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Thiago Soares: “A dança da vida é uma dança sem fim porque nós desfrutamos dela.”

Começou a dançar hip-hop nas ruas do Rio de Janeiro para mais tarde se tornar bailarino principal do Royal Ballet em Londres. Uma carreira fulgurante na dança clássica que se apresenta agora num Último Ato em Lisboa. Assistimos a um ensaio do espetáculo do bailarino-estrela evocando uma ideia de finitude.

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20 de abril de 2023 Tiago Manaia

Em Campo de Ourique, as árvores do Jardim da Parada exibem cartazes de um protesto que parece não ter terminado. As obras que prometem ligar o metro do centro da cidade ao pacato bairro lisboeta não vão poupar árvores centenárias e por isso há frases escritas ao longo da praça. É preciso salvar a vegetação, será abalada com a vinda deste progresso. 

A refletir sobre o dilema constante em que vivem os habitantes de Lisboa, uma cidade que rompe a vida pacata de bairro para se entregar à oferta de uma agitação cosmopolita e internacional, viramos a esquina. Entramos num estúdio de ensaio branco, tiramos os sapatos e acedemos ao mundo silencioso e poético da dança clássica

Há batidas drum and bass e percebemos que os ritmos clássicos, dançados pelo bailarino brasileiro Thiago Soares durante décadas, se ligam agora aos sons urbanos que lhe agitavam o corpo no começo de tudo, quando dançava nas ruas do Rio. 

O bailarino-estrela Thiago Soares.
O bailarino-estrela Thiago Soares. Foto: Thiago Soares

São as suas vivências encenadas, num adeus aos palcos do mundo, que o fazem viajar estes dias. O seu Último Ato finta a rotina que ocupa atualmente - é diretor do Ballet de Monterrey no México. Há um pequeno elenco que o acompanha, e Thiago interrompe muitas vezes este ensaio de luzes para olhar para o telefone, preocupado, alguém da sua equipa acaba de aterrar em Lisboa e tem de atravessar os serviços de emigração. Atento aos vários detalhes explica a um luminotécnico os efeitos de luz que procura e, às vezes, a magia acontece – o seu corpo começa a dançar de forma espontânea

O dom da dança está todo vivo na graciosidade deste corpo de 42 anos, traz com ele memórias de um reportório clássico e de interpretações célebres. Foi Siegfried no Lago dos Cisnes ou o príncipe no Quebra-Nozes. Com um sorriso de orelha a orelha, numa curta pausa, o bailarino responde às nossas perguntas e evoca este fim que nos parece um começo de liberdade. Como se a vida de Thiago fosse um jardim que cresce sem obedecer às regras do mundo. Um jardim a querer ser mais selvagem que a realidade, reinventando-se a todo o momento.

Olhamos para ti a ensaiar aqui e percebemos que estás atento a todos os detalhes. Pareces estar a pensar em tudo, ao longo da tua vida foste intérprete, imagino que tenham tratado de coisas por ti?

Sim, isso é uma boa maneira de começar. Eu fui institucionalizado em toda a minha carreira, trabalhei em grandes teatros, no Municipal do Rio de Janeiro, no Royal Ballet em Londres ou no Teatri Alla Scala de Milão. E eu era só um intérprete, chegava lá fazia os ensaios e depois dançava. Depois desenvolvi a minha carreira individual e aí tive uma grande liberdade. Foi o momento em que determinei o que queria dizer. Mas isso trouxe, também, a responsabilidade de tudo. 

Quem escolheste para estar ao teu lado?

A produtora-mãe do projeto é a minha parceira de vida. Eu tenho um estúdio de dança e contrato pessoas que acho interessantes. Pessoas que conheci ou no samba ou num set de filmagens... aqui comigo também tenho pessoas que estão ligadas ao filme que foi rodado, recentemente, sobre a minha vida. Há neste espetáculo uma personagem à qual chamo a personagem da bailarina oculta.

Em cada cidade eu escolho uma pessoa diferente, alguém que tenha estado ligado à minha carreira. Aqui em Portugal vai ser a Filipa de Castro (bailarina principal da Companhia Nacional de Bailado). É um projeto que tem um dedo pensado para cada pedacinho dele. Não há nada neste espetáculo que seja aleatório.

Há pouco estavas a ensaiar e ouvi-te falar da luz de um camarim, vai estar simulada em palco. Imagino que ao longo da tua carreira tenhas passado muito tempo no camarim. Que lugar é esse, um espaço de descanso, reflexão ou relaxamento? Um espaço de apreensão, antes de alguns espetáculos importantes? Que camarim trazes tu para o palco no teu Último Ato?

O que o público vê neste Último Ato é o meu último espetáculo, e é sobre a desconstrução do artista. E quando tudo isto acaba, como é que é? Então [o espetáculo] é sobre tudo isto, é sobre as pessoas que te veem cumprimentar, é sobre tirar a roupa e é sobre tu estares no camarim que é o lugar mais íntimo para o artista. Para mim o camarim sempre foi a minha casa real. A minha casa era um lugar onde eu ia só para dormir. O camarim era a minha casa. É estranho isso que eu vou dizer agora, mas eu tinha um parceiro de camarim no Royal Ballet, e eu vi ele mais pelado do que as minhas próprias parceiras. A gente falava isso, "cara eu te vejo mais pelado que a minha esposa". Eu passava dias e dias ali. É um lugar de abandono e construção porque ali também tens as maiores tristezas, há momentos em que te sentes uma merda. 

