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Veva de Lima, a mulher que desafiou Salazar, dava festas burguesas e tinha um leopardo no quintal

Escritora, viajante intrépida e animadora do derradeiro salão literário de Lisboa, Veva de Lima chegou a dar ralhetes a Salazar. A jornalista Joana Leitão de Barros conta a sua história na biografia romanceada, Veva.

Genoveva de Lima
Genoveva de Lima Foto: D.R
07 de julho de 2022 Maria João Martins

Pertenceu à elite do Estado Novo mas viveu mais como Norma Desmond (a heroína trágica de Sunset Boulevard) do que segundo o ideário de apagamento e modéstia que o salazarismo impunha às mulheres. Veva de Lima (1886-1963), aliás Genoveva de Lima Mayer Ulrich, "mulher tão forte como vulnerável" fascinou a jornalista Joana Leitão de Barros, que lhe dedicou a biografia romanceada Veva, agora editada pela Oficina do Livro.

A história de tamanho fascínio começou com um artigo para o Expresso, em que o foco incidia sobre o estado de crescente decrepitude a que (ainda) está reduzido o palacete em tempos habitado por Veva, doado à Câmara Municipal de Lisboa no princípio dos anos 1980, pela filha desta, Maria Ulrich. Mas Joana não estava preparada para o que encontrou atrás da fachada de certa imponência, que nada tem a ver com o que habitualmente vemos numa casa da alta burguesia portuguesa de meados do século XX. Isto porque, eminentemente cenográfica, a decoração do palacete, cheia de simbologia, mais parecia saída duma grande produção dos tempos áureos de Hollywood: "Falei com o Mário Nascimento, que tem estudado a fundo o mobiliário da casa, e ele contou-me histórias fascinantes sobre a personalidade poliédrica da Veva, das festas que ela aqui dava, em que recebia os convidados num leito à maneira dos romanos ou em que decorava o hall de entrada com peles de leopardos e iluminação feérica. Senti que tinha mesmo de contar esta história." A história duma mulher que teve um leopardo no jardim.

Veva de Lima com amigos
Veva de Lima com amigos Foto: D.R

Mas o que Joana encontrou, sob os lustres, o bric a brac, os lamés, foi um enigma, não totalmente resolvido pela leitura das notas íntimas deixadas pela protagonista, o que a levou a optar pelo romance histórico em vez da biografia convencional: "Havia demasiados silêncios, que só podia preencher através da ficção".

Em Veva, filha dum membro do grupo literário Vencidos da Vida (de que fizeram parte, entre outros, Eça de Queirós, Antero de Quental ou Oliveira Martins), Carlos Lima Mayer, casada com o banqueiro e diplomata Rui Ulrich, encontrou  "uma pessoa tão exuberante como atormentada e eternamente insatisfeita", diz. "Era uma mulher muito criativa quer na escrita (foi autora de vários livros), quer nas artes, com uma paixão evidente pelo Teatro, como a sua casa demonstra, mas também com fibra de estratega no modo como geria a carreira do marido, por exemplo. Mas, tal como o pai, tinha períodos de sombra e até de depressão, muito acentuados depois do suicídio do filho, Jorge, em 1932." 

Veva de Lima (1917)
Veva de Lima (1917) Foto: D.R

Este destino singular começou a delinear-se ainda na infância, com a relação privilegiada que tinha com o pai, que não lhe fechava a porta da biblioteca ou interditava leituras. Em plena adolescência, a vida do clã composto pelos pais e cinco irmãos será, no entanto, abalado por um escândalo que a toute Lisbonne comentará em surdina: Margarida, a irmã mais velha, foge para casar com um artista, o escultor Tomás Costa, de quem depois se divorcia.

Estamos nos últimos anos da Monarquia e as portas fecham-se à jovem "caída em desgraça", como soía dizer-se nesses tempos de mulheres tão espartilhadas na mente como no corpo. Dos efeitos que a situação há-de provocar na sua protagonista fala Joana Leitão de Barros: "Veva vê a irmã ser ostracizada (há mesmo quem se afaste dos Lima Mayer), conhecer dificuldades económicas que a colocam à mercê da boa-vontade da família. Creio que isso a marcou. Embora seja uma mulher ousada, encara o casamento com Rui Ulrich, que, aliás, a adorava, como uma garantia de segurança, de que nunca abdicou."

