A dor que nos provoca o arrependimento é uma dor aguda e fininha, como aquela que nos faz saltar na cadeira quando desvitalizamos um dente. Pode transformar-se numa moinha, mas não desaparece. Se não tivéssemos dito ou feito assim, e antes assado, escolhido o caminho A em lugar do B, ou mesmo permanecido quietinhos no mesmo lugar, teríamos evitado magoarmo-nos a nós mesmas, ou pior ainda, os outros.
Que raiva, porque é que apesar de tanta tecnologia e inteligências artificiais, não conseguimos fazer desaparecer o que correu mal? Se ao menos o tempo voltasse para trás. Mas não volta.
Quando percebemos que não volta, odiamos ainda mais o arrependimento porque, aparentemente, é uma dor que não serve para nada. Ou, mais grave, só serve para nos tornar pessoas mais hesitantes, com medo de arriscar, excessivamente conformadas, tal o receio de voltar a meter a pata na poça, de que o que aí vem seja pior do que aquilo que já temos. Com mais o peso do arrependimento. E isso é mau. Mas há pior: por falta de capacidade para suportar a pena e o remorso, corremos também o risco de banalizar o sentimento, esvaziando-o, tornando-o num pretexto para nos vitimizarmos, fugindo à responsabilidade pelas consequências dos nossos atos. Se escolhermos como bitola a certeza de que a culpa é sempre dos outros, livramo-nos do arrependimento, é verdade, mas o que sobeja de nós não é grande coisa.
Aliás, suspeito que não é por acaso que sentimentos tão universais como este sobrevivem milhões de anos depois de termos evoluído de uma qualquer amiba ancestral. O arrependimento, exatamente porque desinquieta, pode tornar-nos mais espertos, evitando os mesmos erros e, acima de tudo, levando-nos a reparar o mal que causámos. O exercício de reparação não é, contudo, como aqueles tira nódoas mágicos que a publicidade anuncia à hora em que estamos a passar a ferro frente à televisão — temos de aceitar que a marca fica, sem virar o bico ao prego, acusando quem não nos perdoa integralmente de ser o mau da fita.
Mas, esperem, também há os arrependimentos estúpidos, ah, pois há. São aqueles em que nos condenamos por uma decisão idealizando o contexto em que foi tomada. Imagine um tabuleiro de xadrez, com as peças já todas em jogo, e agora imagine que é o cavalo, encurralado por um bispo e uma torre, tendo pela frente dois peões prontos a engoli-lo. Avança duas casas para a frente e uma para o lado, a única opção que lhe permite não morrer. Fez o que podia para sobreviver. E agora, esquecidas as condicionantes, visualizando um campo de batalha vazio, condena-se por aquele salto. Pergunta-se incessantemente porque é que não foi antes para a esquerda, ou deu um passo atrás? Pois, exatamente, porque essa possibilidade não estava em cima da mesa.
É fácil esquecer, também, que cada jogada nossa, condiciona a jogada do adversário que, por sua vez, condiciona de novo a nossa, e que se hoje temos novos dados, só os possuímos porque movemos as peças como as movemos. Ou porque o tempo, de novo o tempo, nos abriu novas perspetivas. Não vale agora acusarmo-nos, pelo que então desconhecíamos. Isso é batota, e não serve para mais do que nos infernizar a vida. E ai, às vezes, precisamos mesmo de ajuda de alguém de fora para nos libertar de uma teia que não nos leva a lado nenhum.