O meu nome é Virgínia e tenho 86 anos. Já vi muita coisa nesta vida. Vivo num rés-do-chão, tal como, de resto, quase toda a gente aqui na vila, uma terra de vivendas rasteiras, encostadas umas às outras. Da minha janela que dá para rua, vejo e ouço a vida que me rodeia, os meus vizinhos e os transeuntes, cada um com suas vidas.
Mora na minha rua, três casas mais acima, um casal muito particular. Estão na meia idade, conheço-os desde a sua juventude, somos vizinhos há mais de vinte anos. Distinguem-se por serem muito ruidosos, fazem barulho de uma maneira descontrolada.
Não sei se esta será exatamente uma história de amor moderno, mas, tendo os contornos do amor uma natureza intemporal, diria que a história deles é tão boa como qualquer outra.
Chamam-se Sandra e Manuel. Nunca tiveram filhos. Não sei os motivos deles, há quem diga que o Manuel não pode e quem especule que a Sandra não consegue, mas já se sabe como são as pessoas a falar da vida dos outros. Não me surpreenderia que não tivessem filhos simplesmente porque não querem. Tanto quanto sei, para a Sandra, que vive numa realidade muito própria, talvez ainda não tenha chegado o momento certo, apesar de já ter passado a curva dos cinquenta.
Há uns tempos, a Sandra chegou-me aqui a casa muito aflita, Dona Virgínia, abra depressa, a bater-me à porta com muita força e muita insistência. Não estranhei, tratando-se da Sandra, podia perfeitamente estar aflita e com urgência por fazer calor ou frio, ou por serem seis da tarde, ou por precisar de um raminho de salsa.
A Sandra e os seus gritos, o seu tumulto constante, a sua intensidade ímpar, são conhecidos em toda a vila. Ela grita sobretudo, mas não exclusivamente, com o marido. O Manuel, por seu lado, parece ter feito um pacto com os deuses da serenidade: impávido, tranquilo, escuta o que lhe diz a Sandra em alvoroço, sem perder a compostura. Nunca o ouvi levantar a voz.
Certa vez, durante uma grande, grande discussão - não tenho a certeza de que discussão seja a palavra correta, uma vez que a situação consistia muito simplesmente num desvario completo da Sandra, que lhe gritava junto aos ouvidos as mais inacreditáveis palavras -, ouvi-o ripostar de uma forma tão surpreendente e tão única que não imagino outra pessoa a reagir de maneira semelhante. Nesse dia, a Sandra, de cabeça muito mais perdida do que lhe é costume, ameaçou, cheia de convicção, “Manuel, se tu não mudas, eu mando-me ao rio!” O Manuel, sempre sereno, abriu ligeiramente o sorriso e respondeu, “mandas-te ao rio para quê, mulher? Tu nem sabes nadar!”
As discussões entre a Sandra e o Manuel - quando digo “discussões”, refiro-me, como devem depreender, a este tipo interações em que a Sandra entrava praticamente em convulsão enquanto o marido a escutava e observava em silêncio e em sossego -, além de frequentes, têm a particularidade de ser, para quem assiste, tão incómodas e desconfortáveis como risíveis.
Há uma dúvida que me inquieta, e que julgo afetar também outros vizinhos e conhecidos do casal: o que acontecerá se o Manuel responder e confrontar a Sandra? Não com humor nem com bonomia, como da vez em que lhe disse que ela nem sabia nadar. Se a cólera de Sandra se manifesta com todo o seu poder e tamanho estrondo mesmo sem ter oposição, até que nível chegaria a sua ira se o Manuel lhe dissesse, por exemplo, “cala-te, que já não te posso ouvir”? O potencial catastrófico desta possibilidade tem dimensões inimagináveis.
Daquela vez que a Sandra me bateu à porta com a fúria de sempre, mas com especial urgência, fê-lo por um motivo que não me explicou de imediato. Mas dava para perceber que não vinha pedir salsa. Trazia na mão um frasquinho de plástico, com tampa vermelha. “Dona Virgínia, tem de me ajudar, preciso da sua ajuda”.
A Sandra e o marido tinham tido relações. Pelo que me contou - e ela contou-me muito mais do que eu gostaria de ter ouvido -, não era habitual entre eles. “Não fazíamos há mais de dois anos, talvez três”, relatou, sem especial emoção, limitando-se a informar-me que “já não se sentiam íntimos”. Compreendo. Fui casada 50 anos - foi a morte que nos separou, como manda a lei do casamento sagrado - e sei bem que, ao fim de um tempo, as pessoas esquecem o lado físico do desejo. O único desejo que resta depois de se instalarem o hábito e a rotina é o de viver em paz e harmonia com aquela pessoa que escolhemos, ou que nos calhou em sorte, ou que o destino nos concedeu, desfrutando das pontuais alegrias da vida com uma companhia que seja aceitável. Creio que é a isso que as pessoas chamam, de um modo genérico, “a felicidade”.
A Sandra decidiu detalhar. Estava muito apertada, disse ela, “imagine, dois ou três anos sem acontecer nada”, e eu imagino perfeitamente, pois claro. “Tão apertada que custava - mas custava muito mesmo.” Os pormenores não são desnecessários e é por isso que os partilho. A circunstância e o aperto físico concreto, juntamente com o desejo abstrato acumulado ao longo de meses que se foram empilhando sem se dar conta, tornaram a situação explosiva. “Acabou num instante”, esclareceu, embora sem necessidade, “não se aguentou, não segurou o instinto”. Pobre Manuel, fez o que pôde.
Decidi interromper Sandra, perguntar-lhe, afinal, o que a afligia daquela maneira. Apontei para o frasco, o que é isso que trazes aí, minha amiga, o que é que se passa, que eu não estou a perceber? “Urina.” Calei-me, como se aguardasse mais explicações. Mas calei-me também porque não sabia muito bem como prosseguir a conversa. Depois de um momento de silêncio embaraçado, estendeu-me o frasco, “tome, Dona Virgínia”. Mas o que é que eu faço com isto? “Preciso que leve ao centro de saúde, para eles analisarem. Acho que posso estar grávida.”
Na minha cabeça, as perguntas acumulavam-se, mas a primeira de todas era, sem dúvida, “mas porquê eu, logo eu”? Sandra respondeu-me que precisava de mim para a ajudar, porque era em mim que confiava. Queria que fosse eu a chegar ao centro de saúde e a solicitar que analisassem a - supostamente minha - amostra de urina. Explicou que tinha vergonha de ser ela a fazê-lo, uma vez que já tinha passado dos cinquenta anos - e também porque não queria que toda a vizinhança ficasse saber o que fazia ou não fazia com o marido.
“Mas, Sandra, eu tenho 86 anos. As pessoas vão achar que estou maluca.” “Eu sei, Dona Virgínia, mas não encontro alternativa.” Contou-me que a afligia a ideia de ter um filho. Que não queria, que nunca quisera. Sentei-me com ela, procurei sossegá-la. Tentei demonstrar-lhe que seria altamente improvável que ela, naquela idade, ainda conseguisse engravidar. Tudo isso ainda funciona?, perguntei muito abertamente. Encolheu os ombros, como quem diz que não liga. Devolvi-lhe o frasco, “guarda isso, mulher”. Ficou mais calma, parecia pacificada depois da nossa breve conversa. Mandei-a para casa, “vai ter com o teu Manuel”, disse-lhe e pisquei-lhe o olho com matreirice de velha. Ela riu-se e lá foi. Nessa noite não ouvi discussões.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.