Histórias de Amor Moderno: “Passámos a ser inimigos com sacrifícios”

“O nosso amor era como um eletrodoméstico moderno, destinado a soçobrar como qualquer outro objeto condenado pela obsolescência programada.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

'Revolutionary Road' (2008). Foto: IMDB
29 de março de 2025 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

Depois da universidade, jurei a mim mesma que nunca na vida voltaria a partilhar casa com outras pessoas. Nunca mais! Só que nunca digas nunca. Agora aqui estou eu, a separar pacotes de arroz, embalagens de bolachas, frascos de café solúvel, talheres, copos e pratos, tachos, frigideiras e tupperwares. O frigorífico está dividido por prateleiras: as duas de cima são minhas, as duas de baixo pertencem ao Tiago. Partilhamos, recorrendo ao bom-senso possível, a gaveta dos legumes e o congelador, uma vez que estes são compartimentos sem divisórias. "Ah, não vale a pena comprar um frigorífico todo compartimentado, para que é isso?" O pior de tudo, é que fui eu mesma quem fez a objeção e defendeu a opção poupada em vez da mais dispendiosa, em que tudo tinha a sua gaveta, a sua portinhola, o seu separador. Na altura, fazia sentido. Eu e o Tiago éramos um casal, estávamos juntos e vivíamos juntos. Só que o nosso amor era como um eletrodoméstico moderno, destinado a soçobrar como qualquer outro objeto condenado pela obsolescência programada.

Na pequena prateleira da banheira, onde outrora os meus cremes, loções e champôs acolhiam, sem discriminação, as versões mais económicas e familiares de gel-duche multiusos tudo-em-um do mercado, hoje vejo-me compelida a moderar o meu número de embalagens, de maneira a deixar uma quantidade justa e equalitária de espaço para todo o tipo de produtos em falta para a higiene e cuidados corporais do Tiago.

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Tomei muito más decisões na vida, mas aquelas de que mais me arrependo são as que, em nome das proverbiais poupanças, objetivo em que qualquer casal que se preze deve manter-se concentrado e investido, dei por mim a optar pelo que era mais em conta. O frigorífico de modelo mais económico foi só um exemplo barato. Muito pior foi o apartamento – "somos só dois, querido, pelo menos por enquanto, um T1 chega bem." Mais tarde, logo víamos, quem sabe não teríamos filhos, advertia o Tiago, mas eu, obstinada e cautelosa, defendia que não, uma coisa de cada vez, um dia de cada vez. Um quarto de cada vez. E agora é isso mesmo que nos resta: um quarto. Tudo está acabado entre nós, somos um casal teoricamente separado, mas só mesmo teoricamente porque, na prática, só deixámos de dormir juntos e de fazer refeições em conjunto. Tudo o que há de mau e chato e difícil numa relação continua a fazer parte do nosso quotidiano, da divisão das contas à distribuição das tarefas domésticas, das discussões mais comezinhas às chatices com vizinhos e condomínio. Eu e o Tiago partilhamos tudo aquilo de que queríamos livrar-nos quando decidimos separarmo-nos. No fundo, passámos a ser inimigos com sacrifícios.

O mais irónico é que podemos sempre contar com a ajuda de fora para piorar a situação. Por exemplo, como é que faço para explicar aos meus pais que eu e o Tiago estamos separados? Que já não estamos juntos? Que já não vivemos juntos? Quando, na prática, vivemos, na medida em que partilhamos o mesmo teto, por mais que ele durma no sofá na sala e eu na cama de casal, naquele que já foi o nosso quarto (vá lá, teve a decência e a bondade de me ceder o quarto). Como é que eu consigo explicar a um casal como os meus pais, a caminho da terceira idade, que criaram três filhos desde o início dos anos 80, sem riquezas nem comodidades, tudo à base do esforço, e para quem o casamento era uma coisa que se dizia sim e pronto, era para a vida toda – como é que eu vou convencê-los de que eu e o rapaz com quem nunca me casei, porque podíamos perfeitamente ser um casal feliz para sempre mesmo sem assinar papéis nem pôr alianças nos dedos, afinal acabámos tudo e nos separámos, e agora vivemos juntos na mesma casa, cada um na sua divisão, só porque nenhum de nós tem dinheiro para viver sozinho e pagar uma renda de casa, ou, como se diz nas notícias, "adquirir habitação própria". Isto era uma pergunta? Provavelmente, era. Toda a situação é tão confusa que acabo por perder-me nos pensamentos.

O dinheiro foi, aliás, o princípio do nosso fim. Há quem diga que o amor move montanhas, mas é mais fácil haver amor quando não é preciso mover nada. E nós precisámos de mover muita coisa, sempre em nome de uma suposta vida ideal, constantemente em busca do que imaginámos um dia ser uma vida a dois, na cidade, com tudo aquilo a que julgámos ter direito. Uma vida social ativa, saídas para jantar, para ir ao cinema, para ver concertos, idas constantes a vernissages e estreias, tertúlias com gente muito interessante e bem-vestida, ter um nome conhecido no meio, uma figura respeitável, um percurso invejável.

