As mulheres de Maria Lamas, “a mais extraordinária portuguesa do século XX”
Tardou demasiado até vir a público o espólio fotográfico de Maria Lamas para o seu inédito livro "As Mulheres do meu País", lançado em fascículos entre 1948 e 1950. Está agora, e até maio, na Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, numa exposição bela e imperdível.
Foto: Maria Lamas29 de janeiro de 2024 às 16:19 Patrícia Barnabé
Mesmo sabendo que o talento feminino tantas vezes peca pela demora e pela consequência, nada justifica que tão pouco se saiba sobre o trabalho de Maria Lamas, ela que "apenas" lutou por um país mais moderno e gentil com as mulheres. Jornalista, escritora, tradutora, pedagoga, e fotógrafa, a sua faceta ainda mais desconhecida, que exerceu durante o Estado Novo, quando, para Salazar, o lugar da mulher deveria cingir-se às tarefas do lar e da família. A maioria "cumpriu-o" obedientemente, e continua a cumprir, de uma forma ou de outra. E mesmo com tanto por fazer na área das mentalidades, se hoje chegámos aqui foi porque alguém deu o peito às balas.
Maria Lamas foi "uma mulher genial, a mais extraordinária e notável portuguesa do século XX", não se cansa de dizer o professor Jorge Calado, curador desta exposição, e repete-o vezes sem conta ao longo da visita guiada. "Ativista, feminista e sufragista (palavras que a própria detestaria, porque estava acima disso), foi uma lutadora pela paz durante a Guerra Fria", diz. "Foi uma grande mulher que libertou as outras mulheres, como cidadãs, e sofreu bastante, por isso."
Organiza, em 1937, nos salões d’Século, uma exposição de Arraiolos executados pelas mulheres presas na cadeia das Mónicas; em 45, juntou-se ao movimento unitário democrático juvenil e, um ano depois, dirigiu o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Dois anos depois, organizou a exposição "Livros escritos por mulheres", na Sociedade de Belas Artes, e em 1953 foi eleita Membro do Conselho Mundial da Paz, em Budapeste. Em 57 participa na Conferência do Conselho Mundial para a Paz, no Sri Lanka, e na Conferência Mundial contra as Bombas A e H, no Japão, visitando Hiroxima. Chegou a ir à República Popular da China, recebida pelo primeiro-ministro Zhau Enlai.
Foi presa três vezes, uma delas durante sete meses e meio, em Caxias (depois de ter visitado a União Soviética), e viveu exilada um ano e meio na Madeira para, em 1962, emigrar para Paris, onde viveu o maio de 68. Só regressa a Portugal em 69, na Primavera Marcelista, para viver a alegria do 25 de Abril. "Às vezes perguntam-me: 'Não acha que foi antes Amália a mulher portuguesa mais notável?' Amália? Não, Amália foi uma diva", não uma defensora dos Direitos Humanos.
Nascida em 1893, faleceu em 1983, Maria Lamas viveu num Portugal cinzento e atrasado do resto da Europa, onde as mulheres eram as mais sacrificadas, pobres e abandonadas dentro de um povo pobre e abandonado pela ditadura fascista.
Esta exposição é o olhar da jornalista sobre estas mulheres, numa escolha de 67 imagens que acompanharam a sua obra mais marcante, As mulheres do meu país, 470 páginas com centenas de fotografias, distribuídas por fascículos para melhor escaparem à censura.
"Quando vi o livro pela primeira vez, tinha 10, 12 anos", conta o curador, só anos mais tarde, "já no século XXI, é que olho para o livro e reparo que ela foi a autora de cerca de 150 fotografias, e são extraordinariamente modernas. Para ela, não havia o momento decisivo da fotografia, mas a mulher dona do seu corpo e do seu trabalho, e é essa frontalidade que transparece nestas imagens".
Maria Lamas usou um "caixote" da Kodak, uma máquina que lhe foi emprestada, em 1942, pelo seu genro, que trabalhava na marca. "Era só premir o botão, sem focagem, sem flash, por isso não vemos imagens de interiores. E depois ia para a marca revelar". Diretora da revista Modas e Bordados, é aqui evidente o seu olhar editorial treinado, o amor aos pormenores e à composição. Foi ela que programou e investigou as zonas do país a fotografar, com um olhar que ultrapassa o antropológico, escreveu os textos e criou uma "ligação entre a Fotografia e a Literatura". "Ela nunca tinha fotografado, mas estava habituada a combinar textos e fotografias, por isso algumas das páginas do seu livro são obras-primas extraordinárias", comenta o curador. Ainda assim, o seu trabalho, teve muito pouco eco durante o regime, para quem Maria Lamas era, naturalmente, persona non grata. Foi exibido na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, e apenas o jornal Primeiro de Janeiro, do Porto, lhe fez uma entrevista.
