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Ser mulher é uma desvantagem?

De acordo com a Professora Anália Torres, é. A Máxima ouviu a socióloga que, em Portugal, é referência no que se refere à igualdade de género. Porque um país se retrata com estudos, mas a realidade é feita de pessoas.

08 de março de 2021 às 08:18 Rita Lúcio Martins

Encontramo-la à secretária, no gabinete que ocupa no Instituto de Ciências Sociais e Políticas, no Polo Universitário da Ajuda, em Lisboa, rodeada de livros, de revistas, de dossiês e de apontamentos. Em fundo, uma vista algo enublada para a ponte 25 de Abril. Com quase 40 anos de carreira, a professora Anália Torres continua a falar entusiasticamente dos temas que a apaixonaram no início do percurso profissional. É uma conversadora nata, hábil em entrelaçar temas e números, alternando a informação empírica com os dados que os muitos anos de estudo lhe permitiram alicerçar em opiniões firmes, decididas e sonoras. "Eu tenho montes de entrevistas [que fiz] na minha cabeça", justifica, sempre que sente a necessidade de colorir uma resposta científica com um caso pessoal. E são muitos os que vai recordando, ao longo da nossa conversa. Uns são contados num registo de graça, outros com um tom de verdadeira indignação. "Eu estou numa fase em que faço muitas perguntas indiscretas", confessa. "No cabeleireiro, na caixa de um supermercado, nos corredores e quando eu vou tendo mais confiança com as pessoas. Pergunto-lhes quanto ganham, mas explico-lhes que é por ser socióloga, por estudar estes temas." Nas quase quatro décadas de observação, assistiu a mudanças aparentemente improváveis, mas sabe que o caminho a trilhar ainda se afigura longo para as mulheres. Anália Torres não mostra sinais de cansaço.

 

Trabalham mais, mas ganham menos, dedicam mais tempo à família e às tarefas domésticas, são mais escolarizadas, mas têm menos acesso a posições e a cargos de poder. Ser mulher continua a ser uma desvantagem, como concluiu o estudo Igualdade de género ao longo da vida – Portugal no contexto europeu. Seria de esperar que, em 2019, as coisas já tivessem mudado mais substancialmente?

Depende da perspetiva… Do ponto de vista daquilo que seria ideal, já há muito que as coisas deveriam estar mais avançadas, até porque já há muito que as questões da igualdade entre mulheres e homens estão consagradas na lei. Mas podemos falar de um antes e um depois do 25 de Abril. Tendo em conta que já lá vão mais de 40 anos, era de esperar mais avanços, não na questão legislativa, mas na vida quotidiana. Falo de mudanças que tivessem expressão num maior equilíbrio de vida entre homens e mulheres. Nesse sentido, os resultados são sempre um bocadinho dececionantes. Mas também importa dizer que não é só em Portugal que isto acontece. Se nos compararmos com outras partes do mundo, nomeadamente com países não ocidentais, estamos muito melhor, quer em termos legislativos, como no que respeita ao quotidiano das pessoas. Temos vindo sempre num caminho de progressão. No caso português e falando, por exemplo, das desigualdades salariais, elas são tão grandes em Portugal como no resto da Europa, em todas as profissões – conclusão que até nos surpreendeu. Procurámos mostrar – em euros e não em percentagens, para que as pessoas tivessem uma noção mais concreta – que era algo transversal a todos os grupos de profissões. Mas, globalmente, as desigualdades sociais, em Portugal, são muito profundas e maiores do que na maior parte dos países da Europa. As pessoas ganham pouco, há muitas pessoas a ganhar pouco e, entre essas pessoas que ganham pouco, a grande maioria são as mulheres. E se olharmos os casos em que as mulheres ocupam cargos de chefia ou de grande responsabilidade, dentro desse pequeno grupo que é mais privilegiado, verificamos que também aí a diferença salarial é muito acentuada. As diferenças salariais entre homens e mulheres [da mesma categoria profissional] chegam a ser superiores a mil euros.

 

Mesmo havendo uma tabela salarial…

O problema não está na tabela salarial, mas na designação da função. Imagine: a tabela salarial dos têxteis é diferente da tabela salarial dos metalúrgicos, mas o problema é que nos têxteis, onde tradicionalmente há muitas mulheres, os salários são mais baixos do que na metalurgia. Veja-se o caso das operadoras de supermercado. É claro que se lá estiver um homem, ele ganhará o mesmo, mas se reparar verá que a maioria dos lugares é ocupada por mulheres. Outro exemplo: as pessoas que cuidam de idosos, trabalho que, pensaríamos, deveria ser muito bem remunerado por ser exigente, desgastante e consumidor, é pago com o salário mínimo. As educadoras de infância… As empregadas domésticas… As auxiliares educativas… Vai por aí a fora… Resumindo, as ocupações onde há mais mulheres normalmente são mais mal pagas.

