Reuniões secretas, pedidos de casamento, clientes de meio século. As histórias dos 100 anos da Versailles
A 25 de novembro de 1922 inaugurava-se a Patisserie Versailles, no número 15A da Avenida da República, em Lisboa. As memórias de Paulo Gonçalves, sócio-gerente, e Avelino Reis, funcionário há 39 anos, daquela que é uma das mais icónicas pastelarias da cidade.

Entramos na Versailles, na Avenida da República, em Lisboa, e a pastelaria está cheia, são 10h da manhã, um dos picos do dia, ao pequeno-almoço. As pessoas entram e encostam-se ao balcão apreciando a montra, pedem, cumprimentam-se, umas comem ali mesmo, outras sentam-se. Não há um funcionário que esteja quieto, todos parecem frenéticos e atentos. Uns conversam com clientes, outros estão compenetrados com os pedidos.
Paulo Alexandre Pereira Gonçalves, que está no balcão do fundo, está manifestamente ocupado. É ele o homem que procuramos. Está na Versailles há 22 anos, é um dos atuais sócios-gerentes, tal como António Matos e Horácio Fernandes, que trabalham na casa há mais de 30 anos. Estes três nomes estão entre o grupo de pessoas que detém a sociedade atual, uma aquisição feita em 1985, e que reúne 8 sócios.


A Versailles abriu portas a 25 de novembro de 1922 como "Patisserie Versailles", inaugurada por Salvador José Antunes, o fundador deste icónico estabelecimento, que celebra este ano o seu centenário. Homem apaixonado pelas Artes, por França e pelas luxuosas pastelarias francesas, Salvador Antunes imaginou um espaço tão opulento como as cortes de Luís XIV. Ainda podemos observar as pinturas de Benvindo Ceia, retocadas pelos alunos da Escola de Belas Artes em 2007, retratando os lagos de Versailles, e o trabalho em talha por Fausto Fernandes, que vemos nos vitrais e nalgumas cadeiras ainda originais e centenárias. "Na altura, já existiam várias pastelarias no Rossio onde se juntava a elite, nas Avenidas Novas ainda não exista muita coisa, nenhuma pastelaria onde decorressem eventos de maior dimensão", recorda Paulo Gonçalves. "Por volta dos anos 30 e 40, a [Versailles] foi um espaço ligado ao Estado Novo, houve aqui vários eventos ligados ao Governo, muito desse passado foi apagado, mas sei que existiram várias tomadas de decisões importantes." Ninguém gosta muito de falar no assunto, afirma Paulo. "Passavam muito por cá os Ministros das Colónias, membros da Mocidade Portuguesa… ainda há clientes mais antigos que sabem do que se tratavam esses encontros." Era um trintanário, um porteiro, que abria as portas à elite, e não era toda a gente que aqui entrava. "Intimidava as pessoas, havia um controle. Depois de 1974 deixou de existir isso, e a Versailles atravessou uma crise financeira."
O ano 1985 será mencionado várias vezes ao longo desta conversa, pois foi a data em que se fez uma das maiores intervenções em termos de restruturação espacial e melhoria de estruturas da Versailles, mantendo-se fiel à original o mais possível. "Foi na altura da revolução do café expresso. Até aí, servíamos em cafeteiras e café de balão", lembra Paulo.

Em 1997 e em 2007 aconteceram, também, duas grandes intervenções ao nível das obras. "Os antigos alunos da Escola de Belas-Artes vieram retocar os frescos, e pusemos folha de ouro em todos os sítios que tinham dourado." Entre os originais da casa, estão os vitrais (que são cada vez mais difíceis de substituir), as pinturas, e alguns móveis como um balcão e as cadeiras, bem como uma pequena fonte em mármore histórica.

Com a mudança das dinâmicas sociais nas Avenidas Novas entre os anos 80 e 90, a ocupação residencial diminuiu muito, o que afetou a vida do café. "Mudaram as pessoas que viviam aqui na zona. Há uns anos havia muitas famílias, mas foram deixando as suas casas, com a zona a tornar-se ainda mais cara. A maioria das famílias que viviam aqui foram para os subúrbios. Começam agora a aparecer novas habitações, são de pessoas com muito poder de compra ou estrangeiros." Há famílias, ainda assim, que são habitués. "Vem o avô, o pai, a mãe e os filhos, e os netos já, sobretudo ao fim-de-semana. Alguns dos nossos funcionários mais antigos são praticamente os confidentes dos clientes, ficam a conversar. Mas há uma renovação da clientela, e essas pessoas vão desaparecendo." Atualmente trabalham 45 funcionários na Versailles, e ao todo são cerca de 150. "Temos espaços em Belém, na gelataria ao lado desta morada, e ainda nos hospitais de São José, Curry Cabral e Maternidade Alfredo da Costa."

