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A princesa culta que se tornou a primeira imperatriz do Brasil

A arquiduquesa austríaca Leopoldina de Habsburgo passou à História como vítima dum casamento infeliz com D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal. Mas foi também uma das responsáveis pela independência do Brasil.

Leopoldine Caroline Josepha von Habsburg-Lothringen e o seu marido D. Pedro I
Leopoldine Caroline Josepha von Habsburg-Lothringen e o seu marido D. Pedro I Foto: Getty Images/ Domínio Público
21 de novembro de 2022 Maria João Martins

Se mais não tivesse feito (e fez), a arquiduquesa austríaca Leopoldine Caroline Josepha von Habsburg-Lothringen ficaria para a História como a primeira princesa de uma coroa europeia a atravessar o Oceano Atlântico para casar com o primogénito de outra dinastia, deslocada para outro continente por força das guerras napoleónicas. Sobrinha-neta da infeliz Maria Antonieta (e como tal bisneta da grande imperatriz da Áustria, Maria Teresa), Leopoldine nasceu no Palácio de Hofburg, em Viena, a 22 de janeiro de 1797, filha do imperador Francisco I da Áustria e de sua segunda esposa, a princesa Maria Teresa de Nápoles e Sicília. Também foi cunhada do imperador Napoleão Bonaparte, casado em segundas núpcias com a sua irmã mais velha, Maria Luísa.

Leopoldina e a irmã mais velha, Maria Luísa
Leopoldina e a irmã mais velha, Maria Luísa Foto: Domínio Público

Como era tradição na casa de Habsburgo, a educação que a arquiduquesa recebera na infância e adolescência era eclética e ampla, de nível cultural superior e formação política consistente. Tal educação dos pequenos príncipes e princesas baseava-se na política educacional iniciada por seu avô Leopoldo II que acreditava "que as crianças deveriam ser desde cedo inspiradas a ter qualidades elevadas, como humanidade, compaixão e desejo de fazer o povo feliz", como escreve o historiador Paulo Rezzutti, autor do livro D. Leopoldina — A história não contada: A mulher que arquitetou a Independência do Brasil. Com uma profunda fé católica e uma sólida formação científica e cultural – que incluía política internacional e noções de governo –, a arquiduquesa fora preparada desde cedo para reinar. Mas é também considerada por muitos historiadores como uma das principais dinamizadoras do processo de independência do Brasil ocorrido entre 1821 e 1822. O historiador Paulo Rezzutti, autor do livro D. Leopoldina — A História não Contada: a mulher que Arquitetou a Independência do Brasil, sustenta que foi em grande parte graças a ela que o país se tornou uma nação independente e una, ao contrário do que acontecera na América espanhola, que se dividiu em dezenas de novos Estados. Segundo ele, a mulher de D. Pedro "abraçou o Brasil como seu país, os brasileiros como o seu povo e a Independência como a sua causa".

'D. Leopoldina - A história não contada: A mulher que arquitetou a Independência do Brasil', de Marsilio Cassotti (Manuscrito)
'D. Leopoldina - A história não contada: A mulher que arquitetou a Independência do Brasil', de Marsilio Cassotti (Manuscrito) Foto: D.R

Uma mulher de ação

Leopoldine (ou Leopoldina, como ficaria para a História depois de casar com D. Pedro) ficou órfã de mãe aos 10 anos. Um ano depois, como era timbre nas casas reais europeias, o seu pai casar-se-ia novamente com aquela que a jovem descreveria como a pessoa mais importante de sua vida, Maria Luísa de Áustria-Este. Musa e amiga pessoal do poeta Goëthe, ela foi responsável pela formação intelectual da enteada, desenvolvendo na jovem o gosto pela literatura, pela observação da natureza pela música de Joseph Haydn e de Beethoven. Não tinha filhos seus, adotara de bom grado os da antecessora, que não tardaram a dar-lhe o tratamento de "mãe"... Leopoldina teria uma infância marcada pela exigência nos estudos, pela diversidade dos estímulos culturais diversos e também por uma Europa posta a ferro e fogo pela política expansionista de Napoleão.

O seu programa de estudos incluía disciplinas como alemão, francês, inglês, italiano, dança, desenho, pintura, história, geografia e música, matemática (aritmética e geometria), literatura, física, canto e trabalhos manuais. Desde cedo, Leopoldina mostrou maior inclinação para as disciplinas de ciências naturais, interessando-se principalmente por botânica e mineralogia. Do pai, herdou o gosto pelo colecionismo: criou importantes acervos de moedas, plantas, flores, minerais e conchas. Quando o acordo para o seu casamento com o primogénito de D. João VI e Carlota Joaquina foi assinado, aprendeu Português com uma rapidez inusitada nas muitas princesas europeias que, por via matrimonial, se tornaram Rainhas de Portugal.

