'Eu, Júlia', a história não contada da imperatriz da Roma Antiga que esteve no centro do poder

O que temos nós a aprender com uma imperatriz da Roma Antiga? 'Eu, Júlia' é o novo romance histórico do autor espanhol Santiago Posteguillo, sobre uma mulher de destaque no Império Romano. Depois de vencer o prémio Planeta 2018, o livro acaba de chegar às livrarias portuguesas. Falámos com o escritor, na sua breve passagem por Lisboa.

Foto: D.R.
09 de novembro de 2020 às 08:40 Joana Moreira

À data desta entrevista, estamos na iminência de saber quem é o novo presidente dos Estados Unidos. Um estado de caos político. O que é que aquela Júlia, e aquela Roma, ensinam a esta América ou a este mundo? 

Muitas coisas. O Império Romano é, entre muitas coisas, também sobre controlo de poder. O que estamos a ver é precisamente uma luta pelo poder nos Estados Unidos. O Império Romano entrou em declínio por uma série de razões, entre as quais uma divisão. E divisão é o que estamos a ver nos Estados Unidos. Outra coisa que fez o Império Romano entrar em declínio foi começar a ter líderes que não eram politicamente aptos. Eu não diria que [Donald] Trump é um líder modelo, por isso... sim, os EUA talvez tenham muito a aprender com um livro como Eu, Júlia.

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Foto: D.R.

Este livro coloca uma mulher no centro da história e do poder. Em 2020, vemos algumas figuras nesse registo, como Angela Merkel, na Alemanha, ou Jacinda Ardern, na Nova Zelândia, mas poucas no sul da Europa, nos países mediterrâneos. Pode o livro ser uma inspiração para que isso aconteça?

Esperemos que sim. Acho que seria altamente benéfico. Eu não diria que no geral os líderes do sul da Europa são particularmente brilhantes. Pelo menos no meu país. Por isso, espero que isto estabeleça um exemplo. Espero que sim. É verdade que temos alguns líderes políticos femininos, como mencionou, mas nesta eleição norte-americana temos uma importante mulher no seio do partido democrata. Quer dizer, Kamala Harris, se Biden fosse eleito e se ficasse doente ou morresse, o que, bem, considerando que é o candidato mais velho de sempre numa eleição norte-americana, não é assim tão farfetched, Kamala tornar-se-ia presidente dos Estados Unidos. Por isso há muito em jogo. Esperemos que o mundo encontre mais Júlias. Porque acho que a Júlia é um exemplo de uma líder esperta, inteligente. Certamente é isso que precisamos para um mundo complexo como o que vivemos.

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Ainda falando de igualdade de género, no registo histórico é raro vermos mulheres no centro da narrativa. De onde surgiu a vontade de se debruçar sobre esta figura?

Sim, basicamente estamos a contar não a história da Humanidade, mas a história dos homens. Quando escrevi o meu primeiro romance, a minha primeira ficção histórica, uma colega no departamento, uma mulher, disse-me: "gosto muito do teu romance...", mas podia-se perceber pela forma como ela falava que viria um "mas". E no final veio o tal "mas". "Sinto que as tuas personagens femininas não são bem desenvolvidas", disse-me. E eu fiquei zangado comigo mesmo. Sabia que ela tinha razão. E pensei "como é que isto me aconteceu a mim?". Lembro-me de estudar escrita criativa nos Estados Unidos, por exemplo, e a ênfase que os professores tinham colocado neste equilíbrio entre personagens masculinas e femininas, e o que descobri é que, no meu interesse em ser muito histórico, seguindo de muito perto as fontes clássicas, acabava sempre com homens. Porque quem são as fontes clássicas? Sempre homens. Se considerarmos as fontes de informação da Roma clássica temos Plínio, Dião Cássio, Cícero... São sempre homens e a falar de homens. Aliás, para escrever sobre Júlia, as quatro figuras clássicas que me deram informação foram homens ou um conjunto de textos sobre homens. Não há um capítulo sobre Júlia, de todo. Mas há informação sobre Júlia. Porque apesar de estarem de certa forma a neglicência-la, não conseguiram evitar a sua relevância. Quando escrevem um capítulo sobre Septimio Severo, que foi o seu marido, tinham de fazer muitas referências à mulher, porque a mulher tinha muita influência nele. (…) Tenho de retirar toda esta informação de uma variedade de fontes para conseguir informação sobre Júlia, o que mostra que a informação sobre mulheres está muitas vezes lá, mas de certa forma dispersa, é preciso juntá-la. E mostra quanto a história das mulheres tem sido negligenciada. O que tento fazer com livros como este é por um fim a isso. Não se trata de reescrever a história, mas escrevê-la de forma completa, com a história dos homens e das mulheres.

Depois de acabar um livro como este não se pensa em quantas mulheres na História têm histórias que mereciam ser contadas? 

Sem dúvida. Por isso mesmo é que no último ano tenho trabalhado numa série de televisão espanhola, chamada El corazón del império, que é precisamente sobre isso. É um documentário com ficção. Em que sou, por exemplo, o apresentador do documentário, mas vou introduzindo personagens femininas da Roma Antiga, em que as atrizes vão aparecendo recriando as cenas que vou mencionando. Estes seis capítulos serão precisamente sobre mulheres relevantes na Roma Antiga. Acho que há muitas outras Júlias que têm sido negligenciadas e eu quero resgatar estas figuras e fazê-lo para as audiências do século XXI.

Falando da dicotomia entre a história e a ficção, qual é para si a importância do rigor histórico?

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Para mim é muito importante ser rigoroso com os factos. Foi por isso que acabei com o problema de estar a negligenciar mulheres, porque estava a seguir a informação clássica demasiado perto. Agora continuo, mas com uma revisão no que diz respeito a questões de género, simplesmente procurando mais informação, informação complementar e, depois, combino isso com uma parte de ficção que tem que ver sobretudo com a vida privada destas figuras históricas. Porque usualmente o que sabemos das figuras históricas tem a ver com a sua vida pública. Sei quando a Júlia nasceu, quando conheceu Severo pela primeira vez, quando casou, quando teve a primeira criança, sei isso tudo. Até sei que estiveram apaixonados um pelo outro. Mas não sei as suas conversas privadas, ninguém sabe. Aí, o escritor entra. É aí que o escritor exercita o seu poder de imaginar para dar vida a essas conversas de uma forma que é coerente com os factos reais.

Os seus livros têm muito sucesso entre o público. Acha que continuamos a ter muito para aprender com a história? 

Infinitamente. Pode mostrar-me um mundo presente em que as coisas estão a correr corretamente? Acho que temos muita muita coisa a aprender com o passado. É uma frase muito típica, mas é verdade: temos de não repetir os erros do passado, e temos de aprender com as coisas boas que aconteceram no passado. Infelizmente, acho que não temos muitos líderes... Aliás, eu ia dizer que poucos líderes mundiais hoje leem história, mas na verdade, acho que poucos líderes mundiais hoje leem e isso é um problema.

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O que é que deveríamos ter já aprendido com a História, em 2020?

Devíamos ter, pelo menos, aprendido que quando temos uma emergência sanitária as lutas políticas deviam ser postas de lado. Isto é algo que expliquei no segundo romance sobre Júlia, porque o seu médico enfrenta outro vírus pandémico, e ela dá-nos uma lição, com o seu marido, sobre pôr o poder político de lado e dar voz a um expert de saúde. Isso é algo que podíamos ter aprendido, teria beneficiado 2020. 

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