Ricardo Araújo Pereira: “Somos todos ridículos. O ridículo é muito democrático.”
Para quem se leva demasiado a sério, esta consideração que RAP fez no lançamento do seu livro “Coisa Que Não Edifica Nem Destrói”, soa a sacrilégio. Talvez o leitor fique mais apaziguado na sua sobriedade se souber que o humorista estudou Santo Isidoro de Sevilha antes de alvitrar estes palpites.

Ricardo Araújo Pereira (RAP) não perde uma oportunidade de dizer que no livro Coisa Que Não Edifica Nem Destrói, e no podcast que lhe deu o nome, discorre "chatamente" sobre o que é o humor. A correspondente da Máxima discorda que o exercício seja chato, mas talvez não seja má ideia informar que a correspondente é aluna do humorista na cadeira de Escrita de Comédia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH). Já para não dizer que o que é chato para uns é uma diversão para outros. No início desta semana, alguns desses outros reuniram-se no Maxime para assistir ao lançamento do livro, que reúne por escrito os episódios do podcast com o mesmo nome. Mas atenção que este é apenas o primeiro volume, que inclui sete de um total de 16 episódios – dos quais ainda só 14 estão disponíveis –, os outros estarão no segundo volume, que será lançado no ano que vem.

RAP sobe ao palco seguido de Bárbara Bulhosa, fundadora da editora Tinta-da-China – ou talvez tenha sido ao contrário, a correspondente estava entretida com o livro – é ela quem o apresenta. Bárbara informa a plateia que este é o 13º livro dele editado pela Tinta-da-China e o segundo livro de ensaios, o outro foi o manual de escrita humorística: A Doença, O Sofrimento e A Morte Entram Num Bar. "Não é o trabalho que ele faz melhor, mas é aquele em que ele mais se distingue. Não conheço mais ninguém que o faça neste registo. Ele é único!" Por esta altura, RAP já abanava a cabeça e bufava. Bárbara confirma o que ele já sabia: "Estou a dizer isto para o enervar. Está a resultar!"

Sobre o podcast que deu origem ao livro, RAP diz já não saber bem quem é que teve a ideia – "provavelmente foi a Bárbara que me esporeou" –, mas diz que o desejo de o fazer tem muito a ver com um sentimento que Ana Cristina Leonardo exprimiu, recentemente, numa crónica do Público: "Actualizando a frase de Wilde: o riso anda pela hora da morte. As regras contra o ‘ofendidismo’ avolumam-se, a literalidade da linguagem marca pontos (uma das chaves explicativas da mediocridade literária dominante e do embrutecimento da imaginação), até que chegará o dia em que rir será como fazer sexo em público: proibido." – E RAP conclui: "Começa a haver uma série de ocorrências que me fazem pensar se isto não terá um fundo de verdade."


Para ilustrar, deu o exemplo do professor de Sociologia, da FCSH, João Sedas Nunes, que se referiu a Joana Marques, a propósito do seu programa Extremamente Desagradável, nos seguintes termos: "Fascista-até-à-medula. Gozo de golpear, magoar, ridicularizar, vexar e demolir (…) quem não tem nem terá a mínima possibilidade de retaliar. Peçonha. Mal em estado puro: o prazer de ferir os vulneráveis (…)." RAP acrescenta que, na semana destas declarações, Joana Marques tinha abordado, na sua rubrica humorística, a nova novela da SIC, a cobertura mediática do funeral de Isabel II, declarações de Cristiano Ronaldo, conselhos de um conhecido guru de auto-ajuda e autor de best-sellers, e semelhantes. Ou seja: "Claramente, pessoas vulneráveis e sem a mínima possibilidade de retaliar."



