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O lugar escolhido pelo Paulo Sérgio BEJu chama-se Levada do Alecrim. Na sua Madre, leito de uma ribeira, existe a Queda da Dona Beija. Foi acima da queda de água que fizemos as fotografias. Lembro-me dessa tarde. Estava sol e calor, mas a água gelava. O odor a ervas e seivas da ilha da Madeira, a pedra aquecida pelo sol, dor, força e esperança, minha e do fotógrafo, em conjura implícita, enchiam o lugar.

Não senti vergonha de me despir frente ao Paulo Sérgio, que conhecia mal. Talvez me tivesse preparado para esse momento ou talvez fosse só a minha velha determinação. Despi-me sem medo. Fui seguindo as suas indicações, como é normal numa sessão desta natureza. Baixa-te. Encosta-te à pedra. Deixa-te flutuar. Levanta a cabeça. Deixei-me ir. O que é que tenho a perder? Sejamos honestos: protegida a alma, o que é que cada um de nós tem a perder?

Foto: Paulo Sérgio

Eu tinha realizado a cirurgia de redução do estômago nas férias de Natal de 2010, e o meu corpo vivia ainda uma guerra avassaladora. As cicatrizes internas do estômago cortado pelos cirurgiões precisavam de sarar. As vísceras dilaceradas iam-se curando. Eu dependia delas para me manter viva. Todo o meu corpo lutava e se adaptava a uma nova forma de vida. Ingeria doses fortíssimas de suplementos vitamínicos receitados pelos médicos, que fazem o seu trabalho com muita eficácia, mas seguem caminho. Nós ficamos sozinhos com um corpo ferido nos braços e sem força para o sustentar. Há dor, confusão, raiva. "Porque me fiz isto?" "Não havia outra saída?" Tudo nos vem à cabeça. É uma cirurgia muito radical e um processo muito violento. Não voltamos a ser quem fomos. Aprendi que o corpo precisa de muito pouco para se manter vivo.

Foto: Paulo Sérgio

Nestas imagens permanece invisível o lado não glamouroso do emagrecimento. Ninguém sabe que acordei em sofrimento, com sangue na boca. Não se percebe a violência do jejum compulsivo. Podemos humedecer os lábios. Beber água, não. Não se adivinha o impulso infame de devorar a refeição da paciente ao lado, na enfermaria, sabendo que já é fisicamente impossível. Chamamos a enfermeira e perguntamos quando podemos beber chá, só chá. Morno, frio, tanto faz. As imagens também não registam a luxúria com que se saboreia a primeira colher de um iogurte natural ou o primeiro gole de um batido de fruta, quando o estômago finalmente suporta alimentação líquida. É uma morte e um renascimento.

Meti na cabeça a ideia de me retratar nua quando um ex-namorado pintor o combinou comigo. Fantasiei sobre o assunto, na juventude, mas acabou por nunca se concretizar. Queria ver o meu corpo enquanto objeto de desejo. Desejava sê-lo. Alguém no passado me disse que eu era caprichosa. Talvez. E depois?

Foto: Paulo Sérgio

Fui uma mulher muito sensual. Ser gorda nunca foi um obstáculo à realização do desejo, apenas do amor. Os meus parceiros usufruíam o meu corpo gozosamente, mas de forma marginal, como do de uma amante. Era um corpo clandestino. A esposa legítima seria o manequim que se coloca na montra, mas ansiariam por chafurdar na doce e macia lama do meu corpo. O meu corpo era bom e eu desejava dar-lhe valor, mas o meu corpo era mau e queria livrar-me dele. É incoerente? Estamos autorizados a sorrir como resposta.

Conheci o Paulo Sérgio BEJu no Festival Literário da Madeira e gostei da onda dele. Resolvi propor-lhe o projeto. Já andava a trabalhar o romance A Gorda na minha cabeça. O meu processo criativo é caótico e intuitivo. Ando com os assuntos na cabeça e sigo caminhos que ignoro para chegar ao texto. Não sei porque o faço, sei que preciso de o fazer. Tornar a arte racional não é o meu papel. Tenho de a produzir. Basta. O resto fica para os ecos, para a porrada, para quem recebe. Convém que tudo se confunda. Convém continuar a viver no gume de todas as navalhas sem me cortar.

Foto: Paulo Sérgio

O Paulo Sérgio revelou as fotos em 24 horas e trouxe-mas num envelope dourado. Eram majestosas e difíceis de enfrentar. Ali estava o meu corpo de morsa. Cheio de dobras. Tanta carne. Sim, eu era aquilo. Envergonhava-me, mas a minha dor, doçura e pujança tinham sido captadas. Eram imagens poderosas. Disse-o ao Paulo Sérgio. Ficámos de pensar o que fazer com elas no futuro. Ele guardou-as. Nunca as usámos, mas não me esqueci, nunca escondo que as tirei e sinto que me transcendem. Já não vejo a mulher gorda, a morsa, o monte enorme de carne. Vejo beleza, força e lassidão. Tenho pena que o trabalho magnífico do Paulo Sérgio BEJu não tenha sido revelado até agora. Está na hora. Estas imagens servem outros olhares. Outros corpos precisam deste corpo. Talvez precisemos de nos fotografar com despojamento, para compreender a verdade do nosso poder e beleza. Não somos grandes nem pequenos, altos nem baixos, gordos nem magros, mas belos, belos, belos.

*Artigo originalmente publicado na revista que celebra os 35º anos da Máxima.

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