chega a levar-me para a dark web, ele consegue encontrar fucking everything.
O Bret deste livro está sempre a dizer que quer escrever. E tu no documentário Last Exit dizes que a escrita te salvou... Salvou-te de quê? Da depressão? Da ansiedade?

Escrever liberta tudo. É paz, é felicidade. Escrever sempre foi para mim uma forma de ultrapassar os meus problemas, ultrapassar a minha confusão ou o meu pai ou o amor não correspondido. E a vida em geral... Ultrapassar a celebridade e essa confusão que acabou por se tornar central no meu romance Glamorama. O "eu" real e o meu duplo e todas essas confusões que me aconteceram depois de ter lançado Psicopata Americano. Portanto, sempre foi assim. E eu não sou um escritor de carreira. Não recebo adiantamentos da minha editora, não assino contratos para fazer três livros de seguida. Para mim escrever é um hobby, é divertido. E sim, gostava de ter escrito mais livros. Odeio esta ideia de que passei os últimos 14 anos da minha vida a tentar escrever para séries televisivas em Hollywood.
Os teus livros sempre abordaram temas de saúde mental. Neste livro há um momento em que um internamento (de Robert) é evocado, e o teu personagem, o Bret, reage mal.
Sim.

Atualmente fala-se muito de saúde mental, achas que é falso este interesse que existe pelo tema?
Sim. (risos). Se o Robert Mallory tivesse 1,65 de altura e 111kilos não haveria Estilhaços. Trata-se de obsessão. Tem a ver com luxúria. É sobre perceber que este belo rapaz que eu nunca vou ter para mim está disposto a destruir o nosso grupo de amigos... E isso vai fazer com que tudo isto aconteça, e eu Bret quero estar de alguma forma exposto a isto. No que diz respeito à saúde mental do Robert, penso que ele era um miúdo ligeiramente problemático, mas estava bem. E além disso, em 1981 não havia qualquer discussão sobre saúde mental porque ninguém tinha conhecimento de alguém com esse tipo de problemas.
Mesmo com mortes como a da Marilyn Monroe, figura tão presente na cultura americana?
Mas isso não eram os miúdos da América sabes... (pausa). Não havia suicídio de jovens como agora, não sei, mas as taxas de 1981 para 2021 devem ter disparado de forma louca... Bem não sei. Em Estilhaços é outra coisa que acontece. Quando eu penso em 2021, penso numa época horrível, e só me apetece estar em 1981. Não quero estar neste mundo de agora. Por isso, penso que, em parte, escrever Estilhaços foi uma fuga ao que estava a acontecer no mundo. Aqueles eram tempos muito inocentes, com muita liberdade.