Veva de Lima com o marido, Rui Ulrich
Veva de Lima com o marido, Rui Ulrich Foto: D.R

Sobre o casamento de ambos, o mínimo que se pode dizer é que Ulrich estava bem longe do padrão de comportamento dos homens portugueses (e não só) da época: Apaixonada por viagens, Veva gostava de viajar sozinha sem dar demasiadas satisfações à família, como nos diz a autora: "Existem cartas para o marido, sempre muito afetuosas, em que se percebe que está a viajar sem destino marcado, ao sabor do improviso, uma raridade na época. Diz mesmo ao marido para ligar para o Consulado que lá o informarão para onde decidiu seguir, sem mais." Em viagem por África durante o ano de 1923, afronta os interesses instalados com as crónicas que publica: "Receberá ameaças de morte porque se atreveu a condenar a gestão colonial. E a sua qualidade de mulher do Presidente da Companhia de Moçambique não a impede de se insurgir quando vê uma preso indígena a ser torturado."

Não se pense, todavia, que estamos diante de uma revolucionária com agenda política definida. Veva de Lima era uma mulher elitista, com os hábitos e preconceitos próprios da sua classe social, que gastava fortunas em decoração, cabeleireiros e toilettes encomendadas a uma das costureiras mais reputadas da Lisboa de meados do século, Madame Valle. Quando o regime de Salazar se apodera do aparelho de Estado, Veva acompanhará o entusiasmo do marido pelo professor de Coimbra que se propunha pôr o país na ordem.

Veva de Lima em África
Veva de Lima em África Foto: D.R

Mas não demasiado porque, na verdade, Veva considerar-se-á sempre acima de qualquer ordem ditada pelo poder. Regras? Só reconhecia legitimidade às suas. Na verdade, "Veva contesta quase todos os valores que o Estado Novo quer afirmar", diz a autora. É patriota mas monárquica, tem a Fé em crise, sobre Família é demolidora: «A Família dos afectos puros só consiste em três elementos: pais, filhos, irmãos, marido, tudo o mais é convenção absurda e mascarada hostil. Não há mentira mais imprudentemente instalada nos foros sociais que essa consciente e bem desejada ilusão: o sentimento de família!", escreve.

De resto, Veva chegará a enviar ralhetes a Salazar: "As cartas dela a Salazar são singulares, enquanto as outras senhoras enviam pueris votos de veneração, Veva de Lima ralha com ele, lembra-lhe que está em falta com o marido, atreve-se a jogar argumentos e mostra-lhe a sua visão política. Outras vezes faz-lhe chegar informação privilegiada, teria sido uma formidável espia, se Salazar quisesse. Mas pode-se dizer que ele não lhe dava cavaco. Não considerava que fosse esse o papel duma mulher."

Veva de Lima
Veva de Lima Foto: D.R

Pelo seu salon às Amoreiras, nessas festas maiores do que a vida que a escritora Fernando de Castro descreve no livro Ao Fim da Memória, passam nomes grandes das letras e das artes da época, ideologicamente desencontradas. Se lá aparecem Alfredo Pimenta, Afonso Lopes Vieira (que a autora considera ter vivido uma relação amorosa, "possivelmente platónica" com Veva), a própria Fernanda de Castro e o marido desta, António Ferro, diretor do secretariado Nacional de Informação, também há lugar para os intelectuais e artistas opositores do regime, alguns deles inimigos políticos do próprio marido, que, homem tímido e prudente, se fechava no escritório em tais ocasiões.

Este não é, todavia, o retrato acabado duma frívola diletante, como nota Joana Leitão de Barros: "O egocentrismo de Veva, que vive largos períodos de inquietação, não quer dizer que não tenha consciência social. Constrange-a o analfabetismo, sobretudo. Cansa-se de ver crianças a brincar nos campos de Monsanto, enquanto os pais trabalham nas pedreiras, e instala uma escola num moinho, tem esperança que ao lado de casa os miúdos comecem a aparecer. Segue os conselhos a Fernanda de Castro e pinta os móveis de cores garridas, enche a sala de aula de livros."

Veva de Lima em 'A Venda da Flor'
Veva de Lima em 'A Venda da Flor' Foto: D.R

Uma consciência que ganhara forma ainda durante a Iª Grande Guerra, quando vê a penúria dos homens recrutados para o Corpo Expedicionário Português e suas famílias: "Quando percebe que um pequeno cheque não resolverá nada move mundos, aborrece tudo e todos e não perdoa desistências, as suas récitas (a favor dos soldados e das vitímas da I Guerra, dos expropriados de Monsanto, dos órfãos ou dos tuberculosos, conseguem resultados impressionantes. Nestas alturas torna-se um General, nada falha, e não há quem não tenha medo de a dececionar."

Mas esta mulher habituada a fazer o mundo girar segundo a sua vontade, passou os últimos anos fechada no belo mundo que a construíra, mergulhada num isolamento escolhido. Habituada a ser idolatrada, não suportava a ideia da decadência física e de a mostrar aos outros. Deixou que o fade out se instalasse gradualmente na majestade de tal cenário. Como se Norma Desmond tivesse vindo definhar ao Jardim das Amoreiras.

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