São, na sua esmagadora maioria, provas originais exíguas (têm entre 8 x 6 cm e 14 x 18 cm), mas que nos detêm nos detalhes, imaginando a vida destas mulheres, algumas descalças, que também fomos nós: as camponesas, a trabalhar, às vezes ajudadas por animais, jovens a carregar água durante a construção dos caminhos de ferro e a carregar pedras na construção de uma estrada; a jovem leiteira viúva e a ceifeira do arroz, a jovem "formosa, mas não segura" [como no poema de Camões] do Covão da Ponte; a mulher rodeada de filhos ou várias mulheres juntas, também a relaxar. Vemo-las na praia de Ovar ou na feira das cebolas de Aveiro, as raparigas do Bulhão ou do mercado de Peniche, e as que vendem tremoços sentadas no chão, as "gafanhotas" que tratavam da seca do bacalhau. "Maria Lamas está a passar a mensagem: 'Mulheres de Portugal, uni-vos!" É evidente "a solidariedade feminina que proclamava, enquanto respeitava a individualidade de cada mulher. Penso que só não pôs o nome de cada uma nas legendas por pudor." É evidente, e enternecedor, o olhar sobre a Moda, "a forma como estas mulheres se vestiam, por exemplo, as elegantes tricanas de Aveiro ou Coimbra, ou o estilo das algarvias na incipiente revolução industrial. Dantes as pessoas não saiam do lugar onde nasciam, ainda mais as jovens raparigas, estas imagens espelham isso." Às vezes aparece um ou outro homem, "mas nunca é o centro da fotografia."
Foto: Maria Lamas
Há um recanto expositivo, sugestivamente pintado num vermelho telúrico, que homenageia Maria Lamas, e onde vemos alguns retratos seus, um deles pintado por Júlio Pomar, em 1954, e um busto em gesso esculpido por Júlio de Sousa, em 1929. Numa vitrina está o Mulheres do meu País, em livro e em fascículos, livros infantis que traduziu, poesia e ficção, e alguns trabalhos de jornalismo. E o seu primeiro livro, onde assina como Maria Lamas, "já separada, deixou de usar pseudónimos (só acabou o Secundário depois de casar, aos 17 anos, e foi mãe logo aos 18)", explica o curador. "Amava muito as suas três filhas [uma delas ficou com o seu espólio], a emoção era muito importante para ela, dedica-lhe livros", acrescenta. Também vemos um retrato seu com Zhau Enlai, quando visitou a China, os seus álbuns de família, documentos e notas pessoais, e o seu colar predilecto, "que usava sempre. É pena não se perceber bem aqui a sua cor, as pedras são vermelho escuro."
Também estão expostos originais de outros fotógrafos que contribuíram para As Mulheres do meu País, como é o caso de Lyon de Castro, Artur Pastor, Domingos Alvão, Maria Mendonça, Adelino de Castro e Júlio Vidal. É impossível não encontrar semelhanças, neste conjunto de imagens, com o período áureo da fotografia americana nascida, nos anos 30, da FSA, a Farm Security Administration fundada no âmbito das políticas New Deal do presidente Franklin Roosevelt, em 1935. Com o propósito de melhorar a vida da população rural americana, depois da Grande Depressão, que ficou na miséria, vários fotógrafos foram convidados a percorrer o país e a retratar as vidas reais, principalmente os lavradores no Midwest, que era o celeiro da América. Deste exercício, saíram algumas das mais icónicas imagens da época, que viriam a ser referências, de Walker Evans, Dorothea Lange, Carl Mydans ou Jack Delano, entre tantos outros. "Quem vai dar conhecimento desta miséria são os artistas", com belíssimas obras de neo-realismo: "Da mesma forma, Maria Lamas vai mostrar a condição das mulheres em Portugal. Ela não conhecia a fotografia americana, por isso isto é único na história da fotografia portuguesa. Ela perguntou-se apenas: onde vivem, dormem, se divertem as mulheres portuguesas? Também têm sítios para relaxar?"
Cumpriram-se, em 2022,75 anos desde a publicação de Mulheres do meu País e esta é a primeira exposição individual de Maria Lamas, o que parece inacreditável. Também escolhidas por Jorge Calado, oito destas imagens já estiveram na Gulbenkian de Paris, em 2009, na exposição Au féminin - Women Photographing Women 1849–2009, e outras nove representaram a Península Ibérica, entre outros dez fotógrafos, numa grande retrospectiva da fotografia mundial do século XX, a Dubai Photo Exhibition 2016 − A global perspective in photograph. Mas o interesse do curador por Maria Lamas veio por via familiar, são ambos naturais de Torres Novas. O professor recorda que quando estudou Engenharia Química no Técnico, em 1956, o seu departamento tinha mais mulheres professoras catedráticas do que homens, o que o impressionou, por isso, ficou atento à obra das mulheres artistas: "Ainda não havia esta 'mania' mundial, que devia ter existido sempre, por isso as excepções devem sempre valorizar-se."
As Mulheres de Maria Lamas, curadoria de Jorge Calado, átrio da Biblioteca de Arte Gulbenkian, de 26 janeiro a 28 maio 2024, 10h-18h, entrada livre.