O que mudou para as mulheres portuguesas, em 35 anos?
Num momento fundamental para a política portuguesa, e a propósito do aniversário da Máxima - e do Dia da Mulher - recordamos as conversas que Maria João Martins teve com Eduarda Abbondanza, Joana Vasconcelos, Julieta Monginho, Patrícia Reis, Sara Falcão Casaca e Susana Peralta.

Portugal e o mundo eram muito diferentes na manhã em que o primeiro número da Máxima chegou às bancas. De outubro de 1988 até hoje muita coisa mudou nas vidas, nas aspirações e nos hábitos das portuguesas, mas será que mudou o mais importante? Foi o que perguntámos a estas mulheres.
Em outubro de 1988, os ventos eram de mudança, em Portugal e no mundo. Na União Soviética, Mikhail Gorbatchev assumia o poder e, pouco depois, a palavra Perestroika era já sinónimo de sonho e liberdade na parte mais oriental do continente europeu, enquanto no Chile crescia, nas ruas, a contestação à ditadura feroz de Augusto Pinochet. Mas este era também o tempo em que Michael Jackson e Madonna dominavam a música pop-rock, enquanto Freddie Mercury e a soprano espanhola Montserrat Caballé pulverizavam recordes de vendas com o inesperado dueto, Barcelona. O Último Imperador, de Bernardo Bertolucci, conquistou o Óscar de Melhor Filme (e mais oito estatuetas) e o egípcio Naguib Mahfouz conquistou o Nobel da Literatura.

Em Portugal, com os escombros ainda fumegantes do incêndio do Chiado, a sociedade vivia as "dores" do crescimento em Democracia, regime que chegara numa manhã de abril, 14 anos antes. Em 1988, Lisboa e Porto descobriam as alegrias de uma vida noturna em espaços como o Frágil ou o Aniki-Bobó e a Moda em novos espaços comerciais como o Shopping Center das Amoreiras, inaugurado em 1985, ou em espaços de autor no Bairro Alto e no Chiado.
Para acompanhar esses novos hábitos e anseios, surgiram, em simultâneo, três novas revistas femininas: Máxima, Elle e Marie Claire. Traziam uma nova maneira de fazer jornalismo de Moda, mas iam muito além disso, com a atenção aos comportamentos sociais, emocionais e sexuais, mas também aos novos hábitos de consumo cultural. Nesse primeiro número, em outubro de 1988, os temas de capa da Máxima estavam relacionados com a vida amorosa e emocional: "Virgindade – Mudam-se os tempos, mudam-se as idades" ou "Crise no Casamento – Quando o Marido deixa de ouvir a mulher". As figuras em destaque eram Miguel Esteves Cardoso, que falava de mulheres e paixões, e a modelo Xana Nunes (então Xana Norton de Matos), que foi o primeiro rosto da nova revista.
Para assinalar os 35 anos desse primeiro número, perguntámos a várias figuras de destaque, em várias áreas da vida pública, o que mudou nas vidas das mulheres portuguesas neste período de tempo. As respostas são tão otimistas quanto realistas.

