Num palacete de dois andares, a fauna é internacional. Os inúmeros salões estão livres de qualquer mobiliário, têm apenas gigantescas fotografias penduradas. Lançam-nos em dinâmicas emocionais. As atrizes fotografadas por Vincent Peters são quase todas conhecidas pelo primeiro nome, feito indicador da fama incalculável que alcançaram. Têm carreiras longas, transformaram os seus rostos numa aquisição do domínio público. As imagens em exposição contam sobre elas uma melancolia diferente, entram numa esfera pessoal sem que nunca pareçam estar desprotegidas. Os seus traços sobressaem na luz. O estilo é próprio do trabalho de Peters, que apresenta "Sense of Time" em Lisboa, uma espécie de cartografia saudosista a preto e branco. Construiu-a ao longo de décadas a fotografar para grandes revistas, The Face ou Vogue, cidades de todo o mundo expunham também o seu trabalho em grandes cartazes publicitários. Hollywood, Paris ou Nova Iorque levaram-no para longe de Brémen, cidade alemã que o viu nascer e onde começou a revelar as primeiras fotografias sozinho, em casa da mãe.
Vincent está esticado num sofá, deve medir mais de um metro e noventa, veste um elegante fato preto. As mangas que arregaça deixam transparecer um corpo repleto de tatuagens. Os convidados da sua exposição lisboeta felicitam-no, ele ouve atentamente o que têm para lhe dizer. No meio da azáfama, tivemos esta conversa.
Que lugar tem o erotismo nos dias de hoje? Sentes que a noção de erotismo mudou muito nos últimos 40 anos em que trabalhaste enquanto fotógrafo de moda?
Eu vivi os anos oitenta. Por volta de 1985 a tendência apoiava-se muito na aparência e depois houve uma mudança, algo mais próximo da verdade. Quando comecei, também no erotismo a mulher era demasiado idealizada, muito perfeita. O olhar muda consoante as culturas. Em cada país tudo depende muito da maneira como a mãe se posiciona na relação que tem com a família. Em Inglaterra, por exemplo, a mãe está muito integrada, é muito verdadeira, o erotismo deles passa quase sempre pelo porno amador. Em Itália, a mãe é muito idealizada, como se não fizesse parte da família. Em filmes, como O Padrinho de Francis Ford Coppola, a mãe parece ser como uma rainha que plana acima de tudo. O erotismo para os italianos é muito perfeito e a imagem da mulher deles é muito distante. Tudo isso parece-me vir das relações que temos com as mulheres quando somos mais novos. Não é algo imediato. O mais interessante numa fotografia é a mistura do consciente e do inconsciente. Há a composição, há luz... O inconsciente acontece quando tiras a fotografia, há um lado em que te confrontas a ti próprio. E, claro, em imagens de mulheres, no erotismo, descobri também muita coisa... Como reages à presença de uma mulher? É possível descobrir isso nas fotografias que tiro, eu vejo a relação que tenho com elas.
Portanto há algo do teu inconsciente exposto nestas salas?
Há a maneira como olho para as pessoas. Podes olhar para as fotografias e dizer que te agradam, há coisas que achamos confortáveis enquanto espetador. As fotografias tiram-se de forma muito rápida e há algo [vindo] do inconsciente que tu não controlas. O inconsciente é quase forçado nesse processo.
É quando revelas as fotografias que tomas consciência do que aconteceu com quem posou para ti?
Sim, começa aí. Mas demorei anos a perceber qual era o ponto de vista que tinha sobre as mulheres.
Sentes que o lugar do erotismo mudou com o aparecimento de um discurso feminista muito amplificado pelas redes sociais? Tu costumas fotografar muitas mulheres em momentos de abandono.
Se isso me influencia? Não, de todo. Eu não sou uma pessoa muito política, tento ser uma pessoa emotiva. A mensagem que passa com as minhas fotografias não é política. Quando eu fotografo uma mulher nua o que me interessa não é ela estar nua. Interessa-me que ela esteja vulnerável, frágil. Ela expõe-se à sua maneira, e quero que esteja confortável com ela própria, não a quero explorar. Para mim fotografar uma mulher nua é quase como estar aqui a ter uma conversa. Eu vi mulheres muito conhecidas em situações muito pessoais. Para mim a mensagem mais forte não é a de puxar os limites.
Por exemplo, uma conversa não se torna interessante só porque revelas segredos durante essa conversa... Talvez seja uma conversa mais espetacular, mas não é o que procuro. Quero algo mais autêntico ou emocional.
Tu e eu podemos ter uma conversa agora, a fazer esta entrevista, que pode ser divertida, posso contar-te algumas anedotas. Mas não será uma conversa pessoal. Pode até ser interessante, mas vai faltar sempre qualquer coisa porque não é uma conversa só entre nós dois. As fotografias numa Playboy ou num anúncio da Dolce & Gabbana podem ser muito bonitas, mas não são as fotografias que tiras para um museu, não são fotografias que falam contigo. São fotografias de lazer e servem um propósito.
São imagens que estão a servir uma terceira entidade que controla aquilo que aconteceu na sessão? As fotografias que expões aqui são encontros que te marcaram, coisas especiais?
Há coisas que ao olharmos para elas nos despertam algo. Há coisas que sentimos que são mais pessoais.
