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A era da fluidez sexual

Ser-se heterossexual, gay ou lésbica está ultrapassado? A crer no comportamento da Geração Z, está. Para ela, as fronteiras das preferências sexuais esbatem-se e o que importa é a pessoa em si. A maior abertura da sociedade para perceber identidades e sexualidades não normativas está a compor um futuro muito mais livre para os jovens. Livre também de definições vitalícias.

26 de fevereiro de 2020 às 07:00 Carla Macedo

Quarenta e três por cento dos jovens britânicos, entre os 16 e os 24 anos, não se revêem nas definições de heterossexual, de homossexual ou de bissexual. Este é o resultado de um inquérito realizado pela YouGov, uma empresa de estudos de mercado do Reino Unido. Um relatório de uma empresa concorrente, a Ipsos Mori, que se focou também nos jovens britânicos, concluiu que as raparigas e os rapazes que estão a entrar na maioridade são o grupo que mais facilmente afirma sentir-se atraído pelos dois sexos, sem hierarquização. Ter uma orientação sexual fixa parece, cada vez mais, uma história do passado. "Nunca procurei rotular-me", explica Patrícia Santos, de 25 anos, estudante de sociologia no ISCTE. "Eu acho que, tendo em conta a geração a que pertenço, enquanto indivíduos temos a capacidade de experimentar e de poder ser livres dentro do espectro do género e da orientação sexual." Patrícia, que hoje tem uma namorada com quem planeia, a curto prazo, ter filhos, teve um namorado quando tinha 20 anos e com quem não chegou a manter relações sexuais. "Essa é uma experiência que eu tenho em comum com muitas raparigas lésbicas. Talvez tenha sido uma tentativa de normalizar os gostos, de tanto ouvir que o homem tem de estar com a mulher e vice-versa, passamos todas por uma fase de jovem adulto em que dizemos: ‘Se gostarmos de rapazes, é mais fácil.’" Foi depois, em contexto de namoro com uma mulher, que Patrícia se iniciou sexualmente. "Senti-me à vontade. Eu estava numa situação de conforto porque namorávamos há algum tempo. Foi uma descoberta interessante." O que leva uma mulher que vive maritalmente com outra mulher a não querer definir-se como lésbica? "Se fosse preciso procurar um rótulo, eu definir-me-ia como lésbica. Mas, muito honestamente, penso que não existem heterossexuais nem existem homossexuais. Existe um indivíduo que assume determinada orientação segundo certos momentos da vida, se não pusermos as barreiras. Eu acho que o que importa é gostar-se realmente de uma pessoa." Como os britânicos inquiridos, também Patrícia recusa o rótulo de bissexual. "Não me revejo nessa definição."

A atracção sexual fluida é um comportamento progressivamente adoptado pelas gerações mais jovens. Entre os três mil inquiridos pela Ipsos Mori para o relatório referido, é visível a diminuição da prevalência da opção exclusivamente heterossexual à medida que a idade do grupo geracional se reduz. Se entre as pessoas com mais de 52 anos, 88% dizem ter uma orientação exclusivamente heterossexual, os indivíduos entre os 38 e os 51 anos que o declaram são menos – 85%. No caso dos millennials (dos 23 aos 37), essa percentagem volta a cair para os 71%, chegando apenas aos 66% quando o grupo é o mais jovem, composto por pessoas com idades entre 16 e 22 anos. A atracção sexual fluida é uma característica-chave da Geração Z.

A fluidez dos jovens adultos não é um fenómeno que diga apenas respeito às questões sexuais. É isso mesmo que destaca o estudo Generation Z – Beyond Binary: new insights into the next generation (Geração Z – Para lá do Binário: novas perspectivas sobre a próxima geração), quando afirma que o título se aplica à "flexibilidade como tema emergente na sociedade". E prossegue: "O alargamento das opções e das escolhas, parcialmente fomentadas pela Tecnologia, significa que uma grande variedade de estilos de vida, de atitudes e de comportamentos possíveis levaram a um colapso da homogeneidade. Isto inclui a sexualidade, mas estende-se a outras áreas da vida." No estudo, afirma-se que as opções que invalidam outras serão cada vez mais residuais e que esta geração está cada vez menos fechada em "caixas" definitivas. A fluidez afectará todos os sectores, da política às marcas. Segundo o estudo, "tentar segmentar um grupo através da exclusão de outros, dizendo implicitamente às pessoas que elas só podem ser uma coisa ou outra, será um erro crasso".

