A insustentável leveza do ter
Numa altura em que o planeta se encontra a abarrotar só há uma coisa a fazer. Ou a não fazer. Referimo-nos ao ato de comprar. Ou melhor, de comprar com conta, peso e medida. O verbo ‘comprar’ de modo exacerbado só tem trazido dissabores ao planeta e, consequentemente, a nós que o habitamos. Podemos assobiar para o lado e camuflar o problema sob a alçada de termos como ‘sustentabilidade’. Ou então encaramos os factos. A Máxima dá-lhe números, muitos e redondos, para que a falta de factos deixe de ser uma desculpa e não lhe reste senão encarar a mudança.

Sabe quando pegamos numa palavra e começamos a repeti-la vezes sem conta e sem parar? O que é que acontece ao final de algumas repetições? A palavra perde o seu sentido. O termo ‘cadeira’, por exemplo, passa de ser uma palavra para passar a soar apenas a um acumulado de letras sem qualquer sentido. Vazio de conteúdo. Insignificante. É precisamente isso o que está a acontecer com a palavra ‘sustentabilidade’. De tanto a repetirmos tornou-se obsoleta. Já não é por aí o caminho. O termo sustentável passou para o patamar do marketing e é nesse degrau que aquilo que deveria ser consciência passa a ser comércio puro e duro. Foram-se as boas intenções e ficaram os números. De repente, todas as marcas ou são sustentáveis, ou têm coleções-cápsula sustentáveis, ou têm ainda campanhas publicitárias lindas, cheias de tons verdes, onde as modelos e os modelos aparentam um olhar etéreo. Tudo encantador. Porque é sustentável, nós pensamos que podemos comprar e comprar e que isso não tem problema algum. A grande questão que se coloca é que já não é mesmo por aí o caminho. O peso na consciência não diminui apenas porque compramos sustentável ? o que, importa sublinhar, já é melhor que nada. Contudo, a emergência que se coloca é outra. A urgência apela à não compra desmedida. Apela a que não nos deixemos deslumbrar pelo marketing. Porque mais sustentável ou menos sustentável, o planeta não aguenta. Já não resiste.
Senão vejamos. No livro Fashionopolis ? The Price of Fast Fashion, de Dana Thomas (de 2019), a autora assoberba-nos de números. Deste modo e dúvidas ainda houvesse, analisemos ? com números ? o estado das nações. Nos últimos 30 anos, a moda cresceu passando de um comércio de 500 mil milhões de dólares, primariamente produzida nos EUA, para um gigante global de 2,4 mil milhões por ano. Em 1991, 56,2% de todas as roupas compradas nos EUA eram feitas na América. Em 2012, essa percentagem caiu para 2,5%. E lá se vai o comércio local. De acordo com o Bureau of Labor Statistics, entre 1990 e 2012, a indústria têxtil e de vestuário perdeu 1,2 milhões de postos de trabalho. Em 2017, as exportações de vestuário dos EUA totalizaram aproximadamente 5,7 mil milhões, enquanto as importações rondavam os 82,6 mil milhões. Em 2017, os britânicos importaram 92,4% da sua roupa. De acordo com uma pesquisa realizada nos EUA, em 2016, quando foi dada a opção entre comprar um par de calças de 50 dólares fabricado no exterior e um par de calças de 85 dólares fabricado nos EUA, 67% dos entrevistados disseram que optariam pelas mais baratas, ainda que o rendimento familiar anual fosse superior a 100 mil dólares.

No plano nacional, adiantou-nos o Diário de Notícias que os "Portugueses deitam fora 200 mil toneladas de roupa por ano". São muitos números, bem sabemos, porém são imprescindíveis para que haja um bom entendimento das coisas. Porque palavras, convenhamos, tem-nas levado o vento. A realidade que já todos conhecemos de cor é que o consumo desenfreado, alimentado pelo aparecimento da máquina do fast-fashion, nos finais dos anos 80, é o bicho-papão desta questão da insustentabilidade da moda no planeta. É, de facto, difícil ignorar as centenas de novas peças que são lançadas, em cada semana, nesse tipo de lojas que tão bem conhecemos. Num mundo completamente fixado na questão da imagem, desdenhar a facilidade com que se pode mudar de aparência não é para meninos. Não obstante, tem de passar a ser até porque o impulso do verbo ‘comprar’ mais não é do que uma compensação, na maioria das vezes. Como uma droga, o consumo momentâneo faz disparar uma quantidade de endorfinas que fica a dançar no cérebro por tempo determinado até aquela compra não significar rigorosamente nada. Em 2013, o Centre for Media Research declarou que o ato de ir às compras se havia tornado "no passatempo preferido da América". O consumidor compra, agora, cinco vezes mais do que o fazia em 1980. Em 2018, a média era de 68 peças de vestuário por ano. Num todo, os cidadãos do mundo adquiriram 80 mil milhões de peças de vestuário por ano.
