Erika Lust: “O olhar feminino é vital para desafiar o status quo da pornografia”
Uma conversa sem filtros com a realizadora e produtora sueca, a primeira mulher a pensar a pornografia de e para mulheres.
Foto: Monica Figueras04 de janeiro de 2024 às 16:32 Joana Moreira
Em Male Fantasy, do álbum Happier Than Ever (2021), Billie Eilish fala dos efeitos devastadores da pornografia na sua vida, uma "fantasia masculina" que a levou a fazer terapia. Numa entrevista no programa de Howard Stern, em 2021, a cantora norte-americana contou ainda que começou a consumir pornografia aos 11 anos, e que considera a pornografia "uma desgraça". "Destruiu-me o cérebro", admite sobre a forma como os filmes pornográficos durante décadas representaram as mulheres, subjugando-as ao estatuto de ferramenta para ajudar o homem atingir o orgasmo.
O olhar masculino tem sido a perspetiva dominante na pornografia, mas há quem proponha uma visão alternativa do mundo – que reflita sobre ele para começar. É o caso da realizadora e produtora sueca Erika Lust, que faz pornografia feminista. Mostra corpos diferentes, de idades diferentes, uma sexualidade mais próxima da realidade.
"A questão é que a maioria das pessoas associa a pornografia a um tipo de material cheio de códigos repetitivos e clichés cansativos que se centram na genitália feminina e nas partes do corpo, mas nada no prazer feminino. Contudo a pornografia feita com valores feministas é essencial para mostrar uma representação autêntica da sexualidade humana", diz a realizadora de 46 anos, em entrevista para a Máxima.
Fixada em Barcelona desde 2000, Lust criou a sua produtora, a Erika Lust Films, para criar narrativas que desafiem a perspetiva tradicional que prolifera online, colocando o consentimento e o prazer feminino no centro. O objetivo é claro: "Quero mudar a perceção que muitas pessoas possam ter da pornografia."
Tornou-se conhecida por uma abordagem diferente da pornografia – que defenda a perspetiva feminina. A sua relação com a sexualidade hoje seria diferente se quando começou a consumir pornografia se tivesse confrontado com filmes como os que produz?
Sem dúvida! Quando comecei havia apenas algumas pessoas a criar conteúdo para adultos de uma perspetiva alternativa. Queria criar algo diferente dentro do género, filmes pornográficos de acordo com o meu gosto, expressando os meus valores e mostrando a importância do prazer feminino.
Não é fã do rótulo "pornografia feminista". Porquê?
A pornografia feminista começou originalmente como uma forma de reivindicar um género que tradicionalmente era visto como sendo exclusivo dos homens e para trazer um olhar diferente sobre como representamos o sexo. Mas isso não significa que a pornografia feminista seja subitamente "pornografia para mulheres". Na pornografia feminista, mulheres, homens e pessoas de qualquer género estão no comando do que fazem sexualmente, detêm o seu prazer e são tratados como colaboradores sexuais iguais, não como objetos ou máquinas de sexo. A pornografia feita com valores feministas é essencialmente sobre mostrar uma representação autêntica e igualitária da sexualidade humana, sem estereótipos de género, que são prejudiciais tanto para homens como para mulheres.
Enquanto cineasta feminista, como navega no equilíbrio entre criar conteúdo erótico e evitar a objetificação?
Sinto uma resistência geral em relação à realidade de como a pornografia pode ser usada de forma positiva ou negativa, tal como qualquer outra coisa. Tudo depende da perspetiva com que os filmes são feitos. Por exemplo, não acredito que seja responsabilidade da pornografia educar, mas ela pode ter o poder de inspirar uma atitude positiva em relação ao sexo e aos relacionamentos, se estivermos dispostos a trazê-la para a pornografia que criamos e escolhemos ver. A pornografia pode ser uma ferramenta fantástica para a autodescoberta e exploração pessoal, e uma ferramenta de exploração com um parceiro. A pornografia tem o poder de libertar! Não tem de ser uma parte negativa da nossa sociedade. Podemos ter pornografia em que as pessoas se reveem nos filmes, ver o sexo que têm e ser inspiradas por outras formas de ter sexo. Não é necessário ser exposto a apenas uma versão de pornografia.
Que preconceitos ainda persistem no seio da indústria?
Um preconceito que afeta as mulheres na indústria pornográfica ainda é a ideia de que a pornografia é feita para homens e que as mulheres não são tão sexuais quanto os homens quando se trata do tipo de pornografia que querem ver. Nos últimos anos, tem havido uma mudança cultural em relação às mulheres que se sentem empoderadas para se assumirem e abraçarem a sua sexualidade. Acredito que o olhar feminino é vital para desafiar o status quo da pornografia, confrontar a dominação masculina desta indústria e oferecer alternativas. Quando falamos do "olhar", referimo-nos às perspetivas a partir das quais fazemos filmes. Quando temos mulheres, LGBTQ+ e pessoas BIPOC em posições de poder atrás das câmaras, como produtoras, realizadoras e argumentistas, elas trazem as suas visões para os filmes e criam um espaço positivo para reclamar a sua sexualidade, prazer e desejos. Podem contar as suas próprias histórias! Desta forma, podem reescrever o guião sobre o nosso envolvimento no sexo, e na vida pública, e oferecer alternativas. Não existe uma pornografia one size fits all para o nosso género e é isso que eu e outras cineastas femininas e queer estamos a mostrar.
