Quando tentei passar para o meu lugar, a senhora que estava no lugar do lado do corredor perguntou-me "quer passar?" Eram oito da manhã, uma família com crianças em vários estádios de evolução, do colo à puberdade, aproximava-se na minha direção, em sentido oposto, e atrás de mim começava a formar-se uma fila de gente impaciente por chegar ao seu próprio assento. "Sim, minha senhora, pretendo chegar ao meu lugar", respondi, com o meu humor matinal, um sorriso cínico e a aflição de quem pressente o perigo de esmagamento por pessoas em fúria. A senhora mal se mexeu. Tive de passar a minha bagagem por cima dela e fazer-me alcandorar acrobaticamente em cima dos bancos para passar por cima da senhora, tentando não lhe tocar.
É notável como as pessoas têm dificuldade em interpretar combinações simples de elementos para conseguirem decifrar o lugar que o bilhete de comboio assinala. Aparentemente, é insondável a razão que faz com que um número de um assento combinado com o número de uma carruagem resultem num sítio específico, concreto e físico no interior da composição. A família recheada de crianças parecia não entender a lógica e a busca pelo seu sítio, que nunca conseguiram decifrar, demorou-se durante os primeiros largos quilómetros da viagem. Acabaram por desistir aceitando o destino, ainda que sem o compreenderem: sentaram-se onde calhava e era possível, e não se fala mais nisso.
Senti-me velha. Senti-me a odiar estes contratempos, estas pequenas notas desagradáveis da vida que, se olharmos para elas com bonomia e coração aberto, não passam de detalhes risíveis. Muitos quilómetros e uma hora mais tarde, a senhora ao meu lado falou comigo. "A sua viagem continua? Então, faça uma boa viagem. Eu saio já aqui." Mostrou muita simpatia. Sensibilizou-me. E, de repente, conversámos durante os poucos minutos que restavam da viagem dela no mesmo comboio que eu - esse encontro improvável, acidental, aleatório. Notei, entretanto, que usava uma colar de apoio ao pescoço, o que explicava, sem dúvida, a sua imobilidade inicial. Senti-me mal por ter pensado mal dela. Mas senti-me bem por me ter feito recordar os tempos em que a minha paixão pelas viagens de comboio era verdadeira e profunda.
No final da minha adolescência, no princípio dos anos 90, os adolescentes e jovens adultos da União Europeia tinham acesso a uma coisa que se chamava Interrail. Não sei se ainda hoje existe esse tipo de passe livre, imagino que sim - e espero que sim. Uma viagem de comboio por várias cidades europeias de diferentes países é completamente diferente de várias viagens aborrecidas a bordo de aviões poluentes e baratos, todos iguais, cheios de pessoas que veem filmes nos seus tablets e que não comunicam com ninguém além dos assistentes de bordo ao longo das duas ou três horas que dura o voo. Nos Interrails era diferente: as pessoas comunicavam, conheciam-se, davam-se a conhecer. Envolviam-se e partilhavam-se.
O meu primeiro Interrail, fi-lo com a Patrícia e a Margarida. Tínhamos acabado o liceu pouco antes, tínhamos feito os exames de admissão à universidade, e tínhamos juntado dinheiro para, no fim dessa era que foi a escola secundária, ir conhecer o mundo. Ou, mais concretamente, ir conhecer a Europa possível - na altura, não havia voos low-cost, as pessoas não iam a Berlim e a Paris a torto e a direito, muito menos a Tóquio ou a Nova Iorque; viajar era um luxo, se compararmos com o que hoje, 30 anos mais tarde, é. Eu, por exemplo, tinha ido a Espanha duas ou três vezes, uma delas a Madrid.
O nosso itinerário incluía cidades que, na altura, os jovens portugueses mostravam curiosidade em conhecer, como Praga, Budapeste e Viena. Já não me lembro de quantas cidades visitámos nessa primeira viagem, mas lembro-me especialmente da passagem por Praga. Vínhamos de Budapeste e, no mesmo comboio noturno que nós, na mesma carruagem, entrou um grupo de rapazes. Notámos que deviam ser do norte da Europa: eram altos, eram louros e eram giros. Ficámos depois a saber que eram holandeses. A certa altura, um deles pegou na guitarra - era muito comum os viajantes de Interrail levarem a sua viola - e perguntou, em inglês, se conhecíamos aquela. "Aquela" era a Creep, dos Radiohead. Quem não conhecia? Cantámos todos juntos.
