Histórias de Amor Moderno: “Não é fácil lidar com o fim de uma coisa que acreditamos ser para a vida toda”
“Nem eu consigo entender como é que andámos naquilo tanto tempo, naquele impasse, um vai-não-vai, estamos juntos mas não somos nada um ao outro, gosto de ti mas não tanto assim.” Todas semanas, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

O Albano era o amor da minha vida. Na altura, era. Quando olho para trás, passados todos estes anos, penso no quão ridículo é pensarmos no amor assim, nestes termos, "o amor da minha vida". A ideia de eterna felicidade, uma espécie de sonho que implantam às mulheres na mente e que as condiciona a uma busca fictícia e absurda, a uma demanda mentirosa, a uma caça aos gambozinos de consequências dramáticas: a insatisfação, a frustração, a sensação de estar errada, de não conseguir, de constantemente falhar, de não estar à altura do que a vida esperava de nós. Pois bem, o "amor da minha vida" é o unicórnio dos românticos. Muito bonito na lenda, mas inexistente na prática.
Adiante. Nessa época, eu ainda acreditava no mito. E o Albano personificava o meu sonho de adolescente à beira da idade adulta, meu príncipe encantado capaz de me levar ao altar e de me fazer dizer que sim, e viver feliz para sempre, ter muitos filhos, essas coisas todas. Só que não foi assim que aconteceu. O Albano era um traste - ou, pelo menos, foi um traste comigo. Não sei como é hoje a vida dele. Desde que nos divorciámos, não voltámos a comunicar. Perdi-lhe o contacto, o rasto e o respeito. Um traste! Que andou a trocar mensagens obscenas com duas das minhas melhores amigas. E esta é a parte de que eu soube. É possível que tenha havido mais, que tenha acontecido ainda pior. Mas eu, nestas matérias, passo bem sem excesso de informação, convivo perfeitamente com uma ignorância piedosa.

Passei mal. Não é fácil lidar com o fim de uma coisa que acreditamos ser para a vida toda. Este é, talvez, o principal efeito negativo de acreditar no amor para sempre, numa relação para a vida, num casamento para a eternidade. A cabeça e o coração ficam tremendamente investidos nessa espécie de fé, que depois é abalada pela realidade. Superar tamanha perda e tão profundo abalo depende muito de uma conjugação de fatores. A conjuntura da vida acabará por determinar a maior ou menor dificuldade em avançar no tempo e no mundo retomando a energia e a alegria de viver. Quanto melhor for a conjuntura, mais eficiente serão a passagem do tempo e a concretização de que tudo aquilo era ilusório e que, na realidade, não há perdas assim tão grandes - não quando ainda se está nos vintes, se tem uma vida inteira pela frente com todas as possibilidades em aberto. Quando tal acontece, se estivermos rodeados pelas pessoas ideais, percebemos muito rapidamente que aquilo que víamos como uma grande tragédia é, no fim de contas, de experiência de vida que acumulamos.
Eu estava rodeada de boas pessoas. Havia várias, mas houve uma em especial. O António, meu colega de trabalho. Já nos tempos em que ainda era casada, o António era atencioso, às vezes até demais. As suas aproximações chegavam a ser inconvenientes. Mas eu sabia que ele era boa pessoa, que tinha bom coração e que me apreciava - eu sentia-me admirada por ele, e isso era uma coisa muito rara na minha vida. Não estava habituada a que me admirassem, e muito menos a que demonstrassem a admiração que pudessem ter por mim. Depois de eu estar separada, o António começou a convidar-me para sair, para tomar café. Eu ia recusando. Embora simpatizasse minimamente com ele, o António não me atraía. Era bom rapaz, pois sim, e não se pode dizer que não fosse bonito, que até era. Só que não havia nada nele que me puxasse, que me entusiasmasse. Faltava nele qualquer coisa, como se numa comida não existisse o tempero capaz de fazer com que os vários ingredientes, todos muito saborosos, combinassem uns com os outros.
O António, além de bem-parecido, tinha bom gosto, era gentil, um cavalheiro, atencioso, cuidadoso. Sabia apresentar-se, sabia estar. Não sei identificar o tal tempero que lhe faltava que a conjugação de todas as suas qualidades resultasse num magnífico cozinhado. Talvez fosse a falta de confiança, a hesitação insegura com que se apresentava em quase todas as circunstâncias, tornando-o praticamente servil, vergado, de sorriso agradável no rosto e um olhar de certo modo triste ou magoado - aquele olhar que as pessoas quebradas têm, que faz com que pareçam infinitamente tristes mesmo quando estão alegres e a rir.

