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Mulheres de Hollywood. A idade fica-lhes tão bem

As recentes performances de Nicole Kidman, Angelina Jolie ou Pamela Anderson, todas elas apontadas nas diversas cerimónias de prémios que antecedem os Óscares, denotam uma tendência para abraçar grandes papéis depois dos 40. Apesar disso, nenhuma delas consta da lista final de nomeadas que concorre pela estatueta dourada. O que é que isto significa? Que a luta continua.

Foto: IMDB / 'The Last Showgirl'
06 de fevereiro de 2025 às 07:00 Ana Murcho

É um dos melhores filmes sobre os bastidores de Hollywood, esse mundo de espelhos e contradições onde a vaidade, a obsessão e a loucura coabitam com a genialidade e a magia: Sunset Boulevard (1950), que em português tem o título revelador de O Crepúsculo dos Deuses, é muito mais do que uma obra-prima do noir, é um hino à sétima arte. Ele conta-nos a história de Norma Desmond, antiga estrela do Cinema mudo que vive fechada numa mansão insípida e gigante, convencida de que mais cedo ou mais tarde o realizador Cecil B. DeMille a voltará a chamar para trabalharem juntos. [nota: DeMille não é apenas personagem fictício, foi um dos 36 fundadores da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas] Essa crença delirante é alimentada pelo súbito aparecimento de Joe Gillis (William Holden), um argumentista fracassado — que tem tanto de gigolo oportunista como de fã embevecido —, que promete ressuscitar a sua carreira. "Eu continuo a ser uma grande atriz! Os filmes é que se tornaram pequenos!", atira a diva ao seu mordomo (interpretado por Erich von Stroheim), uma figura bizarra que lhe alimenta o ego e que, por acaso ou não, é também o seu ex-marido e o primeiro cineasta com quem colaborou. O desabafo solitário de Desmond é como um eco do desespero real da atriz que lhe dá vida — Gloria Swanson, "a maior estrela de todas", sinónimo de êxito de bilheteira nos anos vinte do século passado, quando era transportada dos camarins para o set num pequeno carrinho para evitar percalços com o seu frágil e delicado corpo. E para não danificar os seus turbantes forrados a penas de pavão e os seus casacos de pele de avestruz.

Foto: Getty Images

À semelhança de Desmond, que profere uma das frases mais icónicas da História do Cinema ("Mr. DeMille, estou preparada para o meu close-up!") Swanson estava há muito tempo "à espera", pronta para o seu grande plano. Tinham passado duas décadas desde o seu último grande sucesso. Já não era o seu nome que o público queria ver anunciado a néon nas vitrines das grandes salas escuras. A sua luz tinha-se apagado. Talvez por isso, apesar de ser uma crítica feroz sobre os meandros da indústria, bem como uma reflexão nada abonatória sobre o ostracismo a que as atrizes são votadas — principalmente depois dos 40 anos —, Sunset Boulevard foi aplaudido, encarado como um fabuloso mea culpa; uma vez mais, a Arte foi a salvação, o meio através do qual o sistema se justificou, e ao mesmo tempo antecipou, o fim dos célebres anos dourados de Hollywood. O filme serviu para mostrar aos primeiros ocupantes do star system, nomeadamente mulheres, que o seu prazo de validade dependia da duração da memória dos espectadores. E da sua beleza, claro. As primeiras rugas pagam-se muito caro. Não obstante o aplauso generalizado, Gloria Swanson não se reconciliou com as audiências. Muitos não a (re)conheciam, outros acreditavam que ela e Norma Desmond eram a mesma pessoa. Além disso, as propostas que recebeu posteriormente foram, segundo a própria, "pálidas imitações" desse papel que acabou por lhe a dar a nomeação ao Óscar de Melhor Atriz de 1951 — outra das concorrentes era Bette Davis, indicada por All About Eve, e todos acreditavam que o galardão seria entregue a uma das duas. No final, o prémio seria ganho por Judy Holliday, pelo seu papel na comédia Born Yesterday. Holliday tinha, à época, 30 anos. Davis estava a dias de celebrar os 42. Swanson era "uma velha raposa", nascida em 1899.

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O mundo tem um problema (histórico) com a idade. Hollywood tem um problema (crónico) com a idade. A discriminação etária e a misoginia, enraizadas na sociedade desde a sua génese, foram durante séculos encaradas como dados adquiridos e não como temas de debate. O sexismo, que permeou as Belas Artes desde os seus primórdios, decretou uma série de preconceitos e estereótipos que redefinem a beleza feminina e a transformam num conceito enviesado e diabólico, que serve antes de mais os olhares de terceiros. Assim é no Cinema, que mais não faz do que refletir o zeitgeist. Numa indústria que se rege por dois pesos e duas medidas, a elas calhou-lhes uma espécie de "reforma antecipada" que chega por volta dos 40 anos, quando os cabelos brancos, a pele baça e os eventuais quilos a mais começam a destoar na noção de "estrela." E nisso, já se sabe, o grande ecrã é implacável: neles o grisalho pode ser sexy, nelas é sinal de desleixo; eles, quando "mais velhos", são retratados como sábios, desejáveis, até; elas, "mais velhas", são personagens unidimensionais, sem profundidade. Este é um paradigma obsoleto, que acredita que o valor de uma mulher está ligado à sua aparência e à sua capacidade de se manter jovem.

