O livro sobre consentimento que gostaria de ter lido quando tinha 15 anos

"Continuo à Espera de que me Peçam Desculpa" é romance de autoficção (assim parece) em que a autora reflete sobre o significado de consentimento. Perante os olhares, as mãos e as palavras dos homens a protagonista, Anna, não conseguia deixar de ceder. Mas será que ceder e consentir é a mesma coisa?

Foto: DR
28 de janeiro de 2025 às 15:03 Madalena Haderer

"Mais um livro sobre consentimento? Santa paciência…" Se esta foi a sua primeira reação quando viu a capa do livro de Michela Marzano e leu a entrada deste texto, não vá já embora porque não está sozinha. Foi também isso que pensei, quando o recebi. Comecei a lê-lo com uma certa displicência, à espera de ficar enjoada logo na primeira página, mas não fiquei. E já não o consegui pousar – apesar de nem sempre ser uma leitura fácil de digerir. A melhor altura para ler este livro teria sido, de facto, durante a adolescência, quando poderia ter servido de alerta; a segunda melhor altura é agora, quando pode ajudar a explicar e contextualizar alguns episódios de assédio, ou mesmo de abuso, que muitas mulheres nascidas nas décadas de 70 e 80 – e antes – viam como normais.

Muitas mulheres? Não seriam todas? A autora, através da protagonista da história, Anna, também se questiona sobre isso. Ao longo do livro pergunta, diversas vezes: "Mas como é que as outras conseguem ser sempre respeitadas?" Será que conseguem mesmo? Se sim, parece ser fruto de uma mistura mágica que inclui sorte, uma infância particularmente santa, e um espírito naturalmente combativo, desconfiado e capaz de ferir os sentimentos alheios sem pestanejar.

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Continuo à Espera de que me Peçam Desculpa é, pode ler-se na contracapa, "um romance extremamente atual sobre como às vezes só muito tarde as mulheres percebem como sofreram abusos". Neste livro, Michela Marzano, filósofa, escritora, cronista dos jornais La Repubblica e La Stampa e professora universitária na Sorbonne, onde é diretora do Departamento de Ciências Sociais, nascida em Roma, em 1970, questiona, por exemplo, "quantas interpretações damos à palavra ‘consentimento’" e "quando é que podemos ter a certeza que um ‘sim’ não esconde uma hesitação". Perguntas para as quais raras vezes há uma resposta clara, fruto da "relação ambígua que temos com os outros e com o nosso próprio corpo".

Foto: Getty Images

Apesar de nos ser apresentado como romance, parece ser aquilo a que hoje se chama autoficção. A protagonista, Anna, não é a autora, no entanto, as suas vidas coincidem em diversos aspetos. Ambas nasceram em Itália, passando, depois, a sua vida adulta em França – uma mistura particularmente infeliz de homens "fogosos", chamemos-lhes assim, com homens que acham que a liberdade feminina é liberdade para se ir para a cama com eles. Ambas são jornalistas e professoras universitárias. Ambas têm cerca de 50 anos. Posto isto, os diversos episódios que a autora conta – um marido que lhe bate, um professor do liceu que enfia a mão no bolso das suas calças quando ela tinha 11 anos, diversos encontros sexuais que saem do controlo ou que diferem muito das expectativas iniciais – são autobiográficos? Talvez sim, talvez não. Não importa. Até porque o mais provável é que cada leitora tenha o seu próprio rol de episódios para juntar aos que lhe são contados. Episódios nos quais talvez nunca tenha pensado pelo ponto de vista que a autora propõe. Episódios em que talvez nunca se tenha visto como vítima, mas que, agora que pensa nisso…

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Ao longo de cerca de 300 páginas, Michela Marzano vai fazendo perguntas que atingem o leitor como um soco, por exemplo:

"Se bem que ceder não signifique consentir. Mas quando é que se consente de facto? Como é que se aprende?"

"Por que é que certas coisas sempre me aconteceram, mas nunca à minha mãe?"

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"Que disparate é este de dever conjugal?"

"O que é que se consente quando alguém se casa?"

"Mas, voltando aos homens, ia para a cama com eles porque era livre ou pensava que era livre por ir para a cama com eles? Amava-os ou enganava-me a mim própria?"

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"No entanto, se um homem não tiver mais vontade pode parar, o corpo ajuda-o, mas e uma mulher?"

"Mas quando é que o consentimento é livre e quando é que é forçado? E quando é que é absoluto? Tem de ser declarado, isto é, explícito, ou pode ser implícito e subentendido?"

"O que é exatamente consentir, quando se consente ter relações sexuais? Como é que ele se vai comportar no momento em que tiver acesso à minha intimidade?"

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"Será que uma pessoa que se cala consente de facto?"

"Que está em jogo quando uma pessoa consente num caso ou numa relação e depois se vê dentro de uma trama sombria, talvez forçada a sujeitar-se a coisas que nunca teria consentido se apenas as tivesse podido imaginar?"

São as perguntas que a protagonista vai fazendo a si própria, muitas vezes, no regresso das suas sessões de psicanálise, e aos seus alunos do mestrado em Jornalismo, com quem reflete sobre o tema do #MeToo e as suas consequências sociais e culturais.

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Continuo à Espera de que me Peçam Desculpa é um livro que todas as mulheres devem ler, mesmo aquelas que acham que a ideia de masculinidade tóxica foi demasiado longe – até porque o romance dá voz a argumentos desse lado da barricada –, e que, depois de o lerem, devem passá-lo às suas filhas, sobrinhas e amigas mais jovens.

Foi editado pela ASA, uma chancela da Leya, e custa 16,92 euros.

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