“Tento reivindicar o corpo como um lugar sábio.” Janet Novás, atriz de 'O Corno do Centeio'
Road movie, entre Espanha e Portugal, onde questões ligadas ao aborto vão despoletar um melodrama em que as mulheres se apoiam numa comovente rede de entreajuda. Encontro com a atriz principal.
O Corno do Centeio | Trailer.mp4
16 de janeiro de 2024 às 07:00 Tiago Manaia
O filme OCorno do Centeio da galega Jaione Camborda venceu no último Festival de Cinema de San Sebastian o prémio "Concha de Ouro" em 2023 – o mais importante desta mostra. Não foi só a realizadora a ser premiada, também o ensemble de atrizes era assim destacado num filme coral, construído a partir de um olhar feminino no qual as mulheres se apoiam e lutam contra o lugar silencioso (e secundário) em que a sociedade as forçava a viver.
A ação passa-se na década de 70, do século passado, entre a Galiza e Portugal. A comunidade piscatória da ilha de Arousa vê uma parteira obrigada a atravessar a fronteira para Portugal na clandestinidade, depois de um acidente que tira a vida a uma adolescente. Maria, interpretada por Janet Novás, deverá vencer um sem fim de peripécias, onde o seu corpo tanto é guerreiro como objeto de desejo. Que lugar tinham as mulheres durante a ditadura vivida em ambos os países onde decorre a ação do filme? E como, no silêncio, se ajudavam vencendo os limites impostos pelo patriarcado? A interpretação de Janet Novás agarra o espetador. Entramos num transe emotivo ao observar o que vive esta mulher. No início de novembro de 2023, numa sessão especial de exibição do filme em Lisboa, fomos conhecer esta bailarina espanhola, que deixou os palcos temporariamente para dar vida a Maria no filme. A emoção na sala era palpável, parte da família do elenco português descobria também o filme, como a da jovem atriz Siobhan Fernandes que se abraçava a Janet no final da projeção em lágrimas. O reencontro de duas atrizes que tanto partilharam em cena deu-nos fôlego para a conversa que se segue.
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Foto: DR
És bailarina e coreógrafa. Como reagiste a este convite para seres atriz depois de dançares há já tanto tempo?
Foi uma oportunidade muito bonita de levar para ali também o trabalho que faço de investigação. Eu trabalho muito à volta da origem, o animal e o instintivo. Foi bom poder levar isso para uma personagem, eu trabalho muito à volta de mim mesma…
Trabalhas a partir do teu próprio corpo?
Claro, isso para mim foi uma dificuldade a ultrapassar. Porque em geral estou sempre a observar-me de um ponto de vista artístico. E no filme foi como se tivesse posto o meu corpo ao serviço de uma personagem que estava a ser dirigida por outra pessoa. Para mim foi um salto muito bonito e especial e também me apercebi da potência do trabalho que tenho vindo a desenvolver, a investigação que tenho feito a partir do território e dos corpos e como se constroem... Como herdamos os corpos? Para mim é algo muito presente que vai além das direções dadas pela realizadora Jaione Camborda. Era algo que eu já tinha construído, a consciência de como se herdam os corpos que foram silenciados.
A energia ou o olhar. Nesse aspeto não foi difícil, os olhares do filme eram os olhares que sempre vi nas minhas vizinhas... Quando não podiam falar, perguntava-lhes algo e respondiam com um olhar.
A lei do aborto ou a interrupção voluntária da gravidez acabou por acontecer em Portugal muito mais tarde que em Espanha, só em 2007... (em Espanha foi aprovada em 1985).
Só em 2007? Tão tarde? O problema é que agora há quem queira que essas leis sejam revertidas. É estranho como as épocas podem ser confundidas. Por exemplo, quando imaginamos a década de 70 do século passado, não pensamos logo, mas na realidade há uma conexão com o mundo contemporâneo. São, todavia, temas frágeis que podem ser revertidos muito facilmente.
Nos EUA isso está a acontecer em alguns Estados...
E em Espanha, há partidos que querem que o aborto deixe de ser possível.
Há países onde ainda acontecem muitas desgraças como neste filme. Na ilegalidade acontecem acidentes despoletados por um aborto feito na clandestinidade.... Sentias, neste filme, que estavas a contar a história de muitas mulheres?