Ao longo de mais de 20 anos, Paulo Gonçalves lembra-se de vários episódios que se passaram na Versailles, mas nem sempre gosta de os recordar. "Cenas de estalos entre pessoas célebres, pedidos de casamento, houve de tudo um pouco. Reuniões secretas com nomes importantes do Governo… O episódio que me marcou mais foi durante uma das remodelações. Ao fazer as obras, não se acautelaram bem as paredes, e houve uma parte que ruiu sobre a sala. Encheu-se tudo de pó, as pessoas saíram, assustadas."
Olhamos para a recheada montra da pastelaria, cheia de doçaria e bolaria tradicionais portuguesas, com algumas exceções como o croissant. Quanto à atual oferta gastronómica da Versailles, Paulo afirma que não mudou muita coisa, pelo menos nos seus anos de casa. Os preferidos "são os croquetes, os rissóis, os pastéis de bacalhau, e os bifes (que têm muitas variações). Na pastelaria, houve uma evolução grande, hoje em dia adaptamo-nos ao que o cliente quer. A nossa referência é o croquete, é o que se vende mais, é o icónico. Os indianos [um doce] só se vendem aqui em Lisboa, com duas camadas de pão-de-ló, glacé e chantilly. Depois, os croissants, que hoje em dia quase toda a gente pede. Temos ainda os bolos de época, o famoso Bolo-Rei e o Bolo Rainha, que está a ganhar cada vez mais fãs."

Para celebrar os 100 anos da Versailles, convidaram-se a D*Vagar e a MarviLab para fazer uma instalação de montras móveis, uma forma de lembrar os mais novos, que podem não se identificar tanto com o espaço, como lembra Paulo Gonçalves. "Cafés Camelo, Adega Mayor, Quinta da Pacheca e a Central de Cervejas foram os nossos parceiros neste projeto, e estão muito ligados à Versailles." Tanto o emblema da Versailles como a palamenta (pratos, chávenas, etc) foram alterados, esta última numa parceria com a Vista Alegre. O café atual, da Camelo, é uma receita especial feita pelo comendador Rui Nabeiro, assinada por si, que estará disponível para venda, em breve, a grão e moído. Há ainda uma edição especial Quinta da Pacheca que marca este aniversário - um Porto Tawny 10 anos - lançada a 25 de novembro de 2022, data assinalada com um jantar privado, em que o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa condecorou o pai de Paulo, Mário Gonçalves, como Comendador da Ordem do Infante D.Henrique.

Há pelo menos 39 anos que Avelino Reis celebra o aniversário da versailles. O atual funcionário mais antigo da casa entrou pela primeira vez na Versailles com 26 anos, tendo começado por servir às mesas. Sem rodeios, começa a descrever as posições antigas dos objetos, os seus olhos varrem a sala como que a tentar reposicionar cadeiras e balcões, voltando a outros tempos. "Não se serviam almoços, não havia café de máquina, o balcão era diferente, havia um bar muito diferentes deste, as mesas eram em madeira com base de pedra e não tinham toalhas, as cadeiras são, algumas, centenárias, outras vieram em 1985", ano decisivo, pois foi a partir daí que as refeições se tornaram mais fortes.
Avelino lembra também o seu primeiro uniforme. "No inverno, usávamos uma bata preta e um casaco castanho, com gravata preta, no verão era uma camisa com o símbolo da rosa negra." O funcionário lembra-se de passar 10 a 12 horas por dia na Versailles. "Nunca menos." Ao longo de quase quatro décadas, observou entradas e saídas de gente importante, reuniões que se faziam à porta aberta e também fechada. "Recordo José Saramago, José Manuel Tengarrinha, muitos jornalistas, como o Raúl Durão, gente do teatro, ligados às Artes, à Política, ao Futebol. A etiqueta mandava que não se punham objetos sobre a mesa, nem jornais, nem nada." Junta ainda à lista personalidades tão diferentes como Manuela Ramalho Eanes, Jorge Sampaio, Henrique Zimmermann, Leonor Beleza, Tony Carreira, Sven-Göran Eriksson ou Marcelo Rebelo de Sousa. "E José Sócrates, vinha muitas vezes jantar à noite, ficava umas boas horas, sempre naquele canto [indica]. Depois de ser primeiro-ministro deixou de aparecer."
Tal como os clientes mudaram, também as regras de etiqueta evoluiram. Avelino conta que nos primeiros tempos no seu posto "não havia quem entrasse de camisa desarranjada ou em tronco nu, naturalmente. Sempre foi um sítio muito ligado a uma idade mais avançada, dos 50 para cima. Vinham senhoras beber o chá, passavam aqui tardes inteiras. Vinham grupos de sportinguistas discutir os jogos, vinham treinadores do Benfica com jogadores… Hoje em dia tem tudo pressa, ninguém fica tanto tempo, todos os miúdos têm telemóveis à mesa." Menciona, ainda, o facto de tantos clientes terem os seus recantos preferidos, mesas eleitas, sabe de cor muitas delas, não esquece quem prefere qual.
Avelino evoca, por fim, o dia da mini-derrocada de que falou Paulo. "Estava junto àquele aparador [aponta], ouvi um barulho, e o teto caiu. As pessoas foram todas embora, nem pagaram (risos)." Lembra-se também de alguns casamentos que foram servidos na Versailles e também a presença de alguns clientes habituais, uma menção que o parecer emocionar, mesmo que levemente. "Há clientes que já vinham antes de mim, que têm mais de 50 anos de casa. Estão a desaparecer, já são muito poucos."
