Ser mulher é uma desvantagem?
De acordo com a Professora Anália Torres, é. A Máxima ouviu a socióloga que, em Portugal, é referência no que se refere à igualdade de género. Porque um país se retrata com estudos, mas a realidade é feita de pessoas.
Quando pensamos em mulheres no Cinema, quais são as primeiras imagens que surgem no écran privativo da memória de cada um? Os rostos e os corpos de atrizes insuperavelmente belas, sensuais ou carismáticas. Com um bocadinho de esforço extra, ainda conseguiremos enunciar umas quantas figurinistas, a começar por Edith Head, vencedora de oito Oscars na categoria de Guarda-Roupa. Mas se quisermos nomes de realizadoras, autoras de argumento, montadoras ou outras especialistas de categorias técnicas, as dificuldades aumentam, mesmo para quem conheça razoavelmente a História do Cinema.
Para responder a dúvidas como estas, o realizador anglo-irlandês Mark Cousins (autor de outras obras marcadas pela paixão da cinefilia como The Story of Film: An Odyssey, de 2011, e The Eyes of Orson Welles, de 2018) propõe-nos uma longa viagem documental a que deu o título genérico de Women Make Film - As Mulheres Fazem Cinema, que, a partir de abril, será posto à venda, num pack de cinco DVD’s, no mercado português (pelas Midas Filmes, que promete mais surpresas em sala de cinema). Ao longo de quatro anos de trabalho, agora condensados em 15 horas de documentário, Cousins criou uma espécie de "escola de Cinema em que todas as professoras são mulheres". Melhor dizendo, em vez de partir para uma posição, mais óbvia, em que denunciasse o sistemático afastamento das mulheres da cadeira de realizador (ou o apagamento do seu trabalho), comum a cinematografias de várias latitudes, o que ele faz é mostrar que "a industria do Cinema é sexista por omissão". Toda ela, de Holly a Bollywood, da Itália ao Japão. E demonstra-o, dando-nos a ver como mesmo as mais conhecidas do grande público - Sofia Coppola, Chantal Akerman, Kathryn Bigelow, Jane Campion, Agnès Varda, entre outras - tiveram de percorrer um caminho com mais obstáculos do que os seus congéneres masculinos.
Estruturado à semelhança de um road movie, o documentário avança "estrada fora", levando-nos a fazer algumas "paragens" surpreendentes, como as que nos levam a conhecer a importância de cineastas como a animadora britânica Alison de Vere (1927-2001), a sobrevivente de Auschwitz, Wanda Jakubowska (1907-1998) ou a japonesa, mestre no rigor dos enquadramentos, Kinuyo Tanaka (1909-1977). Aplaudida como uma atriz de excepção no seu país, Tanaka (a quem chegaram a chamar a Bette Davis do Japão) tem em comum com outras das mulheres aqui evocadas o facto dos filmes por si realizados serem bem menos conhecidos do que os que interpretou às ordens de Kenju Mizoguchi, por exemplo. Processo semelhante terá vivido a britânica Ida Lupino (1908-1995), autora de vários filmes e até de um episódio da popular série de TV, Twilight Zone, mas muito mais conhecida dos espetadores pelos filmes em que contracenou com Humphrey Bogart, Jean Gabin ou Steve McQueen.
Por outro lado, como Mark Cousins acentua, a História do Cinema poderia ser outra se os historiadores da área tivessem atribuído à norte-americana Lois Weber (1879-1939) o papel que lhe compete como uma das realizadoras (e argumentistas) mais produtivas e originais do período do Cinema Mudo. Mas ao morrer, Weber não mereceu mais do que umas linhas breves e distraídas nos principais jornais norte-americanos da época. O que não aconteceu com o seu contemporâneo D.W. Griffith, com quem Cousins ousa compará-la.
Conduzidos pelas vozes off de mulheres marcantes do Cinema mundial como Tilda Swinton, Jane Fonda, Sharmila Tagore ou Debra Winger, somos levados a descobrir a excelência, e até a poesia, com que muitas das mulheres realizadoras resolveram várias questões e problemas levantados pela linguagem própria do Cinema: tom do filme, plausibilidade, apresentação de personagem, encenação, enquadramento, travelling, tempo. Do mesmo modo, somos levados a constatar que se o género e as vivências podem condicionar o olhar de quem realiza, não podemos dizer que haja temas mais femininos do que outros, nem sequer uma maneira especificamente feminina de olhar um tema ou objeto. É o caso do sexo (mas também pode ser o do trabalho, da política ou da religião) que, como demonstra Mark Cousins, tanto pode ser abordado com a subtileza de Jane Campion ou de Sofia Coppola ou com a brutalidade da italiana Liliana Cavani, realizadora de filmes como O Porteiro da Noite ou Os Canibais.
Em entrevista concedida quando, em 2018, apresentou este filme no Festival de Veneza, Mark Cousins comentava assim as motivações do seu trabalho: "Conheci muita gente que, não tendo visto muitos filmes dirigidos por mulheres, diz: as mulheres fazem filmes sobre relacionamentos ou sobre a infância ou filmam com maior empatia. Mas quantos mais filmes vemos, seja de homens ou de mulheres, menos vontade temos de fazer generalizações e isso é muito bom." Para Cousins, tão importante como abandonar o "vício" das generalizações é largar qualquer atitude discriminatória, mesmo que alimentada pelas melhores intenções: "Conheço muitas realizadoras que estão cansadas da pergunta sobre as condições de trabalho de uma mulher na indústria do Cinema. O que elas querem é pura e simplesmente, falar sobre o seu trabalho."
Bárbara Virgínia, um caso português
A cinematografia portuguesa das últimas duas décadas não é pobre em nomes de mulheres realizadoras. De Monique Rutler a Teresa Vilaverde, de Maria de Medeiros a Ana Rocha de Sousa, várias foram as que apresentaram os seus filmes, muito diversos entre si, e conquistaram prémios em Portugal e no estrangeiro. Mas o ambiente nem sempre foi tão propício. Exemplo disso, em plena ditadura, é o caso de Maria de Lourdes Dias Costa (1923-2015), mais conhecida pelo nome artístico de Bárbara Virgínia. Atriz, locutora, declamadora de poesia, tornou-se, em 1945 (com apenas 22 anos!) a primeira realizadora portuguesa de que há registo, com o filme Três Dias sem Deus, que levou ao Festival de Cannes, no ano seguinte, representando Portugal, juntamente com Camões, de Leitão de Barros.
Tudo parecia correr de feição até que, no princípio da década de 50, rumou ao Brasil para não mais voltar. Muitos anos mais tarde, revelaria que na origem de tão dramática decisão, estivera o desgosto causado pela família que a repudiara, não aceitando a carreira artística. Bárbara Virgínia morreu em 2015 sem ter voltado a realizar um filme mas, hoje, é com um prémio que leva o seu nome, que a Academia Portuguesa de Cinema distingue mulheres com carreiras notáveis ao serviço desta arte.