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Do espartilho de ferro ao anel roubado a Kim Kardashian. Este livro conta a História das mulheres através de 101 objetos

São peças ora preciosas, ora humildes, mas todas contam a história das vidas que as tocaram. No livro "Uma História das Mulheres em 101 Objetos", Annabelle Hirsch percorre um enxoval milenar e reúne joias, medicamentos, perfumes e venenos. O resultado é imperdível.

Foto: DR
06 de março de 2024 às 07:00 Maria João Martins

O que têm em comum um espartilho, um barrete frígio e um copo menstrual? De acordo com a jornalista franco-alemã Annabelle Hirsch, tudo, já que são "personagens" de uma fascinante saga a que a autora deu o título de Uma História das Mulheres em 101 Objetos (edição Planeta). Desde a Pré-História (e de ossos de fémur sarados encontrados em escavações) à atualidade (o anel roubado de Kim Kardashian, por exemplo) percorrem-se cerca de dois milhões de anos de vida no feminino, contado não por rainhas e outras mulheres de excepção, mas pelas peças, ora preciosas, ora humildes, que as acompanharam, no quotidiano de ricas e pobres, famosas e anónimas. O que importa, diz, é que não olhemos para o passado com uma visão simplista, até porque a História das mulheres (como do mundo) não evolui de forma linear, da idade das trevas para o esclarecimento. Houve momentos de evolução e de retrocesso e hoje, como então, nenhuma conquista pode ser dada por adquirida.

Percorre neste livro um longo "corredor" que é a História das mulheres desde a Pré-História. Como conseguiu seleccionar 101 objetos? 

Ao princípio, pensei que eram demasiados, mas quando fiz uma primeira seleção percebi que não era o caso e cheguei a sentir mesmo o embaraço da escolha. A minha principal preocupação foi mostrar como a História do mundo, e em particular a História das mulheres, não é linear. Não passámos da repressão para a liberdade e há questões que hoje nos parecem muito modernas, como a segurança das mulheres no espaço público, mas que já foram debatidas com profundidade noutras épocas, em contextos históricos diferentes. 

Foto: DR

Propõe uma leitura original de peças que consideramos quase sempre símbolos da opressão exercida sobre as mulheres, como o espartilho. Afinal, sugere que, em épocas como o século XVI, ele pode ter sido um símbolo de empoderamento de mulheres privilegiadas. 

A ideia não é minha, mas da historiadora de moda Valeria Steele, para quem o espartilho não pode ser visto só de uma maneira, até porque não foi sempre igual. Se olharmos para os retratos da realeza do século XVI (como os da rainha Isabel I de Inglaterra) percebemos que o facto destas mulheres usarem espartilho as obrigava a uma postura mais altiva e ereta, como se fossem guerreiros dentro das suas armaduras. Quando pensei nessas diferenças, pensei também como o nosso olhar para o passado pode ser preconceituoso, simplista e não ter em conta uma densidade que frequentemente nos escapa. Por outro lado, muitas pessoas que viveram no século XIX não quereriam libertar-se do espartilho, mesmo que pudessem. Isto é muito pedagógico porque nos permite compreender que há muitas maneiras de se ser mulher e que uma não é melhor, nem mais livre, do que todas as outras. Não nos podemos esquecer que as primeiras pessoas a dizer que o espartilho era prejudicial à saúde foram homens, para quem esta peça alterava, de forma artificial, a silhueta feminina. Se for preciso, também dizem o mesmo sobre a maquilhagem. É como se se sentissem perturbados, ou mesmo traídos, pelo facto das mulheres poderem escolher a sua própria aparência. 

Há uma leitura moralista destas escolhas?

