Ana Rodrigues Oliveira: "A História foi sempre contada pela metade: a metade masculina"
A História de Portugal está cheia de mulheres poderosas e aguerridas. Mulheres que não tinham medo de ir à luta para atingir os seus fins. Muitas foram diabolizadas e detestadas por não corresponderem ao padrão de mulher dócil. Esta é a História de 34 dessas mulheres e do país que ajudaram a moldar.
Foto: DR07 de junho de 2024 às 16:30 Madalena Haderer
No fim de tarde em que decorreu a apresentação do livro Portugal, Uma História no Feminino, a fila para a encher a sala começou muito antes da hora. Pouco comum para um lançamento de um livro sobre História de Portugal. Depressa se tornou óbvio que 80% daquelas pessoas – quase todas com mais de 60 – eram alunos da autora. Ana Rodrigues Oliveira é doutorada em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem dedicado o seu trabalho de investigação à História Medieval, em particular aos domínios da História Cultural e das Mentalidades, em especial nas áreas da Mulher, da Criança e do Quotidiano. Para além de diversos trabalhos publicados, já deu aulas em liceus e faculdades, hoje dá aulas a adultos – estes que aguardam impacientemente a abertura de portas e que olham com desconfiança a pessoa que parece ter-lhes passado à frente na fila e que está agora à conversa com a autora – nas Juntas de Freguesia de Benfica e do Lumiar, onde ensina História de Portugal, História da Europa e História de Arte.
Numa conversa breve com a autora, antes da apresentação do livro, ficámos a saber, entre outras coisas, que foi muito por causa destes alunos que Ana Rodrigues Oliveira decidiu escrever este livro. Porquê? É que eles, como quase toda a gente, sabem de cor os nomes dos reis de Portugal, mas, tirando as Donas Marias, não sabem os nomes das rainhas. Estava dado o pontapé de saída para que a autora escrevesse uma História de Portugal totalmente baseada nas mulheres. Mulheres aguerridas, mulheres de fibra, destemidas, que procuram o poder e que, em muitos casos, não olham a meios para atingir os fins. Personagens a quem a autora chama "mulheres-homens", uma expressão que talvez cause alguns anti-corpos – não é por acaso que a autora vai avisando que é "politicamente incorrecta" –, mas que transmite uma imagem imediata das mulheres que aqui vamos encontrar. Mulheres como Dona Teresa de Leão e Castela, Dona Leonor Teles, Dona Carlota Joaquina, mas também Carolina Beatriz Ângelo, Maria Lamas, Maria Archer e Maria de Lourdes Pintasilgo. Mulheres a quem vamos dando a mão e que nos levam numa viagem por Portugal desde o século XII até ao século XX.
Como é que lhe surgiu a inspiração para escrever este livro?
A inspiração surgiu de duas formas. Por um lado, há muito que escrevo sobre as mulheres. Já publiquei vários livros sobre as mulheres, sobre as rainhas. Por outro, agora dou aulas a alunos adultos e se há coisa que me irrita é eles não saberem o nome das rainhas. Tal e qual os meninos, papagueiam os nomes todos dos reis e quando lhes pergunto os nomes das rainhas, engasgam-se e não sabem. Foi aí que comecei a pensar que seria bom fazer uma história das rainhas. Esta foi a ideia inicial, mas depois lembrei-me que podia contar a história de Portugal através da perspectiva feminina, porque conhecemos a história de Portugal, através dos homens, dos feitos, dos heróis, das batalhas, das guerras, daqueles acontecimentos políticos todos importantes. E esquecemos que, por trás disso tudo, também há mulheres. E há mulheres que tiveram poder, que exerceram o poder, e que de uma maneira geral são muito esquecidas pela História.
Quem ler o livro vai encontrar a história de Portugal desde o aparecimento do país, no século XII, até ao século XX, porque, para além das rainhas, extrapolei para mulheres republicanas, para mulheres anarquistas, para mulheres a favor do Estado Novo, para mulheres contra o Estado Novo, para mulheres que foram presas, que sofreram a repressão, que sofreram a censura, até chegar precisamente à Maria de Lourdes Pintasilgo, que foi a nossa primeira e única primeira-ministra, até agora.
E tem algum episódio ou alguma mulher em particular que a tenha surpreendido ou que guarde na memória?