Sobre aquilo que Ana Cristina Leonardo chama de "ofendidismo", RAP diz ainda o seguinte: "Há pessoas que dizem: [introduzir sotaque de padre beirão aqui] ‘liberdade de expressão sim, desde que não seja para ofender’. Não. Não é isso. Não é possível haver o direito a não ser ofendido. As pessoas ofendem-se com muitas coisas. Com tudo!" E acrescenta que "ridicularizar os outros é uma prática muito saudável. Andamos a fazê-lo há muito tempo porque somos todos ridículos: os ridicularizados e os que ridicularizam. O ridículo é muito democrático. Acho que esta consideração soa a sacrilégio quando há tanta gente a dizer ‘somos perfeitos como somos’. (…) As pessoas não chegam ao ponto de dizer que é preciso ter licença de porte de piada – porque sabem que isso seria mesmo muito ridículo – mas acham que o humor é uma arma cujo uso devia ser limitado. Só que o riso é uma reação física que não se consegue limitar ou controlar, tal como não se consegue limitar ou controlar um espirro ou um soluço."
O PODER POLÍTICO DO HUMORISTA
Uma outra questão – talvez seja mais correto dizer desconfiança – muito comum sobre os humoristas é o seu poder político, o poder de ajudar a decidir eleições. Uma ideia da qual RAP discorda em absoluto e cuja discordância explanou da seguinte forma: "Em outubro saiu um artigo no Expresso, com a minha cara, que perguntava ‘Será que este homem é o líder da oposição?’. Tentei dissuadi-los, mas não consegui. E o artigo terminava com a seguinte conclusão: ‘O Zelenski foi eleito presidente [da Ucrânia] e era humorista, portanto…’ Só que Zelenski foi eleito não por ser um humorista, mas por ser uma celebridade. O mayor de Kiev já foi pugilista. O que é isso, então? O poder do pugilismo? Alexandre Frota [ator de novelas brasileiras e de filmes pornográficos] foi eleito deputado federal, no Brasil. E isso é o quê? O poder da pornografia? É possível. Já o tínhamos visto com Cicciolina…"
É percetível que Bárbara Bulhosa não está inteiramente de acordo. A editora pergunta-lhe: "Então, os humoristas não têm poder nenhum?" RAP responde: "As pessoas dizem ‘certo, não têm esse poder todo, mas têm algum: o poder de desenhar o bigodinho’. E então?! Como é que isso corrói o poder do poderoso? (…) Não digo que não haja rabiscos que deitem abaixo políticos grotescos: são aqueles dois que fazemos, em forma de cruz, quando vamos às urnas". E conclui com a seguinte reflexão: "‘Ah, mas o humor não tem uma capacidade persuasiva?’ É verdade que tem, e é por isso que muitos humoristas são convidados para fazer publicidade. Mas isso não acontece na política."

Para resumir o que é o verdadeiro trabalho do humorista, RAP remete para uma cena do filme Stardust Memories, de Woody Allen, em que este conversa com alienígenas sobre o sentido da vida e estes lhe respondem: "És um humorista, pá. Queres prestar um serviço à humanidade, escreve piadas mais engraçadas!" RAP acrescenta o seguinte: "É fascinante para mim que um conjunto de palavras dito numa ordem específica faça com que a plateia produza um barulho muito específico. Eu vivo para esse barulho. Provocar uma reação física de prazer noutra pessoa sem lhe tocar. ‘Ah e tal, o marquês de Sade também fazia isso…’ Sim, mas sem tocar! A tocar também eu, ó marquês!"
A determinada altura há alguém na plateia que interrompe o humorista com uma pergunta: "Ó Ricardo, o que é que te faz rir?" RAP apresenta a interruptora: "Esta é a Cecília, foi minha colega na faculdade. Fomos para a rua muitas vezes porque eu escrevia discretas notas com impressões sobre os professores que ela lia e respondia com gargalhadas obscenas." Depois de mais algumas memórias e gargalhadas partilhadas pelos dois, o humorista responde: "O que me faz rir é o que faz rir toda a gente. É uma espécie de surpresa. Mas um tipo especial de surpresa. Se encontrar a minha mulher na cama com dois senhores, fico surpreendido – enfim, mais ou menos surpreendido –, mas não acho graça. Ou posso achar, dependendo dos senhores…"
Coisa Que Não Edifica Nem Destrói está disponível no site da Tinta-da-China e nas livrarias do costume.