Os números conseguem ser ainda mais alarmantes: se a população do mundo crescer até aos 8,5 mil milhões, em 2030, e o PIB (produto interno bruto) per capita aumentar em 2% nos países desenvolvidos e em 4% nos países em desenvolvimento, e se não alterarmos os nossos hábitos de consumo, iremos estar a comprar 63% mais de moda ? de 62 milhões de toneladas passamos para 102 milhões de toneladas. Esta é uma quantidade que, de acordo com a Boston Consulting Group e a Global Fashion Agenda, "equivaleria a 500 mil milhões de T-shirts". Muito se tem escrito, revistas de moda inclusive, em torno da constatação que coloca a moda como a segunda indústria mais poluente do mundo. Fala-se muito, mas na ausência de números que o comprovem mantém-se a atitude de cegueira. Uma conduta que tão bem define o ser humano, a de optar por não ver para crer que não está tudo bem. Senão constatemos: o Banco Mundial estima que o setor da moda seja responsável por quase 20% de toda a poluição industrial da água potável, anualmente. Este setor liberta 10% das emissões de carbono no ar que respiramos e um quilo de tecido gera 23 quilos de gases de efeito estufa. A criação de uma T-shirt de algodão ? tão defendida como sendo o básico must have de eleição e uma das peças a adotar quando o tema é reduzir o consumo de tendências ? requer um terço de meio quilo de fertilizantes confinados em laboratório e 25,3 watts de eletricidade. O World Wildlife Fund (WWF) afirmou que podem ser necessários até 2.700 litros de água para cultivar o algodão dessa mesma T-shirt.
Os números falam por si. Ou por todos nós que andamos a evitar ver o que é preciso ser encarado. Numa altura em que a questão dos oceanos está no centro das preocupações mundiais- atire a primeira pedra quem não partilhou alguma frase ou imagem bonita nas redes sociais alusiva ao oceano e ao quanto "o amamos" -, também há números a comprovar como de boas intenções está o inferno cheio. Os tecidos sintéticos, que são os mais habituais em matéria de moda rápida, libertam microfibras na água quando lavados, tanto nas fábricas como nas nossas casas. Até 40% dessas microfibras entram nos rios, lagos e oceanos, são ingeridos por peixes e moluscos, seguindo o seu caminho, através da cadeia alimentar, até chegar a nós. O relato foi feito por pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, em 2016. Naquele mesmo ano, quase 90% das 2.000 amostras de água doce e do mar testadas pela Global Microplastics Initiative continham microfibras. Em 2017, o Greenpeace encontrou microfibras nas águas da Antártida.

Retomando a questão do desperdício, comprovou-se que dos mais de 100 mil milhões de itens de vestuário produzidos a cada ano, 20% não são vendidos- o detrito das "economias de escala". As sobras, por sua vez, são geralmente enterradas, trituradas ou incineradas, como a Burberry admitiu, de forma embaraçosa, em 2018. Para rematar, ainda de acordo com o estudo de Dana Thomas para o livro Fashionopolis- The Price of Fast Fashion, constatou-se que nos últimos 20 anos o volume de roupas descartadas pelos americanos duplicou, passando de sete milhões para 14 milhões de toneladas. Em todo o mundo, descartamos 2,1 mil milhões de toneladas de moda. São muitos os número para registar, mas, tal como foi dito no início desta peça, a mudança já não vai lá com paninhos quentes ou com palavras aconchegantes, como é o caso da ‘sustentabilidade’. É preciso ver para crer. E, face aos algarismos, fica difícil não fitar a realidade.