Um dia, uma sexta-feira, aceitei o convite do António para tomar café. Saímos do trabalho e fomos para a rua, corremos a baixa da cidade, sentámo-nos em esplanadas, bebemos cervejas e bebemos ginjinhas como se fôssemos turistas livres. Na verdade, éramos livres e tínhamos diante de nós apenas o fim de semana. Podíamos fazer tudo. A insistência do António em sair comigo e o longo período de abstinência em que eu me encontrava levaram-me a aceitar o convite. Porque não? Beberíamos, rir-nos-íamos em completa liberdade. Talvez corresse bem. A ideia deixou-me contente. Porém, a realidade deteve-se na diversão e não avançou mais do que isso. Não houve atração, não senti o impulso nem para lhe dar um beijo. Acabámos por regressar a casa, cada um para seu lado. O António ficou desapontado, claro. Não era só eu que que tinha feito contas a acabar aquela noite de sexta-feira acompanhada entre lençóis. Ele, muito mais do que eu, desejava que tivesse sido esse o desfecho.
Saímos mais vezes, eu e o António. As sextas-feiras de boa vida começaram a tornar-se uma pequena tradição entre nós. Durante as saídas, ele insinuava-se, ele tentava de tudo para que nos tornássemos mais qualquer coisa, mas eu resistia, resistia sempre. Nunca havia aquela fagulha que faz com que tudo arda. Até que um dia houve - ou, pelo menos, eu pensei que tivesse havido. Muitas ginjinhas, cervejas e algum vinho depois de termos saído do trabalho, convidei-o para minha casa, abri uma garrafa de martini e sentei-me no colo dele. Beijámo-nos, abraçou-me com força, a rebentar de desejo, e eu deixei que tudo acontecesse. Não me lembro de tudo. Só me lembro de ter pensado "que se lixe", de fechar os olhos, de me permitir a entregar o corpo, repetindo para mim mesma que nada nesta vida tem assim tanta importância quando estamos sozinhos no mundo.
Essa noite teve consequências. O António queria sair comigo muito mais vezes, permanecia demasiadamente próximo, começou a fazer exigências. Mas eu não queria ter nada com ele - pelo menos, nada que fosse sério. Tivemos uma conversa. Expliquei-lhe que não seria a sua namoradinha. Disse-lhe, muito claramente, que não queria que fôssemos mais do que amigos com benefícios. E, na verdade, éramos exatamente isso.

Às vezes, nem eu consigo entender como é que andámos naquilo tanto tempo, naquele impasse, um vai-não-vai, estamos juntos mas não somos nada um ao outro, gosto de ti mas não tanto assim. Foram três anos e meio disto. É muito tempo. Estávamos juntos quando eu queria, quando me apetecia a sua companhia. E o António aceitava tudo sem questionar. O seu amor por mim era de tal ordem que era capaz de fazer qualquer coisa por mim - era capaz de fazer tudo por mim, incluindo estar comigo ao sabor da minha conveniência e ser despachado, às vezes desprezado, a seguir. Cheguei a ficar dois, três, quatro dias sem lhe dizer nada. O meu compromisso com ele estava próximo do zero.
Embora o meu comportamento fosse prepotente e digno de uma diva, havia uma coisa em que eu, mesmo sem me dar conta, era leal: nunca tive nem pretendi ter mais ninguém enquanto tivemos esta estranha relação. Poder-se-ia dizer que lhe era fiel, não fosse o detalhe de não sermos nada um ao outro além de amigos coloridos. Outra coisa por que não dei foi pelos sentimentos que fui desenvolvendo pelo António. Na minha cabeça o meu coração não sentia nada por ele. E foi por isso que um dia decidi ligar-lhe e dizer-lhe "olha, António, isto que nós temos, seja lá o que for, já não dá mais". E desliguei.
Claro, eu estava enganada. A cabeça também se engana e o coração tem dias que acerta. Às vezes, só conseguimos perceber o quanto gostamos de outra pessoa quando já não estamos com ela. Foi o que me aconteceu. A cada dia que passava ia sentindo mais que amava o António, que estava apaixonada por ele. O meu orgulho, contudo, não me deixava emendar a mão, dar o braço a torcer e ligar-lhe admitindo que sentia a sua falta. Além disso, tinha o conforto de saber que ele me amava profundamente e que, quando fosse altura, quando sentisse uma vontade irreprimível de voltar a estar com ele, bastava chamá-lo de volta.

Imagino que eu tenha deixado passar demasiado tempo entre o momento em que, com toda a frieza, lhe liguei para lhe comunicar que tudo aquilo que tivéramos não tinha passado de entretenimento, que não valia nada, que não deixara sequer rasto. Porque o António ficou em silêncio desde então e, quando lhe liguei, certo dia, seis meses mais tarde, ele atendeu-me com uma naturalidade desarmante. Enrolei um bocadinho a conversa, queria dizer-lhe que, no fundo, o amava e que sempre o tinha amado desde o nosso primeiro encontro de ginjinhas, só que era um amor difícil de decifrar, que me levou tempo a compreender e mais ainda a aceitar.
Não consegui dizer-lhe isto ao telefone, pois claro. Desta vez, queria dizê-lo cara a cara. Convidei-o para sair, "vamos tomar um café com cervejas e ginjinhas", desafiei-o. Estranhamente, defletiu o convite, como se se esquivasse. Não insisti. Não ia implorar-lhe. Esperei que me ligasse de volta a convidar, ou que me mandasse mensagem. Mas nada, nem uma palavra. Ao fim de duas semanas, decidi telefonar-lhe novamente. Conversámos um pouco. Entre risos palermas, eu disse-lhe que sentia saudades suas. Ele sorriu e depois calou-se. O silêncio empurrou-me para um abismo que eu desconhecia. Confessei-lhe, "António, eu amo-te". Não respondeu logo. Primeiro, inspirou fundo. Só depois disse, muito calma e suavemente, "Susana, eu conheci outra pessoa e sou muito feliz com ela".
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