Porque é que é importante desafiar os padrões convencionais de beleza e retratar vários tipos de corpos e identidades?
Dadas as estruturas patriarcais em que vivemos, vemos uma clara distinção na representação dos corpos masculinos e femininos em todos os meios de comunicação. Há um foco claro e uma expectativa em relação aos corpos femininos, o que nem sempre acontece em relação aos corpos masculinos. Precisamos de mais pornografia que mostre imagens relacionáveis de corpos imperfeitos com os quais os espetadores se possam identificar. Isso vai ajudar a ultrapassarmos as normas de género e as expectativas em relação aos corpos femininos maiores e a passar a mensagem de que esses corpos são tão desejáveis quanto outros. A representatividade importa e é incrivelmente importante começar a desconstruir as visões com que todos nós crescemos em relação aos padrões de beleza. Para mim, a medida mais importante a ter em conta seria uma representação clara e igualitária do prazer de todos os corpos presentes no ecrã. Só assim se está a transmitir uma mensagem de que todos os corpos merecem prazer, todos os corpos são desejáveis e devem ser celebrados apenas por existirem. Todos temos características e identidades diferentes, e é importante que todas sejam reconhecidas e celebradas. O sexo e a sexualidade podem ter dinâmicas que refletem determinados valores da sociedade atual e é importante que tentemos substituí-las por uma representação adequada que respeite e honre todos.
Já foram usados filmes da sua autoria como ferramentas educacionais e a pornografia tornou-se, de certa forma, a educação sexual de muitos jovens hoje. Como podem ser integrados os princípios feministas na educação sexual, e que papel desempenham os seus filmes nesse contexto?
Na [produtora] ErikaLust, criámos um projeto sem fins lucrativos, The Porn Conversation (conversa sobre pornografia, em português), que aborda aquilo a que chamamos literacia pornográfica – trata-se de um site que disponibiliza ferramentas para ajudar pais e educadores a falar sobre pornografia com crianças e jovens. Nós, pais, temos a responsabilidade de criar um espaço onde os nossos filhos entendam que podem e vão falar sobre sexo. Mas não é apenas abordar os perigos do sexo e da reprodução, também precisamos de falar sobre o prazer, o consentimento, a segurança, as expectativas sexuais e, claro, a pornografia! A solução para navegar por este momento é incentivar a conversa sobre pornografia. Ao encorajar o seu filho a questionar e a criticar o que é exposto na pornografia, eles conseguem tomar decisões mais inteligentes sobre sexo e relacionamentos nas suas vidas, baseadas no conhecimento e não no medo ou na vergonha. Uma das principais preocupações em relação ao consumo de pornografia por jovens é o impacto que isso pode ter na criação de expectativas sexuais. The Porn Conversation visa fornecer literacia pornográfica às gerações mais jovens, para que se apercebam de como os meios sexualizados podem moldar as suas perceções e expectativas em relação à sua própria sexualidade e aos seus relacionamentos com os outros, e para compreenderem que a pornografia é fantasia e ficção, como qualquer forma de entretenimento.
Voltando ao início, como é que as primeiras experiências em filmes para adultos influenciaram a decisão de criar sob uma diferente filosofia?
Quando estava a estudar Ciência Política e Estudos de Género na Universidade de Lund, na Suécia, deparei-me com o livro de Linda Williams, Hard Core: Power, Pleasure, and ‘The Frenzy of the Visible’, em que ela argumenta que a pornografia é uma forma de comunicar ideias específicas sobre género e sexo, embora não reflita realmente nenhuma verdade sobre o sexo. Após os estudos, mudei-me para Barcelona em 2000 e comecei a frequentar aulas de cinema. Quando me deram a tarefa de criar o meu próprio filme curto, agarrei a oportunidade, ia desafiar-me a rodar um filme explícito! Mas queria que tivesse uma perspectiva diferente dentro do género pornográfico. Fiz uma curta-metragem chamada The Good Girl, uma abordagem humorística do típico rapaz da entrega de pizzas nos filmes pornográficos, e publiquei-o online, disponível para download gratuito. Na semana seguinte, tinha mais de 2 milhões de downloads! Recebi emails de pessoas de todo o mundo a dizer que adoraram o filme e a perguntar quando sairia o próximo. Foi aí que percebi que outras pessoas estavam à procura de alternativas à pornografia online a que estavam habituadas, por isso decidi continuar a fazer filmes para adultos que refletissem o meu gosto e os meus valores sobre sexo e género... Foi assim que nasceu a ErikaLust.