Maria Leopoldina na ilha da Madeira (autor desconhecido, 1817)
Maria Leopoldina na ilha da Madeira (autor desconhecido, 1817) Foto: Acervo/Museu Histórico Nacional

Com a família real portuguesa no Rio de Janeiro desde 1808, na sequência das invasões francesas, Leopoldina embarcou em Livorno, Itália, na esquadra lusa composta pelas naus D. João VI e São Sebastião. Com uma bagagem de princesa (40 caixas da altura de um homem contendo o enxoval, livros, as suas coleções e presentes para a futura família) e numerosa comitiva, enfrentou 86 dias de travessia nas águas do Atlântico. Já no Rio, tornar-se-ia uma auxiliar preciosa para o marido nos desafios que lhe foram colocados, para além de lhe ter dado uma vasta prole em que se incluíram a nossa rainha Dona Maria II e o futuro Imperador do Brasil, D. Pedro II. Ele, homem de personalidade instável, violenta e com uma educação rudimentar, raramente lhe retribuiu a lealdade e dedicação como devia. 

Leopoldina tornar-se-ia crucial nos acontecimentos que conduziram à proclamação da independência do Brasil, consubstanciada no grito do Ipiranga. Em 1822, com D. João VI já em Portugal, onde a revolução liberal de 1820 impusera a monarquia constitucional (num processo que sofreria duros e trágicos reveses nos anos seguintes) algumas províncias brasileiras, como São Paulo, ameaçavam entrar em guerra contra o Príncipe-Regente, D. Pedro. Numa tentativa de pôr termo à rebelião, este viaja para o local, deixando Leopoldina como regente interina. É também nesse momento que D. João VI, consciente de que o seu filho estava cada vez mais próximo dos independentistas, exige que D. Pedro volte imediatamente a Lisboa. Perante isto, a 2 de setembro de 1822, à frente do Conselho de Estado, a princesa regente ouviu calmamente a opinião dos ministros (um momento representado em quadro pela pintora Georgina de Albuquerque) e envia ao marido uma carta contendo a profética frase: "O Brasil vos quer como monarca. Com vosso apoio ou sem vosso apoio ele fará a sua separação. O pomo está maduro, colhe-o já, senão apodrece." Cinco dias depois, nas margens do Ipiranga ouviu-se o grito: "Independência ou morte."

José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos mentores da Independência do Brasil
José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos mentores da Independência do Brasil Foto: Domínio Público

Depois disso, Leopoldina empenhou-se a fundo no reconhecimento da autonomia do novo país pelas cortes europeias, escrevendo cartas ao pai, imperador da Áustria, e ao sogro, rei de Portugal. Boa parte do empenho que punha na causa pública devia-se ao terror que a imperatriz tinha às revoluções populares, já que a sua infância fora assombrada pelos fantasmas da Revolução Francesa e do trágico final da sua tia-avó, Maria Antonieta.

Embora o liberalismo e a monarquia parlamentar fossem conceitos que a repugnassem (crescera na Áustria do Chanceler Metternich, paladino do absolutismo), Leopoldina procurou formas de acabar com o trabalho escravo, que predominava no Brasil. Numa tentativa de mudar este paradigma secular, a imperatriz incentivou a imigração europeia para o país, nomeadamente de trabalhadores suíços e alemães. A importância e relevância da ação da princesa em terras brasileiras passou também pela importante missão científica e artística que trouxe da Europa. Como a princesa tinha grande interesse por Botânica e Geologia, acompanharam-na para o Brasil dois cientistas alemães: o botânico Von Martius e o zoólogo Von Spix, nomes conhecidos das ciências naturais do século XIX, além do pintor viajante Thomas Ender. A pesquisa dessa missão resultou nas obras Viagem pelo Brasil e Flora Brasiliensis, um compêndio de aproximadamente 20 mil páginas com classificação e ilustração de milhares de espécies de plantas nativas. Juntos, os cientistas percorreram mais de 10 mil quilómetros do Rio de Janeiro até às fronteiras com Peru e Colômbia.

Leopoldina Carolina Josefa von Habsburg-Lothringen
Leopoldina Carolina Josefa von Habsburg-Lothringen Foto: Biblioteca Nacional de Portugal

Vítima de violência doméstica?