Um futuro por construir
Sara Falcão Casaca


Socióloga, professora catedrática do Instituto Superior de Economia e Gestão, integra o conselho consultivo da CIG – Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.
A vida das mulheres em Portugal mudou consideravelmente no contexto do Portugal democrático. Apesar de todos os avanços legislativos que vão aprofundando as condições para a igualdade entre mulheres e homens no plano formal, estamos ainda muito distantes da igualdade substantiva, consubstanciada nas diversas práticas sociais do quotidiano. Nestas três últimas décadas, fica evidente o papel emancipador da educação e o notável investimento das mulheres neste domínio, a importância da independência económica e a centralidade do seu contributo para o desenvolvimento económico e social do País. Ainda assim, a especialização marcada pelos estereótipos de género subsiste na "escolha" das opções educativas, de que é exemplo o clássico afastamento das raparigas das áreas mais tecnológicas e o dos rapazes das áreas que se relacionam com o cuidado. O trabalho que desenvolvem colhe um valor inferior; auferem remunerações inferiores às dos homens, em circunstâncias laborais iguais ou equivalentes. São mais vulneráveis à precariedade e à pobreza. A esperança média de vida parece estar a seu favor, mas a verdade é que a média de anos de vida saudável é menor que as dos pares do sexo masculino. Falta-lhes tempo, devorado pelas rotinas. São elas que continuam a assegurar a maioria das tarefas domésticas. E são ainda as principais cuidadoras. Não fora o impulso da imposição legal de medidas de ação positiva (vulgo "quotas") e praticamente não se vislumbrariam entre os rostos dos incumbentes de cargos de poder. Certo é que a invisibilidade ainda lhes toca, nos mais diversos domínios. Continuam a ser-lhes infligidas várias manifestações de violência – seja na rua, na escola, no local de trabalho, nas redes sociais ou no contexto de relações de intimidade. Há, portanto, todo um outro futuro ainda por construir.
Mudanças legislativas, porém...

Julieta Monginho
Escritora e magistrada do Ministério Público


A legislação, nomeadamente a penal, foi, quanto a mim, o fator mais evidente da mudança da situação das mulheres em Portugal nos últimos anos. Em 1995, a revisão do Código Penal de 1982 permitiu que o crime de violência doméstica abrangesse um número mais vasto – e mais consentâneo com a realidade – de casos, e que os crimes de natureza sexual fossem, finalmente, considerados crimes contra as pessoas. A despenalização da interrupção voluntária da gravidez, em 2007, e o aperfeiçoamento da legislação nos outros domínios, com vista à concretização do princípio da não discriminação em função do género (nomeadamente o decorrente da aplicação da Convenção de Istambul, de 2014), completaram o quadro legal, que é hoje incomparavelmente mais ajustado às necessidades de prevenção da prática de crimes cujas vítimas são principalmente mulheres e assegura com mais proficiência os direitos reprodutivos, bem como à autodeterminação sexual e à integridade física e emocional. Se a produção legislativa reflete um consenso alargado provindo, por via representativa, da sociedade, pode, porém, não coincidir com a cultura dominante, arreigada em profundos preconceitos e outros obstáculos à plena concretização do princípio da não discriminação. Basta pensarmos em duas situações comuns para percebermos o tanto que mudou e o tanto que há por mudar: uma entrevista de emprego, o dia a dia de uma empregada no setor das limpezas ou de uma cuidadora informal. Sim, o quadro legal português assegura a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Sim, a evolução do estatuto das mulheres na sociedade tem permitido que, cada vez em maior número, acedam a profissões e cargos que anteriormente lhes estavam vedados. Todavia, tanto no acesso como nas opções de percursos profissionais, a mudança ao longo de 35 anos tem sido muito insuficiente. Às mulheres cabe ainda maioritariamente a execução das tarefas domésticas e de cuidado, o que se acrescenta ao cumprimento dos parâmetros de perfeição exigidos em todos os planos da vivência quotidiana. Será que nunca mais descansaremos? Por enquanto ainda não podemos. Ainda não chegou a hora do repouso da guerreira.
Um percurso de liberdade
Patrícia Reis

Escritora e jornalista

Aos 18 anos eu não sabia que era possível dizer que não a algumas coisas. Tinha medo, queria pertencer, agradar. O meu feminismo reivindicativo começou com a minha vida profissional e, ao fim de 35 anos, estou instalada numa vivência que é totalmente diversa daquela que tive no início da vida adulta. Este percurso, estas décadas, permitiram-me afirmar o que quero, do que gosto e ainda o faço. Sem medos, sem vergonhas, sem necessidade de validação. Diria que esta é uma mudança quase radical e que conseguimos observar na sociedade portuguesa, no percurso de liberdade que as mulheres queriam – querem trilhar. O jornalismo contribuiu muito para a mudança de comportamentos. Muitas vezes, diminui-se a importância do jornalismo feito nas revistas femininas. É um erro. Se observarmos 35 anos de edições da revista Máxima somos confrontados com um Portugal menos conservador, mais cosmopolita, aberto ao mundo e para o mundo.