O tempo é agora
Stella McCartney, que escreveu uma Carta Aberta à indústria da moda, foi pioneira em moda sustentável. Desde 2001, ano em que inaugura a sua marca homónima, que a designer britânica coloca em cima da mesa- ou melhor, da passerelle- questões que abraçam o tema da sustentabilidade. Materiais sustentáveis, defesa dos direitos dos animais, entre outras pertinentes questões, estão e sempre estiveram na base de trabalho desta designer. Recentemente, a pedido do The Sunday Times e como se pode ler na referida Carta Aberta, publicada na revista Style daquele jornal, McCartney assevera que "precisamos de enfrentar isto como se de uma crise se tratasse, porque isto é, de facto, uma crise!".
Yvon Chouinard é um alpinista americano e ambientalista. A sua empresa, Patagonia, é conhecida pelo seu foco ambiental. Há tempos, aquele ambientalista ditava um statement que percorreu a Internet, onde apontava que "a razão pela qual não enfrentamos os nossos problemas com o meio ambiente é porque nós somos o problema". Naquele texto, o autor sublinhava que a culpa não era das corporações, nem sequer dos governos, mas somente nossa. E mantinha: "Somos nós que dizemos às corporações para fazer mais coisas e torná-las tão baratas e descartáveis quanto possível. Não somos mais cidadãos. Somos consumidores. É assim que somos chamados. É como ser-se alcoólico e negar que se é alcoólico. Negamos que cada um de nós seja o problema. E até enfrentarmos isso, nada vai acontecer. Portanto, existe um movimento para simplificar a sua vida: compre menos coisas e possua apenas algumas coisas que sejam de altíssima qualidade e que durem muito tempo." Designers consagradas, como Vivienne Westwood ou Jil Sander, defendem essa atitude: menos e bom. Novamente, constatamos que o problema já não se resolve com base na sustentabilidade. O conceito dos 4 R- Rethink, Reuse, Reduce, Recycle (Repensar, Reutilizar, Reduzir e Reciclar)- surge neste âmbito. Quando se caminha para uma vida mais consciente, a primeira coisa a fazer é questionar tudo o que os nossos impulsos nos pedem para comprar e se, realmente, aquela "coisa" é necessária nas nossas vidas. Na maioria das vezes, não é. Depois reaproveitar o que se tem, o que, em matéria de moda, não só é fácil como pode até tornar-se divertido. Analisar o armário e constatar-se que existe uma quantidade de peças moribundas que podem ser transformadas em itens espantosos e aparentemente novos. As lojas vintage também podem ser um bom veículo para a mudança- desde que tal não signifique que, a partir de então, em vez de se passar os dias a gastar dinheiro em roupa nova, se passe a gastar dinheiro em roupa usada. Se entrar no esquema do consumo desenfreado, irá estar na mesma a alimentar o "bicho" que é o consumismo.
Não obstante todas estas questões, seria inútil não referir que a moda é necessária. E muito importante. Esta indústria emprega uma em cada seis pessoas no mundo (ainda que menos de 2% dessas pessoas ganhem um salário digno, mas isso é outra "história"). Numa leitura mais abrangente da moda, diríamos que a roupa está entre uma das mais básicas e primárias formas de comunicação. Esta pode ser veículo de status social e económico, das nossas ambições e do nosso sentido de valorização. Somos o que comemos, mas também somos o que vestimos. A roupa pode revelar o nosso respeito ou profundo desprezo por convenções. Tal como escreveu Virginia Woolf em Orlando, "as roupas alteram a nossa visão do mundo e a visão do mundo acerca de nós". A moda não é o problema. O problema somos nós, já que "a expectativa do negócio é que se continue a alimentar a máquina das tendências, a mesma que nos faz responder àquela voz que, constantemente, nos diz ‘Vá, compra mais qualquer coisa’", como Dilys Williams, diretor do Centro de Moda Sustentável da London College of Fashion, comentava à autora Dana Thomas. A definição original e predefinida de moda era a de juntar coletivos- um processo social que usávamos para comunicar uns com os outros. A definição atual de moda é a produção, o marketing e o consumo de roupas- um sistema industrializado para se fazer dinheiro. E nada disto é sustentável.