É atualmente diretor do Ballet de Monterrey no México e em breve estreia o filme que conta a sua história.
É atualmente diretor do Ballet de Monterrey no México e em breve estreia o filme que conta a sua história. Foto: Thiago Soares

São momentos de questionamento?

É ali que você se prepara da sua melhor forma. A sua melhor versão, também. Você prepara tudo ali, no camarim, e depois entrega para o público. É um lugar sagrado.

Ao trazeres isso para o palco é a tua vontade de encenar esses momentos e de os tornar eternos? Ou de os "matar"?

Eu quis, neste espetáculo, colocar o público dentro do que eu faço. A perspetiva vai mudando, no início do espetáculo eu estou quase de costas para o público, eu queria criar uma interação com o público real. Uma coisa é ler um artigo ou ver um documentário sobre algo, outra coisa é ver as entranhas e perceber como falam realmente as pessoas. Este espetáculo tem intimidade. 

A ideia de finitude é importante para ti? Convenhamos, este espetáculo não é o fim da tua carreira. Leva-me a perguntar-te o que é afinal para ti o fim? 

Depois de ter vivido tanto tempo em Inglaterra acabei por aprender a ser sarcástico. Ou seja, o lado positivo do sarcasmo é essa coisa de ironizar as questões que são dramáticas. Hoje tenho prazer com isso... Neste espetáculo a brincadeira de alguém estar no final é uma grande ironia. E no próprio processo do espetáculo existe a pergunta e existe a resposta. A dança da vida é uma dança sem fim porque nós desfrutamos dela. A dança não é só minha, apesar de eu ter esse dom, a dança é uma Arte que é nossa. Quem determina o tempo e o lugar é o público, enquanto existir o palco que é a vida e o público que é a bênção.... Eu vou ter vida. É óbvio que o trabalho que faço tem uma validade por ser físico. Mas eu sinto que estou em transição. Comecei a fazer este espetáculo e percebi uma nova linguagem. Percebi que aos 40 anos era isso que tinha de fazer. Tem sido um processo legal poder fechar uma porta para abrir outra. 

"Quem determina o tempo e o lugar é o público, enquanto houver o palco que é a vida e o público que é a bênção.... Eu vou ter vida." Foto: Thiago Soares

Shakespeare dizia "a vida é um palco". E tu abordas aqui géneros de dança que nascem na rua, como o hip-hop. Tu começaste a dançar na rua, não foi?

Comecei a dançar hip-hop como hobbie e eventualmente fui chamado para uma escola de ballet. A ideia de ter um elenco eclético comigo é para que haja em palco uma linguagem universal. Eu tenho comigo um ator, gente da dança folclórica...quero que a dança seja mais democrática. Eu aqui quis ter um elenco rico nesse sentido. 

Há um filme de Pina Bausch chamado O Lamento da Imperatriz (1990) em que ela filma bailarinos com formação clássica. Como no processo de trabalho dela era pedido aos bailarinos para falarem mais do que dançar, eles acumulavam uma frustração gigante e eram filmados a correr até à exaustão no final do dia. Tentavam esgotar o corpo que sentia necessidade de se mexer. O que aconteceu ao teu corpo (e ao teu dom) depois de deixares de ensaiar tantas horas por dia? 

A nível pessoal eu trabalhei muito dentro do Royal Ballet, e tive uma trajetória muito bonita lá. Quando eu decidi com o diretor que ia seguir o meu caminho eu ainda estava num lugar bom fisicamente. Eu quis tomar a decisão enquanto tinha opção e isso deu-me muito medo. Mas, eu tinha mais medo ainda de perder o meu timing, eu sabia que a decisão de deixar de fazer o reportório era complicada. Quando eu deixei de dançar o reportório clássico estava num momento em que tinha vontade de fazer muita coisa. Depois veio a pandemia que nos travou, mas eu sempre estive ativo e fiz projetos, fiz um filme meu (Um Lobo Entre os Cisnes, que estreia brevemente). Então o meu corpo e a minha cabeça continuaram a funcionar. Depois veio o trabalho de ser diretor no México que dominou a minha vida. É óbvio que é diferente.

Deixas de ser bailarino para programar um teatro?

Sim, mas nunca abandonei o ofício, nunca deixei de fazer as minhas aulas. Para preparar um espetáculo como este que faço agora em Lisboa, é preciso ensaiar. Eu deixei sempre um setor na minha vida que me deixasse dedicar a isso. Mas é diferente, quando estás no Royal Ballet, o artista funciona em função de uma casa. Hoje os meus projetos são sobre aquilo que eu quero dizer.

Chama-se Um Lobo Entre os Cisnes o filme que foi feito sobre a tua vida. O que conta afinal?  Há drama, há amor? [O guião foi escrito por Guillermo Arriaga, argumentista de Babel (2006) e Amores Perros (2000)]

É sobre um período específico da minha vida. Não posso abrir muito sobre a história senão a produção mata-me... No filme eu tenho uma relação (é certamente a relação mais importante da minha trajetória artística) e 90% do público que me conhece não sabe da existência dessa relação e ela é importantíssima não só para mim, mas para todos os homens... é um relato de amizade, amor e devoção. Vai ser um filme especial. Tenho o privilégio de ter um filme que relata a minha jornada e conta como eu me transformei num bailarino. O filme tem uma mensagem muito forte, na verdade é mais do que ser só bailarino.

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