O amor, ou a atração, não eram convidadas assíduas nos casamentos entre príncipes na Europa do Romantismo (a exceção será talvez a união da rainha Vitória com o príncipe Alberto) mas Leopoldina, na correspondência que envia à família, mostra-se muito agradada com o seu príncipe. Só que D. Pedro colecionava amantes como a sua mulher colecionava conchas da praia. Leopoldina sofria mas resignava-se, lamentando os deslumbramentos dele com toda e qualquer novidade que lhe passasse pela frente. No entanto, quando o Imperador se tomou de amores pela paulistana Domitilia dos Santos e a exibiu na corte, Leopoldina entrou em desespero.

A filha que teve com Domitila – na mesma época em que a imperatriz dava à luz outra criança – recebeu do pai o nome de Isabel Maria de Alcântara e o título de duquesa de Goiás. Em carta à irmã Maria Luísa, Maria Leopoldina desabafa, atribuindo todas as culpas à "outra". "O monstro sedutor é a causa de todas as desgraças", escrevia. Solitária, isolada, devotada apenas a conceber um herdeiro para o trono (o futuro D. Pedro II nasceria em 1825) Leopoldina tornava-se cada vez mais depressiva. Desde o início de novembro de 1826 que a imperatriz não se encontrava bem de saúde, definhando a olhos vistos.

O casamento de Leopoldina com D. Pedro (Domingos Clementino, 1820)
O casamento de Leopoldina com D. Pedro (Domingos Clementino, 1820) Foto: Acervo/Museu Histórico Nacional

A 20 de novembro de 1826, preparando-se para viajar para a fronteira com o Uruguai, D. Pedro quis demonstrar à sua corte ser mentira o boato sobre as suas relações extraconjugais e o mau clima entre o casal imperial. Para o fazer, não encontrou melhor maneira do que promover uma sessão de beija-mão à regente na sua presença e na da amante, entretanto tornada marquesa de Santos e dama de companhia da imperatriz. Mas esta teria achado uma enorme humilhação ser recebida pela corte junto à amante de seu marido, e teria confrontado Pedro recusando-se a entrar na sala do trono. O imperador, de génio irascível, teria então tentado arrastá-la pelo palácio, agredindo-a com palavras e pontapés, mas acabando por comparecer ao beija-mão acompanhado unicamente pela marquesa. Embora esta versão seja frequentemente repetida, sublinhe-se que não se conhece outra testemunha da agressão além dos três, e que as suspeitas sobre as agressões sofridas teriam sido levantadas pelas damas e médicos que ampararam Maria Leopoldina nas terríveis semanas que se seguiram.

D. Pedro I, imperador do Brasil
D. Pedro I, imperador do Brasil Foto: Domínio Público

A imperatriz, que se encontrava na 12ª semana de gravidez, adoeceu gravemente. Na sua última carta à irmã Maria Luísa, ditada à marquesa de Aguiar (e datada de 8 de dezembro de 1826, às 4 horas da manhã) refere-se aos terríveis males de que fora vítima: "Reduzida ao mais deplorável estado de saúde e tendo chegado ao último ponto de minha vida no meio dos maiores sofrimentos, terei também a desgraça de não poder eu mesma explicar-te todos aqueles sentimentos que há tanto tempo existiam impressos na minha alma. Minha mana! Não tornarei a vê-la! Não poderei outra vez repetir que te amava, que te adorava! Pois, já que não posso ter esta tão inocente satisfação igual a outras muitas que não me são permitidas, ouve o grito de uma vítima que de ti reclama - não vingança - mas piedade, e socorro do fraternal afeto para meus inocentes filhos, que órfãos vão ficar, em poder de si mesmos ou das pessoas que foram autores das minhas desgraças, reduzindo-me ao estado em que me acho, de ser obrigada a servir-me de intérprete para fazer chegar até tu os últimos rogos da minha aflita alma."

Morreu a 11 de dezembro de 1826, no Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, aos 29 anos. Foi muito chorada pelo povo do Rio de Janeiro e a fama de crueldade de D. Pedro chegaria à Europa, tornando-lhe muito difícil a tarefa de encontrar uma segunda esposa compatível com o seu estatuto imperial. Aconteceria em 1829, com Amélia de Leuchtenberg, quarta dos sete filhos do general Eugênio de Beauharnais, e de sua esposa, a princesa Augusta da Baviera, que lhe sobreviveria. 

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