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O mal de sonhar de olhos abertos é que, às vezes, para acordarmos, precisamos de baldes de água fria figurativos. O que me coube em sorte despejou-se sobre mim no dia em que cheguei a casa às duas da manhã depois de 17 horas de trabalho em dois empregos diferentes e encontrei o Tiago a dormir no sofá, ainda vestido. Tinha saído do seu segundo turno consecutivo. Não nos víamos havia três dias e aquela deveria ter sido a nossa noite de encontro. Na manhã seguinte, quando acordou, levantei-me também da cama e sentei-me com ele enquanto bebia o seu café. "Isto não está certo, estamos a dar cabo de nós, não temos vida." Eu tenho 39 anos, ele tem 37. Trabalhamos muito, ganhamos muito pouco. Não vivemos nada. Afinal era tudo uma grande ilusão, esta cidade de plástico e lixo e souvenirs made in China não valia o nosso esforço, o suor, a dedicação e as horas que ficaram por dormir. Enganámo-nos a nós mesmos. A frustração tem consequências. Os ódios acumulados, as pequenas iras engasgadas na garganta, os problemas miudinhos que não se resolvem e as chatices que nos fariam gritar mas não fazem, tudo isso junto vai dando cabo de nós. Sem dar conta, ficamos velhos, ficamos amargos. O amor que devia mover montanhas ficou, afinal, debaixo de uma delas no meio de tantas mudanças. E o Tiago abria a boca e eu dizia-lhe "Tiago, agora não, tem santa paciência". Estas coisas repetiram-se tantas e tantas vezes que o Tiago também se foi tornando frio, distante.

E um dia já não nos suportamos e nem sequer importava porquê. Não havia motivo. O motivo, olha, foi a vida. Por qualquer coisa, discutíamos. E, quando discutíamos, não parávamos. Assuntos que nem nós sabíamos que assunto era tornavam-se suficientes para que nos ofendêssemos e agredíssemos como inimigos viscerais e ancestrais. Até que um dia ele me bateu. O Tiago não me bateu muito, não foi bem aquele bater de alguém que espanca e humilha e subjuga. Não, não foi isso. Mas bateu-me. Deu-me uma chapada. O mundo parou e eu parei e ele ficou como uma estátua. Dominou-se, mas eu vi nos olhos dele que havia lá mais ódio-combustível para aquela agressão. Podia não ter parado por ali. E eu disse-lhe "nunca mais, Tiago". Só que nunca digas nunca. Na discussão seguinte, de novo embalados pela raiva e pela frustração que este mundo-cão nos pega à pele e ao peito, ele levantou-me a mão outra vez.

Virei costas, saí porta fora, quis sair de casa, fugir dali. Mas fugir como? Meio despida, a meio da noite, sem dinheiro? Sair dali e ir para onde, fazer o quê, abrigar-me onde? Numa caixa de cartão debaixo de uma varanda, de um guarda-sol de esplanada? Sentei-me no chão do nosso patamar, junto às escadas, e permiti-me chorar. Não me restava mais nada, chorar era o meu único luxo, o meu pequeno conforto, o derradeiro aconchego. O Tiago continuou a gritar, "se não te vais embora, volta para casa; se não voltas, é melhor ires-te embora".

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O filho dos meus vizinhos da frente, um miúdo de vinte e poucos anos que ainda vive com os pais – quem é que, da idade dele, não vive com os pais, nesta cidade? –, ouviu o barulho e se calhar ouviu o meu choro. Abriu a porta devagarinho e veio ao pé de mim. Perguntou baixinho se eu estava bem. Eu menti-lhe e disse que sim. Disse-lhe que ia já voltar para casa. Pedi desculpa pelo barulho, pelo incómodo, por estar assim vestida, meio despida, e ele disse-me "não diga isso, não diga nada", e ajudou-me a levantar. Bati à porta, o Tiago abriu. O rapaz segurava-me no braço, apoiava-me nos vários sentidos da palavra. O Tiago não disse nada. Eu nem sabia o que dizer, olhava para o chão, as lágrimas encharcavam-me o rosto e pingavam-me os pés descalços. "Não volte a falar-lhe assim. E livre-se de lhe bater. Eu estou aqui ao lado e ouço tudo." Entrei, o Tiago fechou a porta.

Nunca mais tivemos discussões daquela gravidade, mas simplesmente porque passámos a evitá-las, a defleti-las. Tudo entre nós acabou nesse dia. Nem sequer tivemos de conversar muito sobre o assunto, esmiuçá-lo, dar explicações, interpretar a questão. Acabou e acabou-se, está tudo dito. Partilhamos casa, não temos alternativa. Mas partilhamos por obrigação, por falta de solução. Por desespero. Não convivemos. Fazemos, por vezes, algum esforço para nos desencontrarmos, quando as nossas horas em casa, por manifesto azar, coincidem. Mas eu sou eu e ele é ele. O meu pacote de arroz é só meu. A minha prateleira do armário, a minha gaveta dos talheres, essas miudezas são o que me resta.

Entretanto, acho que o Tiago deve ter uma amiga especial nova. É uma suspeita minha, não sei de nada ao certo. Desejo-lhe sorte. Não sinto a mais minúscula ponta de ciúme. Eu não tenho ninguém. Nem tenho cabeça para isso. O mais próxima que estou do amor é quando me cruzo nas escadas com o filho dos vizinhos da frente, que se chama António e que foi a última pessoa que me fez sentir amada, nem que fosse só um bocadinho, nem que seja só porque olhou para mim e me perguntou se eu estava bem, e me fez sentir uma pessoa de novo.

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*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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