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Crónica de Natal: ideias para sobreviver a desgostos de amigos

Foto: IMDB / Little Woman
21 de dezembro de 2023 às 16:57 Patrícia Barnabé

Como o amor, a amizade mostra do que é feita, do que realmente é capaz, quando é posta em causa. Somos todos ótimos quando estamos bem, se calha estarmos mal, podemos tornar-nos erráticos, inconsequentes, egoístas, zangados, mas também alvo fácil de injustiça e incompreensões. Experimentem perder o chão e saberão quem são os vossos amigos. Uma forma universal do amor, a amizade é menos exigente porque é independente, por isso revela-se numa travessia do deserto. Nos momentos de viragem, de feng-shui do coração, depois de voltarmos ao que somos e passada a dor, é um alívio e uma lição de humanidade. Como num romance.

Poucas coisas são tão difíceis na vida como amar sozinho, já cantava o Salvador Sobral. E nem sempre somos capazes de amar pelos dois, principalmente quando já o fizemos algumas vezes. Um dia, uma pequena revelação, um nada, torna evidente esse desequilíbrio e sentimo-nos abandonados no nosso amor pelo outro. E sozinhos seguimos em frente, no vazio de perceber que aquele que adorámos pode nunca nos ter adorado. E, pior, pode nunca ter-nos conhecido profundamente. E agora parece tão fácil ser-se fantasma na vida dos outros, a cobardia do ghosting, frio e distante, é um abandono fácil ao nível do mundo superficial em que vivemos, está na escala de valores das redes sociais. 

Uma lição que aprendo com a amizade é que boa parte dela é melhor a fazer sala do que a abrir-se ao outro. A maioria tem medo da honestidade porque nunca a aprendeu, ou porque esta nunca lhe foi realmente permitida em casa ou na escola. Por feitio ou porque quer que a sua vida seja um post com filtros.

Deve ser por isso que me "acusam" de ser ingénua. Já recebi de tudo, mas nunca estamos preparados para irritarmos os outros, ou sermos invejados, pela nossa inocência, mesmo que esta seja uma sorte maior. Só os que acreditam se dedicam e preocupam verdadeira e profundamente. Somos mais enganados, claro, mas também desculpamos depressa, mesmo quando nos atiram para cima o que não somos, que é a pior parte de todas. O Aristóteles, que a sabia toda, distinguia três tipos de amizade: a utilitária, a baseada no prazer e a baseada no carácter. As amizades baseadas no carácter nunca nos estranham.

Outra das questões interessantes é que, na generalidade, as pessoas lidam muito mal com opiniões diferentes, muito menos com a frontalidade. Ainda mais agora que somos todos primadonas a discutir as grandes verdades da vida. Ainda mais agora que não se pode dizer nada, muito mais aos wokes da moda que só há uns anos se zangam realmente com certas causas. E estamos a deixar o verniz social sobrepor-se à profundidade, mais uma vez. Por mim, continuo a preferir o conforto da verdade e da partilha de ideias, sem merdas nem meias palavras. É muitas vezes no que não queremos ouvir que crescemos e, quem sabe, nos tornamos melhores.

"A amizade não se alimenta de encontros episódicos ou de feitos extraordinários. A amizade é um contínuo. Tem sabor a vida quotidiana, a espaços domésticos, a pão repartido, a horas vulgares, a intimidade, a conversas lentas, a tempo gasto com detalhes, a risos e a lágrimas, à exposição confiada, a peripécias à volta de uma viagem ou de um dia de pesca. A amizade tem sabor a hospitalidade, a corridas atarefadas e a tempo investido na escuta." in Nenhum caminho será longo, 2012, do incrível José Tolentino Mendonça, que acaba de receber o prémio Pessoa 2023.

Por isso, num tempo ensimesmado, em que as pessoas se fecharam porque o seu mundo, e o mundo em geral, se complicou, na pandemia, na crise, nas transformações quase irremediáveis da vida, e as suas verdades – onde passou a caber o outro? A generosidade para antecipar o outro, para nos aproximarmos e sentirmos com ele? Não acredito nos amigos que tomam conta, não se pede isso a ninguém, mas nos amigos que nos fazem a mesma festa no cabelo quando pousamos a cabeça no seu colo. Foram às suas vidas, mas nunca se foram embora.

