Veva de Lima, a mulher que desafiou Salazar, dava festas burguesas e tinha um leopardo no quintal
Escritora, viajante intrépida e animadora do derradeiro salão literário de Lisboa, Veva de Lima chegou a dar ralhetes a Salazar. A jornalista Joana Leitão de Barros conta a sua história na biografia romanceada, Veva.

Pertenceu à elite do Estado Novo mas viveu mais como Norma Desmond (a heroína trágica de Sunset Boulevard) do que segundo o ideário de apagamento e modéstia que o salazarismo impunha às mulheres. Veva de Lima (1886-1963), aliás Genoveva de Lima Mayer Ulrich, "mulher tão forte como vulnerável" fascinou a jornalista Joana Leitão de Barros, que lhe dedicou a biografia romanceada Veva, agora editada pela Oficina do Livro.
A história de tamanho fascínio começou com um artigo para o Expresso, em que o foco incidia sobre o estado de crescente decrepitude a que (ainda) está reduzido o palacete em tempos habitado por Veva, doado à Câmara Municipal de Lisboa no princípio dos anos 1980, pela filha desta, Maria Ulrich. Mas Joana não estava preparada para o que encontrou atrás da fachada de certa imponência, que nada tem a ver com o que habitualmente vemos numa casa da alta burguesia portuguesa de meados do século XX. Isto porque, eminentemente cenográfica, a decoração do palacete, cheia de simbologia, mais parecia saída duma grande produção dos tempos áureos de Hollywood: "Falei com o Mário Nascimento, que tem estudado a fundo o mobiliário da casa, e ele contou-me histórias fascinantes sobre a personalidade poliédrica da Veva, das festas que ela aqui dava, em que recebia os convidados num leito à maneira dos romanos ou em que decorava o hall de entrada com peles de leopardos e iluminação feérica. Senti que tinha mesmo de contar esta história." A história duma mulher que teve um leopardo no jardim.

Mas o que Joana encontrou, sob os lustres, o bric a brac, os lamés, foi um enigma, não totalmente resolvido pela leitura das notas íntimas deixadas pela protagonista, o que a levou a optar pelo romance histórico em vez da biografia convencional: "Havia demasiados silêncios, que só podia preencher através da ficção".

Este destino singular começou a delinear-se ainda na infância, com a relação privilegiada que tinha com o pai, que não lhe fechava a porta da biblioteca ou interditava leituras. Em plena adolescência, a vida do clã composto pelos pais e cinco irmãos será, no entanto, abalado por um escândalo que a toute Lisbonne comentará em surdina: Margarida, a irmã mais velha, foge para casar com um artista, o escultor Tomás Costa, de quem depois se divorcia.
Estamos nos últimos anos da Monarquia e as portas fecham-se à jovem "caída em desgraça", como soía dizer-se nesses tempos de mulheres tão espartilhadas na mente como no corpo. Dos efeitos que a situação há-de provocar na sua protagonista fala Joana Leitão de Barros: "Veva vê a irmã ser ostracizada (há mesmo quem se afaste dos Lima Mayer), conhecer dificuldades económicas que a colocam à mercê da boa-vontade da família. Creio que isso a marcou. Embora seja uma mulher ousada, encara o casamento com Rui Ulrich, que, aliás, a adorava, como uma garantia de segurança, de que nunca abdicou."


Sobre o casamento de ambos, o mínimo que se pode dizer é que Ulrich estava bem longe do padrão de comportamento dos homens portugueses (e não só) da época: Apaixonada por viagens, Veva gostava de viajar sozinha sem dar demasiadas satisfações à família, como nos diz a autora: "Existem cartas para o marido, sempre muito afetuosas, em que se percebe que está a viajar sem destino marcado, ao sabor do improviso, uma raridade na época. Diz mesmo ao marido para ligar para o Consulado que lá o informarão para onde decidiu seguir, sem mais." Em viagem por África durante o ano de 1923, afronta os interesses instalados com as crónicas que publica: "Receberá ameaças de morte porque se atreveu a condenar a gestão colonial. E a sua qualidade de mulher do Presidente da Companhia de Moçambique não a impede de se insurgir quando vê uma preso indígena a ser torturado."
Não se pense, todavia, que estamos diante de uma revolucionária com agenda política definida. Veva de Lima era uma mulher elitista, com os hábitos e preconceitos próprios da sua classe social, que gastava fortunas em decoração, cabeleireiros e toilettes encomendadas a uma das costureiras mais reputadas da Lisboa de meados do século, Madame Valle. Quando o regime de Salazar se apodera do aparelho de Estado, Veva acompanhará o entusiasmo do marido pelo professor de Coimbra que se propunha pôr o país na ordem.


Mas não demasiado porque, na verdade, Veva considerar-se-á sempre acima de qualquer ordem ditada pelo poder. Regras? Só reconhecia legitimidade às suas. Na verdade, "Veva contesta quase todos os valores que o Estado Novo quer afirmar", diz a autora. É patriota mas monárquica, tem a Fé em crise, sobre Família é demolidora: «A Família dos afectos puros só consiste em três elementos: pais, filhos, irmãos, marido, tudo o mais é convenção absurda e mascarada hostil. Não há mentira mais imprudentemente instalada nos foros sociais que essa consciente e bem desejada ilusão: o sentimento de família!", escreve.
De resto, Veva chegará a enviar ralhetes a Salazar: "As cartas dela a Salazar são singulares, enquanto as outras senhoras enviam pueris votos de veneração, Veva de Lima ralha com ele, lembra-lhe que está em falta com o marido, atreve-se a jogar argumentos e mostra-lhe a sua visão política. Outras vezes faz-lhe chegar informação privilegiada, teria sido uma formidável espia, se Salazar quisesse. Mas pode-se dizer que ele não lhe dava cavaco. Não considerava que fosse esse o papel duma mulher."

Pelo seu salon às Amoreiras, nessas festas maiores do que a vida que a escritora Fernando de Castro descreve no livro Ao Fim da Memória, passam nomes grandes das letras e das artes da época, ideologicamente desencontradas. Se lá aparecem Alfredo Pimenta, Afonso Lopes Vieira (que a autora considera ter vivido uma relação amorosa, "possivelmente platónica" com Veva), a própria Fernanda de Castro e o marido desta, António Ferro, diretor do secretariado Nacional de Informação, também há lugar para os intelectuais e artistas opositores do regime, alguns deles inimigos políticos do próprio marido, que, homem tímido e prudente, se fechava no escritório em tais ocasiões.

Uma consciência que ganhara forma ainda durante a Iª Grande Guerra, quando vê a penúria dos homens recrutados para o Corpo Expedicionário Português e suas famílias: "Quando percebe que um pequeno cheque não resolverá nada move mundos, aborrece tudo e todos e não perdoa desistências, as suas récitas (a favor dos soldados e das vitímas da I Guerra, dos expropriados de Monsanto, dos órfãos ou dos tuberculosos, conseguem resultados impressionantes. Nestas alturas torna-se um General, nada falha, e não há quem não tenha medo de a dececionar."
Mas esta mulher habituada a fazer o mundo girar segundo a sua vontade, passou os últimos anos fechada no belo mundo que a construíra, mergulhada num isolamento escolhido. Habituada a ser idolatrada, não suportava a ideia da decadência física e de a mostrar aos outros. Deixou que o fade out se instalasse gradualmente na majestade de tal cenário. Como se Norma Desmond tivesse vindo definhar ao Jardim das Amoreiras.

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