Foto: Monica Figueras
Que mudanças tem observado na indústria pornográfica nos últimos anos, particularmente nesta questão do olhar de quem filma?
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Vejo muitos novos criadores a esforçarem-se para criar conteúdo com uma perspetiva alternativa. Mesmo que ainda seja de nicho, há um esforço crescente para mudar as coisas dentro da indústria. A pornografia feminista pode ser uma ótima ferramenta para a autodescoberta. Todos devem ser capazes de explorar pornografia que reflita quem são e o que os excita, ninguém se deve sentir excluído ou sub-representado na pornografia que vê. Quando estamos cientes da variedade que existe em relação à pornografia, podemos tomar decisões conscientes em relação ao nosso consumo para encontrar o que nos ressoa sexualmente, em que nos vemos representados e como viver e celebrar os nossos corpos e o nosso prazer. Precisamos de pornografia que represente fielmente toda a gente.
Como tem lidado com questões relacionadas com a censura e o estigma associado à produção de conteúdos para adultos?
Recentemente escrevi um artigo para a nossa revista, Lust Zine, referindo-me à "censura preconceituosa", um termo criado na altura para reconhecer a censura injusta que se baseia no preconceito patriarcal que está codificado nas nossas vidas. No entanto, para que a pornografia comece a perder o seu estigma e para que os cineastas independentes continuem a criar filmes artísticos, cinematográficos e celebratórios, todos nós precisamos de refletir sobre como a pornografia não é intrinsecamente prejudicial ou carregada de violência e misoginia. A pornografia é um reflexo direto do mundo complexo em que vivemos, por isso devemos parar de culpá-la por tudo. Nós, como seres humanos, somos seres sexuais e, em algum momento das nossas vidas, vamos procurar conteúdo sexual. Devemos ser capazes de o fazer de forma informada, segura e socialmente responsável. Quando o fazemos, a pornografia pode acrescentar muito à nossa vida sexual, a solo ou com um parceiro!
Foto: Adriana Eskenazi
Sempre fez uma reflexão crítica sobre a indústria pornográfica. Como é atualmente a sua relação com a indústria? Ainda se vê como uma outsider?
Definitivamente vejo-me como parte da indústria. Quero que as pessoas percebam, com os meus filmes e a minha missão, que o prazer de todos importa. Quero inspirar as pessoas a ver o sexo como uma parte saudável e natural da vida que merece ser celebrada. Quero que as mulheres e as pessoas LGBTQ+ estejam atrás das câmaras em todas as posições-chave; apoiar o seu talento produzindo e financiando realizadores convidados femininos e queer de todo o mundo. Adoro a comunidade global diversificada e em constante crescimento – online e offline – de criadores e artistas sex-positive que construímos ao longo dos últimos 20 anos. Quero mudar a perceção que muitas pessoas possam ter da pornografia.
Nos últimos anos tem-se discutido a importância do consumo ético de pornografia. Preocupamo-nos com os alimentos que comemos, os móveis que compramos ou a roupa que vestimos. Mas, se pode haver alguma racionalidade nestas decisões, o prazer e o desejo operam num nível mais emocional e instintivo. Esta complexidade torna as discussões sobre o consumo ético de pornografia difíceis. O que pensa da categorização "pornografia ética"?
A pornografia ética provou ser um rótulo influente que permite às pessoas identificar imediatamente um tipo de pornografia que celebra a sexualidade humana de forma positiva e até educativa, colocando a segurança dos intérpretes e das equipas no set em primeiro plano, por oposição à grande quantidade de pornografia misógina disponível online gratuitamente que oferece uma representação mais mecânica do sexo, muitas vezes alicerçada na fetichização dos intérpretes pelas suas características, deixando muitas pessoas confusas em relação aos seus corpos e sexualidade. A realidade é que a indústria pornográfica, como muitas outras, é naturalmente complexa. Conversas no set sobre os limites e o consentimento dos intérpretes, o tratamento respeitoso de todos os envolvidos e um pagamento justo estão a acontecer agora em muitos sets convencionais também. Provavelmente não devemos falar de "pornografia ética" e apenas de "pornografia". Por exemplo, pornografia DIY de baixa qualidade não é automaticamente menos ética do que a pornografia cinematográfica. Se for feita com segurança e tendo em conta as necessidades dos intérpretes, há boas hipóteses de que esse tipo de pornografia também possa ser considerado ético. A parte complicada é que nem sempre se pode ter 100% de certeza do que acontece nos bastidores, a menos que as empresas de pornografia o tornem transparente nos seus websites. A pornografia ética, em última análise, tem a ver com a escolha responsável dos consumidores de pagar pela pornografia que veem e de fazerem a sua pesquisa sobre quem a faz e com que valores. Os consumidores de pornografia estão a questionar de onde vem a sua pornografia?
*Artigo originalmente publicado na revista que celebra os 35º anos da Máxima.
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*Artigo originalmente publicado na revista que celebra os 35º anos da Máxima.