 

Há uma subtileza na forma como o mercado se organiza…

Exato! Em Portugal, a lei diz: para trabalho igual, salário igual. O problema é a forma como o mercado de trabalho está organizado, no que respeita ao género. Há um certo tipo de profissões que acaba por ser desvalorizado e áreas, como a função pública, em que essa relação está mais esbatida. É a chamada segregação horizontal. Depois, há ainda a segregação vertical que tem a ver com o facto de as mulheres tenderem a ocupar menos postos de direção, a terem menos prémios e menos horas extraordinárias. Como sobre elas assentam, também, as responsabilidades familiares, quando é preciso alguém ficar até mais tarde e fazer horas extraordinárias, quem fica? Eles. Resultado? Eles vão ganhar mais. Tudo isso está relacionado com o lugar da mulher na sociedade. Há 30 ou há 40 anos, na França e na Alemanha, havia uma coisa chamada ‘o salário familiar’, antes da crise de 1973. Vivia-se uma altura em que os sindicatos tinham uma voz forte e negociavam com o patronato o salário familiar para o homem [porque se pressupunha que a mulher não trabalhava]. Ficou a ideia de que o homem tinha de ganhar mais porque tinha responsabilidades familiares. E essa ideia de que ‘ele deve ganhar mais porque é o sustento da família’ prevaleceu quando já não é verdade.

 

Isso ainda acontece entre os mais jovens?

Claro que sim porque o problema não é geracional. É o próprio mercado de trabalho que está organizado desta forma. Uma das conclusões que o estudo demonstrou, muito bem, foi que homens e mulheres na posição de empregadores quando têm dois CV iguais, um de homem e outro de uma mulher, optam sempre pelo do homem.

 

Mesmo quando o elemento decisor é uma mulher. Porquê?

Exatamente. É o que se chama o bias inconsciente e que também se exprime nas questões étnicas: se se tiver um CV de uma pessoa branca e outro de uma pessoa negra, e se quem decidir for branco, irá optar pelo candidato branco. No caso de que falámos e mesmo quando o elemento decisor é uma mulher, ela também acha que o homem vai ter mais disponibilidade. Porque na cabeça dela está, erradamente, que ele não tem de se ocupar tanto da família como a mulher. Por isso é que a questão das licenças parentais é tão importante porque está associada à ideia, errada, de que as mulheres ainda são menos rentáveis do ponto de vista profissional, até porque há resultados que demonstram a sua excelência em qualquer área. Quando um homem tem um filho, o empregador vai esperar que ele trabalhe mais horas. Porquê? Porque tem mais "responsabilidade".

 

É quase uma chantagem emocional…

Precisamente. E muitas vezes parte, até, de colegas. Quando um homem diz que vai dividir a licença com a mulher, muitos questionam: "Mas que raio de mulher é que ele arranjou?!" Ainda é mal visto. Eu costumo dizer, em jeito de brincadeira e com algum exagero, que a nível de quadros, o empregado ideal é um homem que acabou de ter um filho. E explico porquê: um bom quadro que é solteiro e sem filhos, quando não ganha aquilo que acha justo, muda de emprego. Um funcionário que acaba de ter uma criança sente que tem mais responsabilidade, mais gastos. Vai tentar provar que precisa de ser promovido e vai trabalhar mais. Isto em vez de desfrutar e partilhar dessa fase que é difícil para os dois, o pai e a mãe.

 

Os países escandinavos continuam a ser referência nestas questões sociais?

Tudo o que se passa na Europa a nível de legislação, mas também de mudanças de hábitos e de práticas, começa com os escandinavos, depois passa para o centro da Europa e, por fim, chega ao Sul. Há 40 anos que estudo estes fenómenos e isto, para mim, está evidente. Hoje, nos países escandinavos, já há muito essa visão de os homens saírem mais cedo do trabalho para cuidarem dos filhos… Mas foi preciso fazer esse caminho. Há discussões que eles tiveram, há mais tempo, e existe, sobretudo, uma coisa que eles fazem muito e que nós fazemos pouco: avaliam as medidas de políticas públicas que tomam e corrigem-nas quando é necessário. É evidente que houve coisas que fomos melhorando, como a licença de paternidade, que é muito importante. Uma das formas de combater as desigualdades é levar a que os homens assumam as responsabilidades familiares.

 

Até porque outra das conclusões do estudo foi que homens e mulheres concordam que a família é a prioridade.