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The Last Showgirl

Foi precisamente isso que confirmou Geena Davis, em 2022, no podcast Allison Interviews. "É muito estranho e muito frequente", explicou quando questionada sobre o idadismo em Hollywood. "Um determinado ator disse que eu era demasiado velha para ser o seu par romântico. Eu era 20 anos mais nova do que ele." O relato de Davis tem tanto de absurdo como de assustador. Contudo, ele é o reflexo de um sistema que privilegia um ideal de beleza inacessível. Os papéis que são oferecidos às mulheres mais velhas são frequentemente estereotipados (a mãe, a avó, a bruxa) e não tendem a ter a mesma profundidade e complexidade dos personagens masculinos. Em alguns filmes, a mulher mais velha é relegada para um papel secundário, que apenas serve para reforçar a história do protagonista masculino, reforçando a ideia de que a relevância delas desaparece com a idade. Além disso, os produtores raramente escolhem mulheres mais velhas para filmes de ação ou comédias românticas, dois géneros particularmente lucrativos. Alicia Malone, apresentadora do canal Turner Classic Movies e autora de três livros sobre mulheres e Cinema, relembrou ao site Refinery 29 os danos colaterais deste modus operandi: "Quando pensamos no quanto as mulheres mais velhas foram apagadas de Hollywood, isso também nos faz refletir no quanto todos nós perdemos pelo simples facto de não podermos assistir às suas histórias no grande ecrã." É como se essas histórias não fossem interessantes. Pior, é como se essas histórias não existissem. Mas, ao que parece, as coisas estão a mudar.

Foto: Getty Images

Em 2023, então com 61 anos, Michelle Yeoh venceu o Óscar de Melhor Atriz por Everything, Everywhere All At Once, o mesmo filme que deu a Jamie Lee Curtis, à época com 64 anos, o galardão de Melhor Atriz Secundária. Foi a primeira nomeação para ambas as atrizes, duas "veteranas" da indústria. Um ano antes, Jennifer Coolidge tinha "limpado" todos os prémios relativos a televisão. A sua prestação na série The White Lotus punha fim a décadas na berlinda, em papéis que serviam apenas para sublinhar a veia cómica dos outros personagens — foi vezes sem conta a esposa fixe que é deixada sem razão aparente, a solteirona desengonçada, a namorada que é tema de chacota no bar… Muito depois dos 50, a sua Tanya McQuoid é uma mulher instável, problemática, adorável — real. E de repente o mundo apaixonou-se de novo por Coolidge. Também Annette Bening, figura recorrente dos grandes blockbusters das décadas de 1980 e 1990, regressou à ribalta. A sua participação em Film Stars Don’t Die in Liverpool (2017), que retrata a amizade entre uma antiga estrela de Cinema e o seu jovem amante (ironia?), valeu-lhe o aplauso da crítica. O ano passado foi nomeada ao Óscar de Melhor Atriz por Nyad. E se Bening não levou para casa a estatueta dourada, o mesmo não se pode dizer de Frances McDormand, que ganhou o Óscar de Melhor Atriz quando já tinha ultrapassado a barreira dos 60 anos — por Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (2017) e Nomadland (2020). Meryl Streep, que recebeu dois terços das suas 21 nomeações aos Óscares depois dos 40 anos, Viola Davis ou Helen Mirren são exemplos de mulheres com carreiras aclamadas para quem a data de nascimento não é um problema; elas são, recorrentemente, a peça central em histórias em que a idade e a experiência são componentes-chave das suas personagens, e não fraquezas.

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Mais: a crescente popularidade de serviços de streaming permite uma maior flexibilidade nos conteúdos, e isso significa que há espaço (finalmente) para descobrir argumentos que durante anos nos foram negados. Séries como Grace and Frankie, com Jane Fonda e Lily Tomlin, são a prova de que os espectadores, afinal, querem ver histórias sobre mulheres mais velhas. A cultura popular também parece abraçar cada vez mais o confronto do real com a idade. Até há pouco tempo era impensável ver rugas na capa de uma revista de Moda. Essa é uma questão que parece estar ultrapassada. As marcas de cosmética evitam vender cremes "antienvelhecimento" e preferem abordagens mais sensatas, de acordo com o discurso corrente, que privilegia tudo o que é natural. A maquilhagem deixou de ser encarada como uma obrigação e passou a ser um prazer — veja-se Pamela Anderson, que não receia aparecer numa passadeira vermelha make-up free. Este movimento de consciência coletiva pode servir de inspiração para uma mudança com efeitos a longo prazo. Por outro lado, a proliferação das redes sociais faz com que cada vez mais atrizes e cineastas não tenham receio de usar as suas plataformas para denunciar o sexismo e os preconceitos que enfrentam, falando abertamente sobre as pressões que sentem para se conformarem com os padrões de beleza impossíveis de Hollywood. Lentamente, como em todas as revoluções que se querem duradouras, as coisas vão acontecendo. Não vamos assumir, já, que estamos perante uma tendência — nos dias que correm, isso é tão inútil como usar um hashtag para chamar a atenção de alguém para uma causa —, e que de repente as mulheres mais velhas (e de todos os géneros e idades) governam a sétima arte. Se há esperança? Há.

