
Verdade incontornável: a misoginia agride, viola, mata. As estatísticas mostram que o machismo estrutural é uma realidade também por cá. Isto significa, então, que todos os homens são potenciais violadores? Não. Entendam de uma vez: não. Mas há que assumir que maioria dos crimes sexuais incidem sobre vítimas menores e/ou do sexo feminino, e que a esmagadora percentagem dos agressores são do sexo masculino. Invariavelmente, homens integrados na sociedade, bem longe do cliché do "feio, porco e mau". O problema, sim, é de género, e os números que conhecemos são a ponta do icebergue: as vítimas sabem que, amiúde, a Justiça ainda lhes falha, e calam-se. Os agressores contam com isso, tal como com a apatia social fomentada pela normalização do abuso. Uma equação que persiste, e que se perpetua nas gerações mais novas.
Se dúvidas havia quanto ao machismo nas idades mais novas, olhemos para o caso de Loures: três rapazes, com idades entre os 17 e os 19 anos, estão acusados de violar uma rapariga de 16, tendo partilhado nas suas redes sociais o vídeo da agressão. Vídeo esse que foi visto por mais de 30 mil pessoas, revela a PJ, sem que ninguém tenha feito queixa. Olhemos também para a denúncia recente que envolve diversos membros da associação de estudantes da Faculdade de Engenharia do Porto, que terão fotografado colegas "por baixo das saias" e posteriormente partilhado estas e outras imagens num grupo de WhatsApp, prática alegadamente recorrente.

Estamos a falar de adolescentes e de jovens homens. Que tiveram e têm acesso a toda a informação disponível nos mais diversos meios sobre direitos humanos, porém, que seguem com rigor uma cartilha misógina, propagada a larga escala, pelos chamados influenciadores da "machoesfera". Grupos de ditos "machos alfa", alavancados por movimentos radicais de extrema-direita, bastante organizados, estratégicos na sua atuação junto dos internautas jovens, mais fáceis de moldar, com um discurso falacioso no que a dados empíricos diz respeito, de apologia à chamada masculinidade tradicional, e que remete, mais uma vez, os meninos e rapazes para uma ideia de que ser homem à séria é sinónimo de violência e de desrespeito sobre o sexo oposto. Que essa violência não só é válida, como é desejável. E que o lugar das mulheres é de volta à cozinha, à maternidade, à submissão ao homem, o ser superior.Seja a que custo for.
O guru dos miúdos? Um homem acusado de tráfico humano e de violação
Pensemos em Andrew Tate, um dos tais grandes influencers da tal "machosfera": acusado de tráfico humano e de violação, idolatrado por milhões de seguidores, convidado recorrente em podcasts e demais entrevistas sobre masculinidade, recebido como um herói nos EUA de Trump. Há uma geração de miúdos, adolescentes e jovens adultos que são aliciados com discursos como o desta figura abjeta, que põe nas mulheres - e na sua respetiva demanda por direitos e igualdade - a culpa maior pelos problemas do mundo. Culpadas pela perda de privilégios masculinos e pela alteração de paradigmas dentro das relações, onde já nem sempre a palavra masculina é lei. Culpadas pela frustração sexual que muitos miúdos enfrentam nas suas primeiras explorações, por elas já terem algo a dizer sobre o que gostam e não gostam, o que querem, quem querem. Culpadas por já não serem figuras submissas e silenciadas. Por serem mais exigentes e seletivas nas suas interações com o sexo oposto. Por estarem a deixar os rapazes envoltos numa grande dúvida: afinal, o que é esperado deles agora? O que é ser homem hoje? E porque não podemos deixar as coisas como estavam?

Como resposta, é preciso voltar a meter as mulheres no seu lugar. E para isso proliferam conteúdos online e workshops à porta fechada onde se ensinam rapazes, literalmente, a odiarem e maltratarem raparigas. Nascem como cogumelos grupos de Telegram, com centenas de participantes, onde se partilham fotos íntimas e informações privadas de miúdas e mulheres. Fóruns onde se planeiam e combinam agressões, inclusive sexuais, por vezes em grupo. Com códigos difíceis de interpretar, muitos deles com recurso e emojis aparentemente inocentes. Onde se aplaudem atos de violência contra as mulheres. Onde estes miúdos e jovens adultos encontram validação, palmadas virtuais nas costas por terem sido agressores. Por lhes terem feito o que elas supostamente merecem só por serem mulheres. Como se fosse isso o epítome da masculinidade. Eu, se fosse homem, tinha vergonha disto.
E se, sentado ao vosso lado no sofá, o vosso filho for um destes jovens?
O cenário descrito é real, e não se admirem se, no sossego inócuo do lar, um dos vossos filhos esteja neste momento a consumir conteúdo deste no ecrã do telemóvel, voluntária ou involuntariamente. Os algoritmos fazem o seu trabalho. Sugiro que vejam a série Adolescência se quiserem perceber melhor quão complexo isto é, e a bomba-relógio social que temos em mãos. Com o mundo virtual a acrescentar novas dinâmicas de agressão às já conhecidas, a desumanização das mulheres persiste e a desvalorização da violência sexual continua viva. Assim como o eterno sentimento de impunidade dos agressores, ao qual se soma agora esta perigosa validação dos pares e respetivos gurus da misoginia. Não é ao acaso que os miúdos filmam as agressões e as partilham com regozijo. A adrenalina da aprovação externa faz agora também parte do jogo de poder machista.

A educação para cidadania e a igualdade, da qual fazem parte a sexualidade, as noções de consentimento, as emoções, o respeito pelo próximo, a lei, não é somente essencial, é urgente. É um direito de todas as crianças enquanto ferramenta de conhecimento para o seu futuro. Mas não é apenas a escola que tem de fazer o seu papel, e de assumir este compromisso, somos todos nós. Mães, pais e demais educadores. Homens e mulheres, a sociedade como um todo, enquanto exemplo para as gerações mais novas. No fundo, estas gerações são permeáveis a estes discursos porque o mundo à sua volta lhes mostrou desde sempre que estas dinâmicas são aceitáveis. A culpa, quer gostem, quer não, é nossa também.
Abrir espaço para o diálogo, deixando cair os nossos próprios preconceitos é fundamental. Ouvir as gerações mais novas com empatia, e ajudá-los a desconstruir discursos polarizados e falaciosos, também. Questionarmos os nossos comportamentos, o machismo internalizado, e darmos o exemplo, com as nossas próprias atitudes, tem de ser uma missão. Agora, enfiar a cabeça debaixo da areia e dizer que isto são só coisas de miúdos, ou que, na verdade, a culpa até é mesmo desta "mania da igualdade", não é apenas preguiçoso, é também desonesto. E, como em boa parte das desonestidades, acabaremos todos e todas a ter de pagar a fatura.