Um bom exemplo dessas características que não excluem outras é a questão tomboy que regularmente regressa às discussões nos vários fóruns da Internet. Tomboy, no Dicionário de Cambridge online, é a expressão utilizada para definir "uma rapariga que age e se veste como um rapaz, que gosta de actividades físicas e barulhentas". O significado não varia muito de dicionário para dicionário e em todos eles se encontram as referências aos papéis tradicionais dos géneros na sua divisão binária: as meninas são calmas e gostam de saias e os rapazes gostam de jogos de exterior, são brutos, etc. Esta designação – no fundo, de maria-rapaz – evoluiu durante este século para referir um aspecto físico específico que algumas mulheres adoptam, visível sobretudo no cabelo rapado na nuca e junto às orelhas e ligeiramente comprido no topo da cabeça, normalmente penteado com poupa, e passou a estar conotado com uma preferência sexual de mulheres por mulheres.

Acontece que ter um estilo tomboy não significa necessariamente a preferência sexual por mulheres. Num artigo publicado na revista Psychology Today, Ritch C Savin-Williams, professor na Cornell University, no estado de Nova Iorque, defende que aspecto e comportamentos mais masculinos (segundo os padrões tradicionais da sociedade) de crianças e de jovens do sexo feminino não são expressão de uma posterior orientação sexual lésbica. Os números que apresenta no artigo Do tomboys grow up to be lesbian? (As marias-rapazes tornam-se lésbicas quando crescem?) são contundentes: apenas 6% das adultas lésbicas dos estudos sobre o tema referiram ter tido comportamentos associados ao sexo masculino quando eram pequenas. Noutros artigos que pululam na Internet (alguns até de gosto duvidoso) recomenda-se e dão-se boas razões para que os homens namorem com mulheres tomboys – "porque prefiro mil vezes fazer uma caminhada na natureza do que ir ao centro comercial", "porque não tenho medo de engordar", "porque ficamos prontas para sair num instante". Sim, os exemplos são bastante machistas, mas são escritos no jornal da Universidade do Kentuky por uma rapariga tomboy que se posiciona como heterossexual – uma coisa não invalida a outra.

Fluidez heterossexual

A fluidez sexual não é uma questão que diga respeito apenas àqueles que hoje se assumem como não heteronormativos ou de que apenas estes estejam conscientes. Raquel Santos, Inês Ferreira e Ana Filipa Fernandes são amigas desde a infância e todas, aos 18 anos, se declaram heterossexuais. No entanto, esta afirmação comum é divergente na ponderação dos factores que as levam a radicar-se nesta orientação sexual. O que esperam do futuro também não é exactamente igual. Raquel diz que nunca teve dúvidas sobre a sua orientação: "Sempre gostei de rapazes e nunca senti nada mais do que uma amizade por alguma rapariga." Já Inês afirma que a heterossexualidade, de momento, é algo com que se identifica, acrescentando que "nunca se sabe o dia de amanhã". Por fim, Ana Filipa conta que durante o ensino secundário começou a questionar-se sobre as suas preferências a esse nível. E declara: "Aliás, uma amiga minha tinha, recentemente, ‘saído do armário’ como bissexual e foi aí que abri os olhos e [vi] que havia essa ‘possibilidade’. Ao longo do ensino secundário, principalmente no 11.º ano, eu sabia que gostava do sexo masculino, mas também sentia atracção pelo sexo feminino. Com o passar do tempo, essa atracção pelo mesmo sexo foi, de certa forma, desaparecendo. Daí o ponto de interrogação…" Que segue à resposta: "Sou heterossexual."