Sim, para todos. Mas as mulheres, sobretudo em Portugal, ainda sentem que as responsabilidades familiares recaem sobre elas e têm um medo incrível de serem consideradas más mães. E isso faz com que acabem por viver numa sobrecarga constante…

 

O que nos leva a um dos desabafos femininos mais frequentes: "Estou cansada." Esse cansaço parece uma inevitabilidade…

Sim. Acontece com quase todas as mulheres porque quando elas não têm os filhos a seu cargo, têm os pais e, às vezes, ambos. Mesmo que uma mulher tenha mais conforto económico (e são uma exceção porque a maior parte das mulheres ganha pouco, muito pouco), há a questão da responsabilidade, o sentirem-se sempre em falta. Veja-se o caso de uma empregada doméstica. A pessoa passa o dia a desempenhar tarefas pelas quais é paga e possivelmente, até, elogiada. Depois vai para casa fazer o mesmo e, muitas vezes, ainda é desvalorizada. As questões domésticas são pesadas do ponto de vista organizativo e não podem ser desvalorizadas. Há homens que já participam mais, mas, no geral, fazem muito pouco e, sobretudo, desvalorizam esse trabalho.

 

E isso compromete a felicidade, mesmo não sendo esta passível de ser medida pelos estudos?

Há indicadores de bem-estar que são bem concretos. Temos indicadores, até internacionais, de que as mulheres têm menos bem-estar subjetivo do que os homens e isto é transversal a todas as classes sociais. Tem também a ver com essa questão da culpabilização, de que falámos. Agora, naturalmente, não afeta todas as mulheres da mesma forma… Mas mesmo em profissões elevadas e bem remuneradas, as pessoas "estoiram" porque acumulam várias exigências.

 

Relativamente a essa questão da culpa, qual é a mensagem fundamental que temos de saber passar às nossas filhas?

Em primeiro lugar, devemos dizer-lhes que podem fazer o que quiserem. Não há profissões de homens ou de mulheres, gostos de homens ou de mulheres. Elas podem encontrar o seu próprio caminho. E, basicamente, não têm de fazer mais nada só por serem mulheres. Cada um de nós tem de saber cuidar de si próprio, independentemente do género. O outro é para os afetos. E a relação com o outro é muito significativa na vida, começa com os pais e depois passa para o exterior. Uma mãe deve educar as filhas (e os filhos) para a vida, torná-las seres autónomos de forma a que não precisem de "muletas" para fazerem o seu caminho. Qual é a lógica de só um fazer a cama onde os dois se deitam? Não há lógica. Só há tradição. E quando se trata de casais do mesmo sexo? Como é que organizam a vida doméstica? "Tu fazes uma coisa, eu faço outra." Tem de se fazer. É tão simples quanto isso!

 

As mães e os pais são, de certa forma, "responsáveis" pela perpetuação de certos comportamentos? Por exemplo, quando educam uma filha e um filho de formas diferentes?

Podem contribuir de forma não consciente para a perpetuação de estereótipos, pensando que estão a proteger os filhos ou as filhas. Eu não sou nada exemplar enquanto dona de casa porque sempre tive empregadas internas (isso acontecia muito na classe média) e era-me dito que não tinha de me ocupar das tarefas domésticas porque o meu trabalho era estudar... Eu tive duas avós e uma delas dizia-me sempre: "Quem não sabe fazer não sabe ensinar." O seu pressuposto era de que eu iria crescer, que iria casar e que teria a minha própria empregada. É claro que nunca tive uma empregada interna. Este exemplo, esta tentativa de compreender a minha avó, serve só para dizer que, às vezes, podemos inconscientemente estar a dar aos nossos filhos uma educação que necessariamente não os favorece. Temos de fazer um esforço para pensar neles no mundo atual, num mundo em que cada pessoa tem de saber cuidar de si própria e tem de ter autonomia. Porque muito mudou. Quando eu comecei, há quase 40 anos, estava longe de imaginar que o casamento católico tivesse baixado tanto como baixou e que o casamento entre pessoas do mesmo sexo fosse legalizado… As sociedades mudam muito.

 

A nova parentalidade é um dos exemplos dessa mudança?

Há toda uma ideia de paternidade cuidadora que começa a aparecer. Homens que querem fazer parte da vida dos filhos e que podem ser de referência para outros. Homens que assumem que a questão da educação e da participação é importante. Está demonstrado que os homens, na relação com os filhos, quando cuidam deles desenvolvem hormonas como a serotonina que lhes proporcionam bem-estar. Só quando fazemos é que percebemos. E isto aplica-se ao grau de exigência implicado na tarefa de cuidar de uma criança, mas também ao grau de satisfação, ao prazer que é ver os miúdos crescer.

