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Lições de humanidade que observei numa viagem ao Cambodja

Foto: Pexels
20 de março de 2025 às 17:45 Patrícia Barnabé

O alegre guia de Angkor Wat aponta para as paredes trabalhadas dos templos que ainda estão de pé, os primeiros remontam ao século VI. "Tudo muito honesto e direito, para não cair, como a dignidade", diz, enquanto nos encaminha, saltitante, por entre montanhas de pedras caídas, e montanhas de gente que quer tirar aquela fotografia do cenário do Tomb Raider. Em alguns casos, as árvores nasceram sob o desuso e a inutilidade daquelas paredes, e abraçaram-nas, o tempo e a Natureza a transformar e a esculpir. "Compassion, charity, simpathy and nooo jealousy" [compaixão, caridade, simpatia e nenhuma inveja], repetia, maquinalmente, ao atravessar a grandeza, e a maravilha daquele complexo de templos, outrora centro religioso e de poder do império Khmer, junto a Siem Reap, no Cambodja. Uma lengalenga bonita, pregada ao longo de gerações e gerações, primeiro de hinduísmo, depois de budismo. Palavras que ecoaram em nós com cada vez mais sentido. E imaginamos o espanto do primeiro ocidental que descobriu estas construções magistrais abandonadas no meio do verde: consta ter sido um frei capuchinho português, António da Madalena, em 1586, muito antes dos relatos dos exploradores franceses e japoneses que depois iniciaram a sua reconstrução.

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Completamente imune aos risos variáveis da sua plateia, o nosso guia tentava passar os valores e o orgulho do seu povo que, como nós, teve algumas glórias passadas. Ainda que fustigado pelo imperialismo, e a sua mania das superioridades, o Cambodja tem uma nobreza intacta, uma dignidade que permanece no seu povo, apesar das profanações várias dos seus templos - todas as religiões pregam a tolerância, mas não se respeitam mutuamente. Depois de esquecidos, da decadência dos impérios só restam histórias e grandes construções. Apesar de terem sido construídos em honra do deus Vishnu, hindu, naqueles templos permanecem estátuas budistas dos séculos XVI ao XVIII, muitas foram decapitadas, porque os seus monges, nos seus trajes em tons de laranja ou açafrão, não as abandonaram. Onde era suposto viverem deuses, onde floresceram frondosos jardins, salas sagradas e perfumadas de música e incensos vários - e onde dantes a água e a selva, os tigres e os elefantes, rodeavam sonhos de imortalidade -, restam agora turistas a fotografar recantos. E tendas modestas a vender as mesmas bugigangas, ligeiramente mais caras e desesperadas. De cada vez que o nosso guia gritava Angkor Waaaaat, como que a levantar do chão a grandeza daquela arquitetura, só nos ocorria a nobreza de resistir, que nos pode ser tão cara nos tempos desorientados em que vivemos. E de como o princípio budista da não violência educa um povo para a gentileza, o acolhimento e a generosidade – o humanismo.

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Num país com pouco mais do que a agricultura e o turismo, encontrei tanto contentamento... tudo parece certo e justo. E mesmo agora que a China está a esventrar o país para construir prédios altos em cima da costa, chutando as vilas de pescadores para o vazio, eles resistem e sorriem. E, por momentos, sentimo-nos ridículos porque refilamos por nada, porque os pés estão cansados, há muito sol e muito pó, a água acabou ou já se comia qualquer coisa. Somos ridículos porque achamos que as nossas pequenas vidas com os seus pequenos dramas são tudo o que existe. Enquanto a alegria do nosso guia, e a sua popularidade (toda a gente o cumprimentava na rua, explicou-me o próprio, a seguir), vinha de ser professor voluntário numa escola de crianças muito pobres.

Logo acima, e com uma bandeira irmã, o Laos é ainda mais modesto. Fustigado pela guerra e pela cobiça, é dos países mais bombardeados do mundo, mas os seus budas, oferendas e incensos, prevalecem vigilantes. Como os seus sorrisos espontâneos. É de uma simplicidade desarmante e encantadora onde nos encostamos, à confiança. Mais uma vez, são séculos de ensinamentos sofisticados e humanistas. Lembramo-nos logo daquela frase genial do Dalai Lama, figura máxima do budismo: "Se tem solução, não te preocupes: se não tem solução, não te preocupes."

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Não se vê um animal doente, atropelado, enxotado sequer. Dormem refastelados na estrada como se não existisse um enxame de motas a passar constantemente, como nas antigas aldeias portuguesas onde os rafeiros faziam parte da grande família da terra. Vêem-se homens adultos a pegar em cães ao colo e a encostarem o rosto ao seu focinho molhado e ternurento. Vacas, cabras, galinhas (lindas, pernilongas) andam na rua à solta, tudo é de todos, ninguém chateia ninguém, até te esqueces de fechar a porta. E a família toda junta. A forma como tratas os mais frágeis, dos velhos aos animais, diz muito da tua nobreza. E aqui não se sente o abandono da pobreza de África, ou até da América do sul, triste, frágil, revoltada, zangada, violenta. Aqui ninguém quer ficar com o que é teu, seja pouco ou seja muito.

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As culturas católicas que foram educadas na proibição e na culpa contrastam com esta grande luz. É um pacifismo que se respira em todo o lado, uma alegria contentada e partilhada. Depois, há chá em toda a parte, as melhores sopas do mundo, uma variedade alucinante de vegetais, há sempre cardápio vegetariano, um grande bem haja. E não existem cintos de segurança, nem capacetes, anda-se devagar, são famílias inteiras, bebés incluídos, ensanduichadas em cima de uma mota feliz. E, nos aeroportos, a segurança em vez de te chatear, esnobar ou ignorar, sorri. Nunca me tinha acontecido.

Apenas me choca, sempre, e ainda que quase ninguém repare, muito menos comente, ver os maduros ocidentais brancos, maioritariamente suiços, belgas e holandeses, vá-se-lá saber, com mulheres locais muito mais jovens e claramente submissas. A violência também espreita nos detalhes, e os maiores desníveis sociais, os de género como os racistas, vêm todos do mesmo lugar. Não se vê o contrário. Para quem sempre teve a sorte de poder escolher, é importante reparar.

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Os meus pais modernos não me deram uma religião oficial. Mais do que a parolada das orelhas furadas ou do clube de futebol decididos à nascença, não me batizaram porque quiseram que escolhesse no que acredito. Mais uma vez, a primeira sorte de todas é poder escolher. No caminho entre Tam Coc e Hoi An, já no Vietname, leio no autocarro uma entrevista ao filósofo e professor José Gil, a quem volto sempre: "A razão não tem a potência emocional de adesão que tem a manipulação do caos" diz a propósito desta nova era obscurantista em que vivemos, de redes sociais e não verdades, ou de tantas verdades quantas as opiniões, pobres e ligeiras da maioria, como o entretenimento que ocupa o lugar das ideias. Aconselha-nos a "lembrar como vive o primitivo, a criança, o artista", enquanto lá fora o sol desce sobre verdejantes arrozais a perder de vista, onde descansamos o olhar antes de adormecer.

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