Cedo aprendi a gostar das pessoas como são, refilo, estrebucho, mas aceito as suas impossibilidades, como tento aceitar as minhas. Não se pode pedir ao outro o que ele não tem para dar. Ou não consegue, naquele momento. E já nos perguntámos porque é que ele não pode? Ou estamos sempre, só e apenas, a olhar para nós? Por isso é que não acredito na generosidade de quem cobra, cobrar é egoísta, não temos o direito de exigir nada. É bonito quando alguém sente a nossa falta, ou quer a nossa atenção, e é precisamente nessa ausência, muitas vezes incompreensível e dolorosa, que muitas coisas se tornam claras. Há amigos que foram só ali e há os que nunca mais voltaram.

Vivemos fechados no nosso umbigo e nas nossas tarefas diárias, cada um à sua maneira, por isso nem sempre percebemos quando o mundo do outro desaba e precisa de abraços como vigas. Todos precisamos de abraços, mesmo quando não sabemos. Mas também é importante saber pedi-los, e alguns de nós não nasceram com essa qualidade, o que é tramado. E piora quando a realidade nos submerge. É aí que aprendemos com os amigos pajens, as damas de companhia especialistas em adulação, a estar atentos: normalmente o culpado do crime é o mordomo.

As amizades passam por fases. São oscilantes, como o amor. A sua sorte é não subentenderem dependência. As saudáveis. Não precisar e amar é muito absolutamente sensacional, diria eu atropelando a gramática. Nada na vida permanece, bem ou mal, mas o abandono é sempre triste, é do mais raso. Já todos fomos abandonados por amigos, e já abandonámos também, porque nos apaixonámos, tivemos filhos, mudámos de cidade. Mas quando estamos juntos, sabes que o teu amigo está lá porque te olha da mesma maneira. Nunca te estranha. A pior amizade de todas é a intolerante, porque não é. Não faz mal haver amigos menos capazes, distraídos ou com menos tacto em pequenas coisas. Não ligues se não te disserem nada depois de passarem à tua porta, ou não te convidarem para o bilhete extra no concerto que sabiam adorares. São nadas desimportantes. Liga se não repararem que a vida te desabou e choravas em silêncio, liga quando não perceberem sequer porque estás com mau feitio. Quando tiveres saudades de um amigo, chama-o, convida-o, lança programas – e observa a sua resposta: if there's a will there's a way.

As pessoas cruzam as vidas umas das outras e nem sempre permanecem, está tudo bem, faz parte. Estamos sempre em mudança e às vezes crescemos para lugares diferentes, a vida afasta. Tal como o nosso corpo rejeita os desperdícios, a gordura e a água de que já não precisa, os amigos também se podem despedir, de uma forma mais ou menos elegante. É pena, mas alguns têm validade, e temos de deixá-los ir. Essa é a última, e a mais nobre, qualidade do amor. Sempre tive dificuldade em despedir-me de amigos, a afeição é um defeito, e creio estar ligado ao mesmo fio da ingenuidade. Mas os amigos de carácter permanecem, e esse carácter está nas piadas mútuas como no silêncio.

Há dias li um artigo de Psicologia que me ensinou que é um erro pensar que a amizade é baseada na admiração mútua. Fogo, eu "casava" com alguns dos meus maiores amigos! Mas o tempo sempre revela. Como as tempestades, o tempo levanta o lixo. O tempo ilumina os recantos dos outros e os nossos, o que é bom. O que é óptimo (com p) é que esses tais amigos maiores, apesar dos nossos podres, fragilidades, defeitos e momentos, não gostam de nós apesar deles, mas por eles:

Dizia o tal artigo, e perdoem-me por não saber de onde tirei estas notas, mas parece-me uma perfeita mensagem de Natal: "No fim de contas, a amizade é um reconhecimento da nossa humanidade imperfeita; construída não através de uma cuidadosa autocura e tacto, mas de honestidade e vulnerabilidade. (...) É por isso que é tão difícil fazer amigos com significado - e é por isso que os amigos que fazemos são muitas vezes tão insatisfatórios. A nossa compreensão da amizade está completamente errada. A amizade não se baseia na admiração mútua, mas no oposto: na fraqueza mútua".

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