 

As mulheres portuguesas, sendo já menos conservadoras, ainda são pouco reivindicativas?

Ah! Sim. Lá está de novo o medo, a culpa. Em Portugal, há muito maternalismo. As mulheres têm o receio de poderem ser julgadas por não fazerem aquilo que é mais adequado. Muitas vezes é a própria mãe ou a sogra a dizerem-lhes que deviam ter agido de determinado modo. É preciso ter energia para dizer: "Isso era no vosso tempo. Agora não é assim."

 

Há pouca solidariedade entre mulheres?

Sei que acontece, mas essa coisa das "conversas de mulheres" sempre foi uma coisa que me enervou, até porque também a minha mãe nunca alimentou essas conversas. "Cortava" logo. Eu acho que tudo tem a ver com os nossos hábitos de casa, com o exemplo que temos nas mulheres da família…

 

São, muitas vezes, de mulheres as vozes mais críticas e os comentários mais definitivos quando se trata de "condenar" as vítimas de assédio ou, até mesmo, de violação. Por que razão é que isto acontece?

De facto, levanta-se muitas vezes essa questão de que "ela é que foi provocadora". É o mesmo caso das atrizes de Hollywood. Onde é que estamos? É preciso perceber que um "Não" é um não. Fizemos um trabalho sobre o assédio no local de trabalho e ficaram absolutamente evidentes as coisas pelas quais as mulheres passam, subtis ou não. Mas notou-se muito essa ideia do "alguma coisa ela fez", o que é algo de inacreditável em relação às vítimas. O mesmo em relação às vítimas de violência doméstica que é o exemplo mais claro da dominação dos homens sobre as mulheres. É a caricatura. Trata-se de uma ideologia que, sim, também é partilhada por mulheres numa tentativa de se demarcarem da mulher perversa, provocadora.

 

Celebramos o Dia da Mulher há mais de um século. Aquilo que celebramos mudou ou é essencialmente o mesmo?

É um bocadinho contraditório. Por um lado, há muitas coisas que mudaram. Em Portugal, as pessoas da minha idade ou até mais jovens apercebem-se de grandes mudanças. Hoje vemos mulheres com carreiras brilhantes. O que choca é que, apesar disso, a desigualdade estrutural persiste. O Dia Internacional da Mulher tem esse valor simbólico de lembrar que, comparativamente a eras passadas, já há mais igualdade, mas que ainda há um longo caminho a percorrer. É uma ocasião para evidenciar esse contraste entre o muito que se andou e o muito que se tem para andar. Estas datas são importantes para uma nova consciência.

 

Qual é a mensagem que importa passar às nossas crianças, a propósito desta data?

Dizer-lhes que é um dia que assinala a data em que as mulheres passaram a ter direitos iguais aos dos homens, os que não tinham. A Olympe de Gouges [dramaturga, ativista e feminista francesa, 1748-1793] fez uma carta dos direitos da mulher e da cidadã porque a Revolução Francesa trata apenas dos direitos do homem. Ela fez uma carta sobre os direitos das mulheres e, mais tarde, foi guilhotinada. No século XVIII, no pós-Revolução Francesa, houve uma mulher que foi condenada só por dizer que temos os mesmos direitos. Quando celebramos o 8 de Março estamos a celebrar o percurso de mulheres como ela, que morreram pela causa da igualdade. Mulheres cujos nomes conhecemos, mas também das muitas mulheres anónimas que cuidam dos seus filhos, às vezes sozinhas, e tentam sempre fazer o melhor, porventura em condições muito difíceis. É importante que se continue a falar nisso.

 

A professora

Doutorada em Sociologia, Anália Torres é professora catedrática no Instituto de Ciências Sociais e Políticas de Lisboa (ISCSP), onde coordena a Unidade de Sociologia. É fundadora e coordenadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG), da mesma instituição de ensino, que reúne investigadores especializados em temáticas de género. Entre 2009 e 2011 presidiu à European Sociological Association (ESA) e, desde 2002, integra a equipa nacional responsável pela aplicação do European Social Survey, em Portugal. Entre 2002 e 2006 foi presidente da Associação Portuguesa de Sociologia (APS) e ocupou vários cargos na European Sociological Association e na International Sociological Association. Ao longo de quase 40 anos, Anália Torres tem-se dedicado à investigação de temas relacionados com a família, o género, o casamento, o divórcio, o assédio sexual, o assédio moral, o trabalho, a família, a pobreza, a toxicodependência, a juventude e a proteção de crianças e jovens, sendo autora e coautora de 18 livros e de vários artigos publicados em revistas nacionais e internacionais. É quem coordena o estudo Igualdade de género ao longo da vida – Portugal no contexto europeu, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, em maio de 2018.

 

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