As três amigas e a estudante de sociologia, Patrícia Santos, têm visões diferentes para o futuro, mas acerca do passado não discordam. As quatro afirmam ter sentido, desde sempre, o condicionamento da sociedade para que as expressões sexuais fossem as típicas das raparigas ou, nas palavras de Inês Ferreira, "desde pequeninos que nos é implementada a ideia de que ‘meninas só podem gostar de meninos’". Referem também que ainda há preconceitos sobre a homossexualidade ou a indefinição sexual: "Na fase em que eu andava confusa, ouvia a minha família a dizer piadas homofóbicas", refere Ana Filipa Fernandes e acrescenta que há diferenças abissais no posicionamento sexual da sua geração, que resume assim: "Eu ainda tenho muito para experienciar e aprender sobre o mundo em que vivo e, principalmente, sobre mim." Para esta estudante do primeiro ano de Biologia da Universidade de Lisboa, "os jovens de hoje têm uma mentalidade muito mais aberta e compreensiva do que, por exemplo, a geração do meu irmão que tem 30 anos".

Fenómeno de grupo

Quando revelou ao melhor amigo que gostava de raparigas, Patrícia Santos recebeu uma resposta que não esperava. Ele disse-lhe: "Isso é perfeitamente normal. Eu também gosto." O melhor amigo desta estudante de Sociologia é heterossexual e sempre foi seu aliado. Os pares têm, de facto, um papel importante na normalização das opções sexuais. Hoje, mais do que nunca, o ditado "Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és" deixa de ser válido. As quatro raparigas entrevistadas para este artigo afirmam que os respectivos grupos de amigos são maioritariamente compostos por pessoas heterossexuais, mas com presença de bissexuais, de homossexuais e, claro, de pessoas sexualmente fluidas. O estudo Generation Z – Beyond Binary refere que essa é também uma característica distintiva dos que nasceram depois de 1996: "Têm muito maior contacto com pessoas que não se identificam apenas com um género." Os amigos funcionam como grupo de suporte para as questões da sexualidade muito mais do que as mães e os pais. "Este tipo de conversas, que temos com os amigos, cria um laço diferente do que o que temos com a família", explica Ana Filipa Fernandes. "Com os amigos não temos de esconder quem somos porque fomos nós que os escolhemos e decidimos partilhar este tipo de conversas. Sabemos que não nos vão julgar." É por isso que a palavra ‘assumir’ ganha hoje um novo significado. Se entre gerações mais velhas essa palavra significava dar a conhecer ao mundo uma orientação sexual não hetero, hoje, "o termo ‘assumir’ remete mais para uma relação séria, para dar a conhecer que duas pessoas estão juntas. A sexualidade é uma questão que os amigos já conhecem", declara Inês Ferreira.

 

A fluidez sexual ensinada na Televisão

Como será o futuro? A ficção científica tem tentado adivinhar o que aí vem, com robots, viagens interplanetárias, cidades inteligentes ou cenários catastróficos. Na maioria dos contextos de um futuro não muito distante, as sociedades continuam a organizar-se partindo de pequenas células familiares compostas por homem, mulher e criança. Ser tradicional e heterossexual vai ser sempre a norma? Jason Rothenberg, o criador de The 100, série disponível em Portugal na Netflix, construiu um cenário pós-apocalíptico em que os comportamentos sexuais das personagens são todos vistos à mesma lupa. Na Arca, a estação espacial onde vivem os descendentes dos sobreviventes de uma guerra nuclear ocorrida 97 anos antes da acção, a maioria das personagens vive em famílias heteronormativas. Na primeira temporada, a protagonista Clarke (interpretada por Eliza Taylor), já depois de ser enviada para a Terra, envolve-se com um rapaz. Na segunda temporada, no entanto, apaixona-se por Alexa, uma jovem mulher com quem mantém um relacionamento sério e difícil porque são ambas líderes de povos muitas vezes em confronto. Quando Alexa morre – a série é quase tão frutífera em óbitos como a Guerra dos Tronos – Clarke diz à mãe: "Eu amava-a." E a mãe responde-lhe com toda a naturalidade: "Eu sei." Outros casais vão-se formando ao longo da narrativa, escrita a partir de 2014 e que já tem a estreia da sexta temporada anunciada para 2019: há velhos inimigos que se enamoram, há jovens heterossexuais que se iniciam sexualmente, há rapazes que namoram com rapazes, várias relações só de alcova entre duas mulheres e todos os pares amorosos são vistos como normais. Jason Rothenberg afirmou em entrevista à revista Entertainment: "A orientação sexual encaixa da mesma forma que a identidade de género e a identidade racial no mundo que retratamos no programa. As personagens da série não estão preocupadas com essas coisas. Só estão preocupadas com a sua sobrevivência. Ninguém classifica ninguém, nunca. Não existem frases como ‘É uma mulher líder’ ou ‘Um soldado gay’ simplesmente porque não é esse o vocabulário do nosso programa." Retratar este universo onde essas questões já não têm importância é mostrar a forma como gostaria que o mundo fosse, conclui o autor, na referida entrevista.

