Patrícia Sequeira e as Doce: “A cena da masturbação é ousada. Disseram-me para tirar? Sim."
'Bem Bom', o aguardado filme sobre as Doce, chegou esta quinta-feira, 8, às salas de cinema. À Máxima, Patrícia Sequeira, realizadora, conta como a banda dos anos 80 ajudou a mudar mentalidades de uma nova geração de mulheres.
Foto: Cinemundo Lda.09 de julho de 2021 às 08:45 Joana Moreira
As músicas continuam na ponta da língua. Quente, Quente, Quente, Ok, Ko, Ali – Babá. Dificilmente alguém não saberá pelo menos trautear alguns versos de temas das Doce, a banda pop portuguesa que, nos anos 80, nascia pela mão de Tozé Brito e Cláudio Condé. Era um produto comercial pensado para chocar a sociedade conservadora e Fátima Padinha, Teresa Miguel, Lena Coelho e Laura Diogo eram as quatro magníficas responsáveis por fazê-lo acontecer.
O filme sobre a história da girlsband – uma obra ficcionada, ainda que baseada em factos verídicos – chega finalmente aos cinemas portugueses, com produção da Santa Rita Filmes e realização de Patrícia Sequeira. Antes da estreia, a Máxima falou com a realizadora.
Adiado por duas vezes devido à pandemia, o filme vai finalmente estrear-se. Como é finalmente ver o filme chegar às salas?
É uma sensação de algum alívio. Fazer um filme destes, com esta dimensão, com esta entrega e com este esforço e depois mantê-lo preso numa altura em que acho que as pessoas precisam de alguma alegria talvez não seja a melhor opção a nível de exibição, de produção. Em termos de bilheteira não é com certeza a melhor opção agora, mas é este o melhor momento para oferecer às pessoas um momento de alegria.
Acha que com os números da pandemia a aumentar e com as novas restrições os portugueses se vão deslocar ao cinema?
Nunca fiz o filme a pensar na bilheteira, mesmo com esta dimensão. Sendo um filme sobre as Doce obviamente que se esperava que fosse o filme do ano. Nunca é essa a minha meta e, portanto, nunca faço esse tipo de contas. O momento não é bom em termos de bilheteira, não é uma opção em termos de produção. Agora, eu também com a pandemia deixei de fazer planos. Tudo o que achávamos que em algum momento pode acontecer de uma maneira acontece de outra. As pessoas até podem ter medo de ir ao cinema, sim, mas também podem estar muito ávidas de ver alguma coisa que as faça viajar, que as faça sair de uma realidade, e reencontrar-se, porque este é um filme que une gerações, com um passado em que tínhamos outro tipo de máscaras, na verdade, outro tipo de amarras. Mas que é uma memória feliz.
Passado nos anos 80, o filme tem vários momentos em que a desigualdade de género é evidente, como quando o pagamento do concerto é feito à personagem do José Mata e não às artistas, ou a obsessão com o peso e o aspeto físico das cantoras. Como foi pontuar isso no filme sem o tornar só sobre isso?
Longe de mim fazer um filme panfletário ou cheio de bandeiras, não era essa a minha ideia. Simplesmente quando agarro numa matéria tão rica como uma banda de quatro mulheres nos anos 80 a fazer sucesso é incontornável. Essas histórias vêm ter comigo. Há quem diga que os meus filmes têm todos esta tónica. Eu não sei se eu vou ter com isso ou se isso é evidente para mim, mas tive de alguma maneira uma ambição de fazer um filme que espelhasse ou que tratasse esta banda e entusiasmei-me um bocadinho com as histórias das mulheres porque elas iam ligar-se exatamente a esses pontos que, 40 anos depois, ainda continuam na ordem do dia. Seria incontornável isso.
Disse em tempos que as Doce "ousaram desafiar um Portugal reprimido". As letras da banda que falam de sexo, de prazer, foram revolucionárias na época. Acha que captou um bocadinho desse espírito no filme, de uma outra forma, em cenas como a da masturbação feminina, por exemplo, ainda tão pouco representada no cinema?
Sim, em alguns momentos as personagens quando estão só consigo próprias revelam-se. As letras representam e esta banda representa qualquer coisa que eu queria que este filme também representasse. Por exemplo, elas eram extremamente modernas para a época. E por isso eu quis que este filme não fosse um filme de época. Quero filmá-lo com aquilo que eu hoje tenho, com as possibilidades que tenho, com os olhos de hoje. Portanto tudo o que elas representavam, a ousadia, os planos, a câmara ficar no rabo delas a abanar, é porque elas provocavam qualquer coisa no espectador e a câmara também poderia ter esta possibilidade de ir mais perto. À época, a câmara ficava atrás a ver quatro mulheres num plano fixo. Quis adotar a modernidade, a ousadia, quis que o filme provocasse aquilo que elas provocavam. Elas provocavam coisas nos homens e nas mulheres, e eu também quis provocar isso.