Sou politicamente incorreta, por isso, gosto particularmente das mulheres que são mais mal vistas pela História. Gosto da Dona Teresa de Leão e Castela, a mãe do D. Afonso Henriques. Gosto da Leonor Teles, que é uma mulher muito mal vista. Gosto da Carlota Joaquina, que é outra mulher muito mal vista. São mulheres que não desistiram. Independentemente das suas atitudes serem mais ou menos corretas, são mulheres que lutaram por aquilo em que acreditavam. E isso, para mim, tem muito valor. Não foram mulheres amorfas, não foram mulheres passivas, não foram mulheres dóceis. Pelo contrário, foram mulheres aguerridas e que, contra tudo e contra todos, lutaram por aquilo que queriam e por aquilo em que acreditavam.
São todas um bocadinho assim. A ideia foi, precisamente, mostrar que na sombra dos homens houve mulheres que foram tão ou mais importantes do que eles. Temos muitas mulheres que fizeram acordos, que fizeram tratados, que tiveram interesses políticos, que governaram. E, normalmente, está tudo muito na sombra da história. Vá-se lá saber porquê…
Ia perguntar-lhe isso mesmo. Na sua opinião, por que é que estas mulheres são esquecidas, não são faladas?
Porque, de uma maneira geral, a História foi sempre escrita por homens. E mesmo o que vislumbramos na escrita deles sobre mulheres, é visto sob uma perspectiva masculina e é visto de acordo com os padrões masculinos. Por isso é que a Leonor Teles é tão mal vista, por isso é que a Dona Teresa é tão mal vista. Precisamente porque tomaram atitudes dignas de homens. E, por isso mesmo, foram muito mal consideradas pelos cronistas que escreveram a História. Só que a História foi sempre contada pela metade: a metade masculina. A metade feminina ficou nas raias do esquecimento. E é por isso que decidi trazê-las à luz do dia.
Foto: DR
O seu percurso académico está muito direcionado para trazer as mulheres e as crianças para as páginas da História. Por que é que escolheu este caminho?
Porque são as esquecidas da História – as mulheres e as crianças. Estamos sempre a ouvir dizer que só a partir dos séculos XVII e XVIII é que as pessoas se começaram a preocupar com a criança, que só então é que a criança teve estatuto. Não é verdade. A minha tese de doutoramento foi, precisamente, provar que isso não era verdade. Já na Idade Média havia uma preocupação muito grande com a criança. Havia tratados médicos de cuidados com a criança, de recomendações à criança. Os pais sentiam quando morriam os filhos, ao contrário daquilo que se diz: "Ah, eles eram tantos que os pais nem davam por isso. Mais ou menos um." Não é verdade. Vê-se uma preocupação muito grande com a saúde dos filhos, com a doença dos filhos, com a morte dos filhos. Isto já na Idade Média, quando se dizia que morrer um filho era o mesmo que morrer um cão ou um gato.
Com o estudo que fez ao longo dos séculos notou uma evolução positiva na vida das mulheres e das crianças?
De uma maneira geral sim. Com o avançar dos séculos há uma maior preponderância feminina. Tirando aquelas que foram mulheres-homens, logo as primeiras, a Leonor Teles e a Dona Teresa. O que é facto é que depois se nota, até mesmo a nível da relação entre marido e mulher, o pedir ajuda, o pedir o conselho da mulher. Há muitos casais de rei e rainha que funcionam muito em simbiose.
E o que é que essas mulheres-homens tinham de diferente? Eram as condições financeiras que lhes permitiam assumir um determinado estuto? Era a personalidade?
Era a personalidade. Eram teimosas. Lutavam por aquilo que queriam. Queriam poder. E como os maridos não lhes davam, elas lutavam por isso. E engendraram imensos esquemas para conseguirem ter poder. Eram mulheres-homens, sem dúvida nenhuma. Eram mulheres com uma personalidade masculina. Que não se deixavam domar. Que não se tornavam submissas. E que lutavam por aquilo que queriam. E é por isso que eu gosto delas.
Há alguma coisa que eu gostasse de acrescentar?
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Só gostava de acrescentar que vale a pena ler o livro porque se vai aprender a História de Portugal de outro ponto de vista. Não é aquilo que as pessoas estão habituadas a ler. Acho que é, realmente, um livro interessante. Com uma perspectiva inovadora. De vez em quando, a História deve ser reinterpretada. Não devemos continuar a ensinar, indefinidamente, a mesma História que aprendemos na escola. E que os nossos pais e os nossos avós aprenderam. A História tem de ser reinterpretada. E ao ser reinterpretada, temos de trazer as minorias à luz do dia.