Nesta exposição há muitos olhares tristes, vulneráveis. Tu falas com as atrizes ou as manequins durante as prises de vue?
Isto são temas muito complexos, podemos falar sobre eles durante horas.
Sabes, eu fotografei pessoas muito conhecidas... Pessoas que viveram muitas coisas antes de estarem ali à minha frente, não são só ícones. Só que há pessoas que olham para elas e só vêem a celebridade... Olham para elas como se estivessem preenchidas com aquilo que elas imaginam ser uma celebridade. E todos nós passamos por coisas dolorosas, tanto o espectador como a celebridade. Na melancolia há muitas coisas boas, como nas canções do Charles Aznavour.
Há a fragilidade, há o lado que nos ajuda a aguentar (pausa) ou a recordação das pessoas de quem temos saudades... Tudo isso está na melancolia. Quando te ris esqueces, quando ficas sério voltas a lembrar-te. A memória é muito importante quando olhas para uma fotografia, é ela que abre caminhos para ti. Numa fotografia eu não procuro a tristeza, eu procuro uma memória de todas as coisas que tiveram de ser passadas para chegar ali. E as pessoas que fotografo, quando lhes falo, tento dizer-lhes para se lembrarem de tudo o que passaram até chegar ao momento da sessão. Não é com uma final de jogo, não é isso. Mas quando fotografo a Scarlett Johansson que é atriz desde os 8 anos, dá para imaginar a quantidade de coisas pelas quais já deve ter passado.
Tens imagens icónicas tuas na cultura pop, como a capa do disco Can’t Get You Out of My Head da Kylie Minogue, lembro-me de ver um making-of da sessão, de uma forma divertida e livre mandavas-lhe copos de água para cima da t-shirt branca, querias que ficasse transparente. São imagens muito divertidas...
E o que as pessoas não sabem é que a estava a fotografar ao ar livre e havia no mesmo sítio um vídeo do Puff Daddy a ser gravado. Estava um grupo de 25 homens a olhar para ela que de vez em quando gritava, "solta-te Kylie". Bem, eu conheço as minhas fórmulas que resultam, mas o que procuro não é isso. Há um filme do Woody Allen chamado Stardust Memories (1980) em que os extraterrestres chegam à terra e dizem que preferiam os primeiros filmes dele.
No percurso artístico estás sempre a ser confrontado com aquilo que fizeste antes, mas tens de avançar.
Tens nostalgia de uma época em que havia muito mais papel, muitas mais revistas e produções de moda a circular?
Sim, muito porque todos os grandes mestres como o Helmut Newton ou Richard Avedon se manifestaram nas revistas antes de estarem nos museus. Até o Man Ray ou o Irving Penn, todos eles fotografaram para a Harper’s Bazar ou para a Condé Nast. Eles eram produzidos pelas revistas, isso dava-lhes material e isso já não existe.
O Helmut Newton foi muito importante para ti?
Gosto de como ele conseguiu impor o seu olhar. Mas era outra época, eram os anos 70 e a revolução sexual, é menos interessante nos dias de hoje basear imagens no sexo. Hoje o que nos faz falta são as emoções e uma certa poesia.
Atualmente consumimos as coisas em 3 ou 4 segundos, tudo é servido muito rápido. Parece que para ter algum sabor as pessoas metem mais açúcar nas coisas. Porque as pessoas vêem muitas coisas ao mesmo tempo.
Começaste a fotografar aos 11 anos, na Alemanha, a tua mãe queixava-se de que tudo cheirava a químicos para revelar fotografias...
Sim, revelei as primeiras fotografias na casa de banho em casa. Cheirava muito mal e não era muito bom para a saúde. As minhas irmãs também se queixavam.
Cresceste rodeado de mulheres? O teu olhar nas fotografias vem desse convívio?
Sim, absolutamente. Tenho alguma dificuldade com os homens, tenho até dificuldade em fotografar homens. Um homem é menos flexível na sua imagem. A não ser quando se torna mais feminino, aí podes brincar mais.
O que liga o miúdo de 11 anos que revelava fotografias na casa de banho e o fotógrafo de agora?
Quando és fotógrafo de moda és puxado em todos os sentidos. Tens sucesso e és muito guiado por isso, ganhas dinheiro e acabas por te perder também... E há momentos em que percebes que tens de guardar os teus valores. Na fotografia eu quis voltar à raiz das coisas, à fotografia preto e branco que me fez querer ser fotógrafo, quis voltar a isso. Porque eu sei que o dinheiro se gasta depressa e as imagens não aguentam. E eu quero fazer imagens que me falem. Hoje tenho nas paredes imagens que não preciso de justificar. Eu tive de voltar à origem do meu primeiro amor.
Qual foi então o teu primeiro amor?
Foram os filmes a preto e branco que o meu pai via aos sábados à noite. Eu não os podia ver, porque eu era novo demais, mas ele contava-me as histórias aos domingos de manhã, ao pequeno-almoço. Eu só imaginava os filmes que ele contava. Acho que o meu pai tentava comunicar o código do amor com essas histórias.
Palacete Gomes Freire
A exposição está aberta ao público e é gratuita
De 24 de março até 6 de abril
De Terça a Domingo, 14h-18h