As mulheres estão mais conscientes do seu valor
Eduarda AbbondanzaDiretora da Associação Moda Lisboa


Quando penso em 1988, o ano em que se publicou o primeiro número da Máxima, concluo que as mulheres se sentem mais empoderadas e têm mais paridade no trabalho e na vida familiar. Isto, se falarmos de Portugal e do mundo ocidental porque, como sabemos, o mesmo não acontece noutros pontos do globo e noutras civilizações. Inclusive entre nós, muita coisa está ainda por conquistar porque é público e notório que, no mundo empresarial, as mulheres não conseguem aceder a lugares de topo em igualdade de circunstâncias com os seus colegas homens. Por mais que se esforcem. Mas o que mudou realmente foi a perceção do seu valor na sociedade, que as mulheres hoje têm e que não tinham há 35 anos. Também creio que se ganhou um respeito novo pelas mulheres que optam por ficar em casa, com a família, em detrimento da carreira. Se essa for a sua escolha, e não uma imposição de outros, que direito temos nós de as menosprezar? Mas são atitudes que fazem parte do crescimento da vida democrática e o crescimento, como sabemos, comporta dores. Andámos muito desde o 25 de abril, mas meio século é muito pouco para mudar as mentalidades.
Uma visibilidade crescente
Joana Vasconcelos

Artista plástica

Quando eu comecei a encarar as Artes Plásticas de uma forma profissional, as mulheres ainda estavam pouco inseridas nos mecanismos do mercado da arte. Hoje, as coisas já não se passam assim, embora ainda haja muito para fazer ao nível da visibilidade e do valor dado ao seu trabalho, mas creio que estamos no bom caminho como se vê não apenas pelo número crescente de mulheres curadoras em grandes eventos e instituições internacionais.

Anos de conquistas
Susana Peralta
Economista e professora

Podemos dizer que, desde 1988, muito foi conquistado pelas mulheres portuguesas. Em termos legislativos, a mudança mais importante foi, sem qualquer dúvida, a despenalização da interrupção voluntária de gravidez. Antes, já tinham existido outras medidas importantes como o direito de voto e a lei do divórcio, que permitiu que as mulheres se libertassem de relações frequentemente abusivas. Se o podiam fazer ou não, por questões económicas, é outra coisa… Deste ponto de vista, importa salientar que, nestes 35 anos, as mulheres portuguesas têm conseguido melhorar consideravelmente a sua situação, acedendo cada vez mais ao Ensino Superior, a ponto de hoje serem a maioria dos estudantes inscritos. Graças a liberalização dos meios contracetivos também estão cada vez mais integradas no mercado de trabalho. A introdução de quotas na política e nas empresas também foi importante para que a representatividade feminina tenha crescido muito. Por outro lado, nunca é demais sublinhar a importância de a violência doméstica, consentida durante tantos anos, ter sido criminalizada. Mas ainda há um longo caminho a percorrer: basta pensar que Portugal só teve uma primeira-ministra (Maria de Lurdes Pintasilgo), que, aliás, se intitulava primeiro-ministro. E não há perspetivas de voltarmos a ter uma segunda mulher nessas funções, pelo menos nos próximos anos.
Gisela Casimiro
Ativista e escritora

Que mulheres? Muito mudou, mas para quem? As limitações e imposições de classe continuam a afetar sobretudo as mulheres não brancas. Atualmente, tão importante como o que mudou, é o que se vê a mudar de novo, a retroceder, direitos que se arriscam a ser tirados, censura em tempos de democracia. Quando vemos a lei do aborto, por exemplo, ainda existem muitos elementos que a sabotam e limitam. Gostaria que as leis dos direitos reprodutivos fossem mais generosas e realistas. Gostaria muito que houvesse igualdade salarial, que o trabalho doméstico fosse reconhecido e as pessoas protegidas. Penso que devemos estar vigilantes e solidárias.
*Artigo originalmente publicado na revista que celebra os 35º anos da Máxima.