Mais perto no tempo e no espaço, a série espanhola Elite – produzida sob encomenda para a Netflix – também aborda a fluidez sexual na pessoa de Christian (interpretado por Miguel Herrán). A personagem conquista uma bolsa de estudo que lhe permite a entrada num colégio privado, onde se vê envolvida num triângulo amoroso. A ideia inicial de Christian era "roubar" a namorada a Polo (interpretado por Álvaro Rico). Mas depois de se envolver com Carla (Ester Expósito), acaba por se relacionar com Polo e, numa viragem do argumento, os dois rapazes acabam por criar uma relação sexual sem a presença da rapariga. O muy machón Christian nunca perde a pose de Casanova, mas também não esconde que gostou de se envolver com Polo. Numa entrevista conjunta à Fórmula TV, os três actores espanhóis referem que o trio amoroso retrata aquilo que se passa na sociedade, com naturalidade. "Retrata a bissexualidade de Polo. Mostra que é normal uma pessoa sentir-se atraída por outra de qualquer sexo", diz Álvaro Rico. Miguel Herrán afirma que conhece "pessoas com vários tipos de relacionamento amoroso em que toda a gente vive bem com isso". Os três actores têm idades compreendidas entre os 18 e os 22 anos, são Geração Z da cabeça aos pés.

Ao mostrarem a normalidade destas personagens e das suas relações, as séries também operam uma mudança nos mais novos, sobretudo na autoconsciência das suas possibilidades sexuais. Segundo investigadores do departamento de Psicologia da Universidade de Chapel Hill, nos Estados Unidos, os media têm um impacto significativo na socialização sexual dos jovens. A exposição a comportamentos não-normativos retratados na ficção origina a normalização dos mesmos, resultando em maior liberdade para experiências pessoais. A normalização que a Televisão oferece tem também um impacto nas percepções das sexualidades não binárias nas gerações mais velhas. É nisso, pelo menos, que acredita Patrícia Santos: "Os telejornais abordam a questão já com uma naturalidade notável. O facto de as telenovelas terem personagens não-normativas ainda favorece mais esse processo. Um dia a minha avó disse-me que já percebia que o que eu sentia era completamente normal porque o tema foi abordado numa telenovela [Onde Está Elisa?], em que a actriz Paula Neves interpreta uma personagem com o mesmo perfil que eu. Depois disso, a minha avó já conseguia dizer às amigas que a neta não era ‘coitadinha’. Se a personagem era normal, a neta também era."

O outro lado do rótulo

Assumir ou não uma sexualidade não-binária nunca foi apenas uma questão sexual ou pessoal. Num mundo onde o preconceito ainda se faz sentir, "o pessoal é político", como diriam as feministas dos anos 1970. A questão que se coloca é que se houver um esvaziamento das categorizações de género e de orientação sexual por causa desta fluidez da Geração Z, as lutas pelos direitos humanos da comunidade LGBTQI podem estar em risco. Como se farão associações e grupos de trabalho para sociedades tão evoluídas em que ninguém se identifica com nenhuma categoria ou problemática específica? O que acontecerá à luta pelos direitos civis, como o casamento ou a adopção de crianças por casais homossexuais? Patrícia Santos, a estudante de Sociologia do ISCTE, parece ter a resposta: "Eu acho que os rótulos fazem parte de todas as gerações. O que existe é a desconstrução de alguns e a construção de outros. Na sociedade em que vivemos é preciso haver rótulos, por mais que não gostemos deles. Eles são necessários para se conseguir falar das diferenças. Podem ser pejorativos ou não, mas têm sempre de existir. Se não existissem rótulos, as diferenças não conseguiriam ser tratadas."

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