Atual

Crónica Isabel Stilwell. A solidão controlada

Foto: IMDB
24 de maio de 2022 Isabel Stilwell

Finalmente sozinha em casa...

Hesito entre sentar-me ao computador, esticar-me no chão simplesmente a olhar para o teto, ou atacar o monte de livros que há tanto tempo quero acabar de ler. 

Opto por me sentar à secretária. Quero arrumá-la, como quem forra cadernos no primeiro dia de aulas, e ponho-me a afiar os lápis, e a comer o chupa-chupa que encontrei entre as canetas, guardadas na caneca que diz que a jardinagem é mais barata do que a terapia.

Hum, o chupa é bom, de caramelo e limão, não sei qual das minhas netas o deixou aqui, mas agradeço-lhe mentalmente. Tenho uma sensação de liberdade: as próximas horas, os próximos dias, são só meus, e prometo a mim mesma que vou ser capaz de os usar como me apetecer. E agora apetece-me escrever, tiro um prazer incalculável de encher páginas em branco com o que me vai na cabeça.

Pois é, a solidão mata. E não só os velhinhos. Os estudos científicos não deixam dúvidas nenhumas de que as pessoas que se sentem isoladas do mundo têm uma probabilidade muito maior de sofrer de doenças mentais e de morrer mais cedo. E são infinitamente mais infelizes. Porque não têm quem cuide delas, claro, mas sobretudo porque não têm ninguém para quem se queiram cuidar. Dá trabalho cuidarmos de nós mesmos, e é fácil desistir se não nos sentirmos vistos, refletidos nos olhos dos outros, invisíveis. Ninguém quer sofrer desta solidão que corrói por dentro, e rouba sentido à vida. Ponto assente.

Mas já "sofrer" da outra solidão, queremos muito. Abençoada solidão controlada, ou seja, aquela que tem um princípio e um fim inscrito no calendário, a que escolhemos voluntariamente — essa faz bem a tudo. Funciona como uma imensa clareira em que nos libertamos da correria, das obrigações, do ruído permanente, das vozes que não se calam, da necessidade de cumprirmos papéis pré-determinados, de darmos atenção aos outros. É o momento em que percebemos que gostamos da nossa própria companhia, e que nos tornámos artistas a entreter-nos a nós mesmos. Viva!, sabemos brincar sozinhos.

Libertos do colete de forças da rotina, confrontados com o silêncio, num primeiro momento estremecemos, sem saber bem por onde começar, ainda presos à lista de tarefas que supostamente nos cabem cumprir agora que não temos desculpas para as procrastinar, mas aos poucos a mente vai ficando mais clara, e a fonte de pensamentos e ideias novinhas em folha volta a correr. Abre-se um mundo de possibilidades, é só conseguir escolher.

Pertenço a uma geração em que as mulheres nasciam e cresciam numa casa de família cheia de gente, seguiam diretamente para uma "nova" casa de família, a sua, tornando-se rapidamente em mães, "cargo" que com um malabarismo fabuloso acumulavam com uma profissão e uma carreira. Podiam sentir-se psicologicamente sozinhas, isso era bem possível, mas sempre acompanhadas, sem tempo para si — é sempre pelo nosso tempo que começamos a cortar, quando as 24 horas não chegam.

Sei que quando chegar a noite, sobretudo a primeira noite, a minha euforia vai esmorecer um bocadinho, vou trancar a porta da rua com mais voltas da chave, e vai custar-me muito mais tempo a adormecer. Mas que bom é sentir a falta dos outros, perceber como fazem parte de nós, como os amamos tanto e a nossa vida só faz sentido com eles lá dentro. Eu não digo que a solidão controlada faz bem a tudo?

Saiba mais
Atualidade, Discussão, Crónica, Opinião, Isabel Stilwell, Solidão
Leia também

Crónica Isabel Stilwell. Nunca filha dos meus filhos

Não há perigo da vaidade nos subir à cabeça quando temos filhos por perto. Pequenos, médios ou grandes, ainda sob o nosso teto ou apenas de visita, não hesitam em chamar-nos à terra. Ou, mesmo, em pôr o dedo na ferida.

As Mais Lidas