Falas com alguma nostalgia dos anos 80, podes evocar-me a Nova Iorque à qual chegaste quando deixas Los Angeles, depois do sucesso de Menos que Zero, e estás a escrever Psicopata Americano? Podes falar-me da cidade a que chegas com 20 e tal anos? Pareces ter-te divertido muito... Descobrias a fama nessa altura também?
A Nova Iorque com que eu fantasiava era da década de 1970.
A Nova Iorque do Times Square – perigosa, ousada e artística que existe nos filmes de Woody Allen. Que eu vi em French Connection de [William] Friedkin. A Nova Iorque para a qual me mudei era a da loucura yuppie de Wall Street do final dos anos 80, onde tudo se resumia a superfície, superfície, superfície... E em ser um homem e ser isto e isto e isto. Eu era jovem, e queria integrar-me. Por isso, comecei a inspirar-me em todas essas coisas que estavam na cultura e que as pessoas diziam que era preciso ser. Queria integrar-me, só que eu não conseguia adaptar-me. Não conseguia fazer parte daquilo e estava a tentar adaptar-me. E o que acontece quando tentamos adaptar-nos a uma sociedade, mas não concordamos com os seus valores? Ficamos loucos, certo? Eu era jovem, por isso queria divertir-me. E é verdade que a fama que tinha experienciado aos 22 anos começava a não ter tanta piada aos 23 ou 24. Eu sempre tive um tipo de fama notória. Era uma fama sempre controversa. O Psicopata Americano teve críticas péssimas e muito boas.
Nessa altura foste cancelado?
As pessoas questionavam-se sobre como tinha sido possível adiantar dinheiro a um "agarrado" para publicar um livro. Diziam que eu era um junkie e que era lixo o que fazia... e sempre foi assim para mim, nunca houve prémios e aclamações ou uma enorme efusão de amor. Tem sido sempre muito negativo, especialmente no meu país. Mas isso não me interessa... E também me meti em sarilhos em discotecas, e as pessoas diziam "lá está o Bret Easton Ellis a sair de outra discoteca às quatro da manhã". Fumava um cigarro e alguém me tirava uma fotografia. E eu pensava, "tenho 24 anos. Claro que vou a uma fucking disco. O que é que querem que eu faça?" Enfim, era tudo assim. Era tudo um bocado confuso. Mas a questão é que escrever era mais divertido do que a cocaína. O Psicopata Americano era mais divertido do que a cocaína. O Patrick Bateman era hilariante. E acho que essa foi uma das razões pelas quais nunca me tornei num viciado em cocaína.
Mencionaste o facto de te quereres adaptar quando chegaste a Nova Iorque. E eu estava a pensar nestes miúdos que vemos no Tik Tok agora, eles adoram mesmo o Patrick Bateman.
Bem eu não os vejo realmente. O meu namorado, que tem 36 anos, fala-me disso. Sei que são miúdos sem ironia, são machos sigma... Mas sabes que mais? Porque é que não pode ser assim?
Eles têm uma vida em que não conseguem ganhar dinheiro. E é claro que vão admirar alguém que seja atraente com um corpo fantástico, que tem uma namorada, um ótimo apartamento, muito dinheiro, um bom guarda-roupa. Quer dizer... (pausa) Qual é o problema de ele ser um assassino em série? Na verdade, ele também pode não ser um assassino em série. Mas e se ele for um assassino em série? É melhor ainda, é mais poderoso. Na nossa cultura atual acho que faz todo o sentido que o Patrick Bateman seja visto assim.
Mas ele sempre foi visto dessa forma em determinados meios. O rap e a cultura do hip hop foram os primeiros a adorar o estilo de vida de Patrick Bateman, que era considerado o verdadeiro "OG" (Original Gangster). Eu trabalhei com o Kanye West num projeto que nunca aconteceu, por ele ser tão fã de Psicopata Americano. O Patrick Bateman estava ligado ao materialismo, ao estilo de vida do gangster, ao tiroteio, a um carro da polícia que explode... mesmo que fosse uma fantasia. Tratava-se de poder.
E de vingança social?
Isso, vingança social.
Costumo dizer que no livro Glamorama inventaste o hashtag como as pessoas usam nas redes sociais agora.
(Fica pensativo) Isso é tão cómico. Não te referes ao Psicopata Americano?
No Glamorama, a maneira com mencionavas celebridades e marcas e restaurantes de luxo é como as pessoas fazem agora com os hashtags nos posts: #naomi #gucci #supermodel...
Isso era apenas um sentimento que eu tinha na altura. Era algo que sentia no ar. Não era de todo o meu objetivo. [muda de tom, meio dramático]. Por favor dêem-me dinheiro, dêem-me o dinheiro do hashtag (risos).