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O renascimento (a palavra correta talvez seja "reconhecimento") de estrelas como Demi Moore ou Pamela Anderson, durante décadas encaradas como meros sex symbols, pode indicar que estamos no bom caminho. Tanto uma como outra protagonizam filmes que tratam a relação do mundo do show business com a "decadência feminina", que chega com o passar dos anos: The Substance e The Last Showgirl.

Se no primeiro caso estamos perante uma obra de horror gore e terror psicológico sobre uma celebridade que descobre uma droga que cria uma versão mais nova (e melhorada) de si mesma, no segundo deparamo-nos com um drama sensível sobre uma bailarina que enfrenta o fim da carreira, com o aproximar do seu último espetáculo em Las Vegas. Ambos são reflexões profundas sobre o impacto do tempo na arte e no entretenimento. Ambos são, à sua maneira, um tributo à resiliência feminina. Ambos são realizados por mulheres: Coralie Fargeat (recém-nomeada ao Óscar de Melhor Realizadora) e Gia Coppola, respetivamente. No entanto, só uma delas pode ganhar a tão cobiçada estatueta dourada. Pamela Anderson ficou fora da corrida, à semelhança de Angelina Jolie (49 anos), que dá vida a Maria Callas no biopic de Pablo Larraín, Maria, que conta a história dos últimos dias da diva da Ópera, ou Nicole Kidman, que era vista como uma das prováveis concorrentes ao prémio. A atriz, de 57 anos, brilha em Babygirl, um thriller erótico onde interpreta uma diretora executiva de alto nível que tem um caso proibido com um estagiário muito mais novo. Um papel "arriscado" que tem granjeado aplausos a Kidman (deu-lhe, por exemplo, a Copa Volpi de Melhor Atriz em Veneza) e alguma desconfiança de um certo público masculino, pouco habituado a este tipo de sensualidade feminina. Será coincidência que por detrás da câmara esteja uma mulher, a holandesa Halina Reijn?

Foto: Getty Images

Podemos questionar-nos, com razão, porque é que estamos a ver este "tipo" de filmes agora. Foi precisamente isso que fez a revista Marie Claire, que perguntou a Kate Gersten, argumentista de The Last Showgirl, porque é que só agora é que estávamos a ter este género de conversas. "É preciso coragem — dos escritores, realizadores e atores, mas também dos produtores e distribuidores. Na verdade, há anos que escrevemos estas histórias, mas estão finalmente a vir à luz do dia, porque os que dão o dinheiro para estes projectos estão finalmente a ver como são dignas, relevantes e necessárias para o público feminino." E não se coibiu de sublinhar: "As mulheres precisam de contar histórias de mulheres complexas, é tão simples quanto isso. As histórias de mulheres contadas por homens centram-se sobretudo no sexo ou na competição. Essa é a perspetiva masculina. (…) Ser mulher pode ser maravilhoso e pode ser miserável. Temos de manter contradições a toda a hora, especialmente à medida que envelhecemos. Ser mãe é tão difícil, mas tão gratificante. Sentir-se bonita mas ignorada é uma verdadeira loucura. Um filme verdadeiro sobre temas como estes não é uma coisa ‘sombria’ [referência ao lado mais melancólico da obra], é o reflexo de como as mulheres se sentem e, para mim, isso é bonito e inspirador."

Foto: @Barbara Kruger

Em 1989, um ano marcado por numerosas manifestações de protesto contra uma vaga de leis anti-aborto nos Estados Unidos, a instalação Your Body is a Battleground, realizada pela artista Barbara Kruger para a Marcha das Mulheres, em Washington, tornou-se um dos maiores símbolos da luta feminista. A obra, simultaneamente autoritária e sensacionalista, confronta o público com o rosto de mulher, sem corpo, dividido ao meio (fotografia e negativo), obscurecido por texto. É uma divisão radical, que serve tanto para a batalha travada aquando do seu lançamento como para os combates que as mulheres travam, diariamente, por causa do seu corpo. Talvez a ausência de Nicole Kidman, Angelina Jolie ou Pamela Anderson da lista de nomeadas ao Óscar ainda resida numa célebre frase que marca outro momento de autorreflexão do Cinema. "There are only three ages for women in Hollywood: babe, District Attorney, and Driving Miss Daisy." (numa tradução livre, "Só existem três categorias para se ser mulher em Hollywood: boazona, procuradora-geral ou Miss Daisy" [referência à personagem idosa com o mesmo nome]. Assim o disse Elise Elliot, interpretada por Goldie Hawn, na comédia The First Wives Club (1996). Contam-se pelos dedos de uma mão o número de filmes em que a vencedora do Óscar de Melhor Atriz Secundária de 1971, pela sua prestação em Cactus Flower, entrou desde então. A luta continua.

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