No primeiro momento em que a Jaione me convidou para fazer o filme senti-me a ser invadida por uma insegurança grande, perguntava-me, "como vou construir uma personagem?".
Eu não sou atriz, então fui para o Youtube ver tutoriais de como fazer (risos)... Mas ao falar com ela, acabei por me dizer, "não, ela chamou-me porque viu algo em mim." Ainda que não tenha vivido nessa época, o meu corpo tem provavelmente uma memória e traz nele gestos que são da minha avó.
Quando, na rodagem, comecei a ensaiar com as marisqueiras [as mulheres que apanhavam o marisco] senti que algo brotou dessas memórias, inclusive havia algo que a minha personagem Maria parecia saber, ainda que não o soubesse... Ela flui com a vida... há algo nela da água e da terra. Para mim, a minha personagem Maria está muito perto das mulheres que me rodearam ao longo da vida. Era-me familiar.
Há algo curioso nas obras artísticas espanholas que têm chegado a Portugal no último ano, o filme As Bestas de Rodrigo Sorogoyen também se passa na Galiza, o livro Pança de Burro da jovem Andrea Abreu conta uma realidade passada na ilha das Canárias. É como se houvesse cada vez mais uma necessidade de falar dos corpos que existem longe das grandes metrópoles? Em Espanha há uma vontade de falar de outro tipo de vivências?
Para mim parece-me ser uma questão de justiça. E aqui falo-te de um lugar meu pessoal, o facto de ter crescido em sítios onde as pessoas não têm acesso a uma educação e não podem articular o pensamento... Nesses casos é o corpo que fala... ainda que as pessoas da ruralidade não tenham tido acesso à educação, há muita sabedoria nesses corpos.
A mim, pessoalmente, é algo que me toca muito e a minha carreira de bailarina está marcada por isso. Tento reivindicar o corpo com um lugar sábio, porque tem outro tipo de conhecimento.
Então o teu abandono no filme vem porque confias no teu corpo?
No meu corpo, sim, e o corpo confia na terra e na natureza, porque não era só sobre mim. Era como se a paisagem me sustivesse.
Quando és bailarina imagino que aqueças o corpo antes de dançar, e nas filmagens como fazias? Imagino que tenha sido uma energia completamente diferente, porque as cenas no cinema repetem-se vezes sem conta.
Dependia das cenas. Na parte mais dramática em que me contam a morte da Luísa por exemplo, fui a memórias pessoais de perdas ou memórias em que tenha tido um choque forte. Foi a maneira que a Jaione encontrou para trabalhar comigo, ela queria algo muito natural, muito vivo, e em cenas assim eram trazidas memórias de choques, sobretudo... E depois havia uma ideia de contenção de que a Jaione me falava sempre. Eu, no meu trabalho de bailarina, sou muito explosiva, estava sempre a perguntar-lhe se no filme ela não queria que a Maria desse uma tareia a alguém, e ela dizia-me, "não, a Maria é contida em tudo". E essa contenção tinha a ver com a confiança, eu percebi isso ao ver o filme pela primeira vez.
A contenção também faz parte do silêncio em que as mulheres foram obrigadas a viver durante tantas épocas?
Tanto. Para mim foi muito bonito quando vi o filme. Porque durante a rodagem custava-me olhar para mim própria. Estava caracterizada para parecer mais velha e cheguei a pensar que não iria suportar ver-me no cinema..., mas sucedeu algo mágico, eu não olhei para mim, ou para a Janet... pareceu-me ver algo como um poço da vida que estava colocado atrás de mim. Não sei explicar, tocou-me de uma maneira muito bonita.
Choraste quando viste o filme pela primeira vez?
Muito (pausa). Tocou-me muito, porque o filme fala sobre algo que eu acredito muito... As coisas não só sobre nós, há algo maior...ou seja aquilo não é sobre nós enquanto pessoas que se chamam Janet ou Maria, não é egocêntrico, e por isso existe uma sororidade.
Foto: DR
O que te dizem as mulheres depois de ver o filme?
Agradecem-me e dizem, "claro, era assim".
Ou seja, dizem-me que não lhes estou a contar nada de novo, e gosto muito disso porque parecem recordar-se de algo quando falam comigo. Mas dizem mesmo: "claro - era assim."
O Corno no Centeio de Jaione Camborda está em exibição algumas das salas de cinema portuguesas.