Em entrevistas recentes tens falado do teu namorado. Durante muito tempo matinhas um mistério relativamente à tua vida privada – não te assumias?
Vivia num armário de vidro. Eu estava num armário de vidro, toda a gente sabia que eu era gay. Todos os meus amigos e toda a minha família. Nunca encarei o facto de ser gay como algo identitário, sou dessa geração. Eu sou mais do que um gay, eu sou um escritor, sou um ser humano, uma pessoa. Adoro livros, adoro filmes, adoro música e sou gay. Portanto, sempre vi as coisas assim. [Usa um tom de gozo]. Desculpem, pessoas mais novas, mas não me defino como sendo gay. E durante os anos 80 eu não queria ser conhecido como um escritor gay. Achava que os meus livros já eram suficientemente gay (risos). Quando falava com meios de comunicação nunca menti, não disse que era hétero ou tinha uma namorada. Eu era brincalhão e fazia piadas, qualquer pessoa que fosse gay conseguia perceber. E depois foi algo que me bateu com a idade.
Estava em 2005 a dar uma entrevista ao The New York Times e percebi que por causa do Lunar Park (romance sobre o pai, auto-ficção em que tem uma relação com uma atriz) as pessoas achavam que eu era casado e tinha um filho (risos) e senti que tinha de clarificar que era gay e não tinha uma mulher escondida algures.
Partir esse armário de vidro mudou alguma coisa?
Não, não mudou nada, era outra época, 2005.
Nesta entrevista já pediste desculpa às pessoas mais novas... Um pouco por não seguires os ideais da época, isso leva-me a um texto que escreveste para a Vogue Itália sobre a inclusão e a representatividade...
Ah, eu tive problemas por causa desse texto.
Dizes que a inclusão é uma mentira progressista?
Continuo a concordar com tudo o que escrevi. Tudo o que é progressista é mentira. Não é a realidade, é uma utopia. É maravilhoso pensar nisso, mas a realidade do mundo sugere o contrário. Gostaria que olhasses bem para o que se está a passar no mundo agora, em todas as fações. E depois podes falar-me de inclusão, diversidade e tribalismo. E eu vou-me rir na tua cara. Portanto, lembro-me de ter tido problemas com esse texto, mas ele foi publicado (risos) e ainda bem. Eu já fui cancelado, sempre tive problemas com as coisas que disse. Não suporto este disparate de o mundo da Moda usar numa passerelle pessoas com Síndrome de Down e pessoas sem pernas. Acho que o serviço prestado a essas pessoas e à Moda entra na absurdidade.
Viste o documentário Supermodels na Apple Tv?
Sim, elas eram deusas. Agora têm de fazer um igual sobre os homens, sobre o Marcus Schenkenberg e assim. Eles eram deuses comparados com estes miúdos horríveis que eles mandam para lá agora. É terrível olhar para esta noção de beleza inclusiva, parece-me não ser de todo verdadeira.

Mas nesse documentário aparece uma Linda Evangelista envelhecida e fragilizada com problemas de saúde, não ficas desiludido com isso?
Não. Para mim importa o tempo em que o poder delas estava consolidado, e nós éramos honestos nessa reação, elas eram sublimes. Toda a gente queria dormir com elas ou ser como elas...eram as nossas deusas. Odeio quando, mais tarde, as supermodelos se transformaram num anúncio de serviço público sobre todo o bem que estão a fazer nas escolas em África e tretas sobre o cancro. A Apple tem ideias muito woke. Estragam alguns documentários com esse tipo de coisas.
Para acabar, posso perguntar-te o que te faz sonhar ainda? Por exemplo, aqui nesta viagem a Lisboa em que estás sozinho?
Não sei, talvez a minha paixão pelos livros. Estou a ler um romance incrível da Edith Wharton chamado The Custom of the Country, é uma alegria. Dá-me prazer de manhã. Mas nunca olhei para a vida dessa forma "sonhadora". Para mim tratou-se sempre de fazer coisas e de ter prazer. Foi sempre uma questão de diversão. E acredita em mim, há dor suficiente no mundo para te perderes nela.
E eu adoro música, livros e filmes. Tive uma adolescência muito boa... (pausa). Bom, não gostava de ser gay... Por isso, aos 17 anos, estava zangado com isso. Mas também olho para trás e penso: "Meu Deus, eu fazia parte de uma banda e estava a escrever os meus três primeiros romances". Vi todos os filmes que saíram nesse ano. Foi a melhor década de sempre para o Cinema. Vi alguns dos melhores concertos, bandas e coisas do género. Eu queria muito tornar-me num adulto... E tive alguns desgostos ligados a amores não correspondidos. Eram sobretudo rapazes de quem eu gostava e que não eram gays, isso era um tema. Mas os meus sonhos... Não sei realmente se tinha algum sonho. Uma coisa é certa, nunca pensei poder ter uma carreira como romancista, pensava que me ia tornar cineasta ou argumentista.