O rapaz da guitarra chamava-se Ruud. Falámos, eu e ele, durante o resto da viagem até à República Checa. Quando chegámos a Praga, saímos do comboio de mãos dadas. Antes disso, ao longo do percurso, no comboio, beijámo-nos com curiosidade e paixão. Num momento de sossego, e enquanto todos os outros, amigos dele e amigas minhas, descansavam, esgueirámo-nos para a casa de banho. Fizemos amor da maneira mais precária que se possa imaginar, com pouco equilíbrio e, que me lembre, sem qualquer prazer - mas era mais forte que nós, era como uma necessidade. De repente, eu estava diante de um mundo novo, com pessoas novas, momentos novos, paisagens diferentes. Um mundo de liberdade. Depois de Praga, eu e o Ruud trocámos cartas um par de vezes. Mas era uma troca sem sentido, e acredito que os dois sentimos o mesmo. Então, parámos de mandar cartas um ao outro - não foi preciso conversar, nem avisar, nem explicar: o nosso momento foi aquele, a bordo de um comboio noturno entre Budapeste e Praga.
Depois do regresso a Lisboa, só tinha uma coisa em mente - e não era aquele rapaz holandês de olhos verdes e voz afinada: queria fazer mais interrails. Mas queria fazê-los sozinha. A experiência com o Ruud despertou em mim uma curiosidade que eu não sabia que existia acerca das pessoas de mundos diferentes - e principalmente de pessoas de mundos diferentes que, num dado momento, se encontram e fazem uma espécie de trégua com as regras da vida, do destino e do quotidiano: saem da sua persona habitual e dão-se, e dão o que têm a essa outra pessoa que então encontram. O envolvimento fugaz e descomprometido de alguém em viagem é possivelmente a forma mais pura e arrebatadora de atração. Por um lado, tudo é novidade, descoberta, surpresa; por outro, tudo é imediato, vertiginoso, finito. Essa tal curiosidade misturada com a consciência desse final iminente produz um cocktail que faz de nós animais humanos esfomeados do mundo.
Na viagem seguinte, explorei a Europa do Sul. Barcelona, Marselha, Turim, Roma, Nápoles. E outras. Nessa viagem, demorei-me: mesmo sem ter muito dinheiro, tinha a vantagem de ir sozinha, o que me permitia tomar opções sem levar outros em consideração, o que me permitia poupar. Essas opções eram a minha total liberdade. Liberdade até para dormir onde eu quisesse, ou onde calhasse, ou onde eu conseguisse. E, sim, sozinha ou acompanhada. Nunca fui debochada, mesmo que possa haver quem pense o contrário, mas sempre prezei muito a minha liberdade de estar com quem me apetece, quando me apetece (e só não digo "onde me apetece" porque, enfim, há regras e há limites). Nessa viagem, envolvi-me com quatro rapazes diferentes em quatro momentos diferentes da viagem. Foi quase como se cada um representasse uma etapa. Só me lembro do nome de Giuseppe, que conheci entre Roma e Nápoles. Não sei porque fixei o nome dele. Não foi nem mais nem menos especial do que os outros: num determinado momento, tudo para mim; antes e depois desse momento, nada, ninguém.
As viagens de Interrail ensinaram-me a apreciar o momento. Aquilo que tantas vezes lemos e ouvimos, que "o que importa é o agora", que "o que conta é o presente", tudo isso não passa de frases abstratas que apontam na direção certa, sim, mas às quais falta a substância consciente da experiência. Eu adquiri essa substância. Eu sei o que isso é. E agora vou parar de escrever porque o tipo que se sentou ao meu lado cumprimentou-me quando chegou e, ainda há pouco, começou a fazer perguntas sobre o que eu estava a escrever. Mas fê-lo de uma maneira gentil e engraçada. Vamos prosseguir viagem.* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.