No momento do filme em que parece que haverá uma cisão do grupo há um discurso que coloca as Doce no papel de uma banda que empodera as mulheres. É isso que é sugerido por uma das personagens, interpretada pela Sara Carinhas, que verbaliza os constrangimentos de ser mulher naquele tempo. Partilha da opinião da personagem, acha que as Doce foram uma banda de empoderamento feminino?
Acho que as Doce são, se calhar inconscientemente, um produto que veio ajudar a alguma mudança. A personagem da Sara Carinhas é ficcionada. Realmente havia uma secretária, existia esta figura, mas não com este carácter. A figura da Sara Carinhas representa aqui o arco da mulher neste período de tempo. Há mulheres que realmente começaram a subir a bainha da saia, a por batom, a arranjar-se porque nós somos também aquilo que vemos à nossa volta. As Doce... se calhar fizeram mais do que as feministas à época. Até porque a Maria Teresa Horta disse que [as Doce] eram pornográficas. 40 anos depois eu olho para isto e sim, eu não tenho muitas dúvidas de que este produto, consciente ou não, estavam a abrir caminho para alguma coisa, ou a permitir a nós mulheres fazer uma série de coisas, inclusive a maneira como nos vestimos, a forma como podemos ter prazer, e de facto a cena da masturbação é super ousada. Se me pergunta: tem cabimento no filme, disseram-me para tirar? Sim. Exatamente por isso é que eu não a tirei. Acho que tudo o que provoque algum choque foi exatamente aquilo que elas provocaram. E eu hoje tenho a possibilidade de não tirar.
Acha que foi preciso chegar a 2021 para olhar para as Doce com essa perspetiva?
Acho que era possível até mais cedo, só que em Portugal não se toca na nossa História, a nossa História é sagrada, dá muito trabalho, tem muitas contrariedades, as pessoas ficam muito zangadas. Ficam muito atentas àquilo que não está certo, é uma pena porque depois as histórias não se contam. Eu podia fazer uma história de uma girlsband qualquer, era muito mais fácil.
Aquando da estreia de Snu disse numa entrevista à Renascença que houve quem achasse que era cedo para contar aquela história. Neste filme também sentiu este tipo de resistência?
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Sinto resistência sempre de tudo o que é mexer na história portuguesa, eu fiz o Depois do Adeus e falava-se do regresso dos retornados, embora não faça muito sentido este nome porque ninguém retorna a uma terra que não conhece, mas já na altura foi uma questão. Parece que em Portugal só se pode mexer na história quando se passaram alguns séculos. Ora, eu acho que há muita coisa para falar sobre nós. Este filme é um pedacinho de Portugal. Quem eramos nós há 40 anos? Está aqui. Eramos um bocadinho isto.
Esse retrato de Portugal está espelhado no discurso do ombro amigo que apoia Laura Diogo na situação do boato [que envolvia Laura Diogo e Reinaldo, jogador do Benfica]. O discurso, em que se fala de racismo, homofobia, podia ter sido escrito hoje. Esse discurso está desde o início no guião?
Estava desde o início, desde até das conversas que eu tive com a Laura Diogo, em que falavam de "um gorila", a ideia de um "king kong" a agarrar na loira, uma ideia animalesca. O facto de ele ser negro, de ela ser loira, o estigma que tudo isto envolve. Era muito apetecível encontrar aqui uma história. Vendia. E fazia as delícias de um Portugal que adorava um escândalo.
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Há uns anos, numa entrevista à TSF sobre o Jogo De Damas, contou como fez o filme nas suas férias, com um orçamento seu, com o que tinha. Em que é que este projeto foi diferente? Diria que foi o seu maior filme até à data, a nível de estrutura de produção?
Quando me falam do Jogo de Damas, o Jogo de Damas é para mim o "meu" filme. Não só por ser o primeiro, mas por tudo aquilo que ele representou. Mais tarde fiz a Snu que foi um desafio, foi um trabalho de encomenda que eu abracei loucamente. E este é uma série de sete episódios que também tem um filme associado. Portanto, continuo a fazer filmes sem apoio. O que também é muito giro e dava um bom filme. Porque é que alguém como eu, com a experiência que eu tenho, continua a ter que esperar ter 60,70 [anos] para ter um subsídio para financiamento. Não tenho. Não tenho grandes razões, mas não é isso que me trava. E por isso talvez a minha causa faça todo o sentido ser abraçada por mim, que sou sem amarras e não devo nada a ninguém. Ninguém me subsidia, não tenho prémio no ICA. Este país realmente não é para velhos, mas na realização é. Tem de se ser velhinho para fazer cinema. Pelo menos com apoio.