Até do interesse das mulheres pela Moda. Embora, em nome da Economia, se deseje que esse consumo cresça, acusam-se sistematicamente as mulheres de serem fúteis ou mesmo estúpidas por se interessarem por Moda, por oposição aos homens que alegadamente se interessam pelos assuntos sérios do mundo. Esta é uma maneira muito moralista de encarar a Moda e o traje, muito presente nas culturas protestantes, do Norte da Europa: Se mudas o que Deus te concedeu, estás a fazer algo que é errado. Se te divertes, pecas. Se seduzes, pecas mais ainda. Com a Reforma protestante, a paleta de cores ficou muito reduzida. Eu cresci na Alemanha e hoje percebo que a relação com o corpo é muito diferente da que existe em Itália, onde as mulheres são muito femininas. Quando, na minha adolescência, eu fui da Baviera (onde há uma maioria católica) para Berlim, senti-me quase obrigada a mudar a minha maneira de vestir. É como se nos olhassem de lado se nos vestíssemos como uma rapariga. Mesmo em França (a minha família é franco-alemã) eu nunca me vestiria como uma mulher italiana porque isso seria visto como uma submissão a uma ideal de mulher-objeto. O que não é verdade.

Foto: DR

Não fala só de Moda no livro. Entre muitas outras coisas, pega no barrete frígio para lembrar o papel real que as mulheres famintas de Paris tiveram na Revolução Francesa. É algo que a História oficial apagou?

Na verdade, o mesmo aconteceu século e meio mais tarde com a Revolução Russa: começou com mulheres que queriam pão para as suas famílias. E, tanto em França como na Rússia, estiveram sempre muito presentes, até ao momento em que eram empurradas para fora do processo pelos homens. Considero mesmo que a luta pelos direitos das mulheres em particular nasceu quando elas ganharam consciência que a luta pelos direitos humanos em geral as excluiam sistematicamente. Admito que tive alguma dificuldade em encontrar um objeto que simbolizasse essa luta delas, mas penso que o barrete frígio acaba por ser uma boa opção, até porque recorda as imagens das amazonas, como a própria imagem da República francesa - a Marianne.

Em Portugal, a República também é representada por uma mulher. Mas o regime que as mulheres ajudaram a implantar não tardou a exclui-las de qualquer forma de participação ou poder de decisão.

É um clássico. As mulheres podem ser símbolos ou alegorias, mas para as mulheres reais é difícil imporem-se no mundo político.

Há uma imagem muito impressionante, que inclui no livro, e que é uma foto de Robert Capa feita em Chartres, após a libertação de França na Segunda Guerra Mundial. Há uma mulher, com um bebé ao colo, a quem foi rapado o cabelo.

Não é exatamente um objeto, é uma foto, mas eu queria muito contar esta história porque é algo que, mais do que me entristecer, me revolta profundamente. No caso da mulher da foto, sabemos que ela era, de facto, pró-nazi, mas também sabemos que, de um modo geral, os homens franceses foram muito fracos e mesmo cobardes na rapidez com que se renderam aos alemães. Colaboraram muito, a maior parte não era da Resistência (os meus avós franceses foram e um deles foi executado) e tiveram de arranjar alguém que servisse de bodes expiatórios. Para se sentirem de novo viris, tiveram de castigar estas mulheres, que por razões várias tinham dormido com soldados alemães, e tiveram de o fazer de uma forma que fosse muito evidente aos olhos de todos. Por isso, raparam-lhes o cabelo. Uma execução, um fuzilamento, é rápido. Mas estas mulheres, durante o tempo que o cabelo leva a crescer de novo, foram apontadas a dedo sempre que saíam de casa. É aquilo de que fala a Marguerite Duras em Hiroshima, meu amor. Este foi um problema que a França teve consigo mesma, pelo menos até aos anos 1990, quando Jacques Chirac admitiu publicamente que a França tinha colaborado, de facto, com os nazis.

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 Mais recentemente, inclui a pílula. Foi uma revolução nos anos 1960?

A pílula e o direito ao aborto foram revoluções muito importantes nas vidas das mulheres. Nos Estados Unidos é um pouco controverso falar da pílula porque soube-se, entretanto, que as farmacêuticas norte-americanas as testaram em mulheres de Porto Rico que não sabiam o que lhes estava a ser dado. Foram usadas como animais em testes. Mas esse facto, que é horrível, não nos pode fazer perder de vista o facto de a contracepção ter permitido às mulheres desenvolver uma sexualidade sem o medo constante de engravidar ou mesmo de morrer. Uma invenção assim é algo que muda a Humanidade para sempre. Uma vez falei com a Annie Ernaux, a propósito do seu livro O Acontecimento [em que a escritora Nobel da Literatura fala do aborto que fez na juventude], e ela disse-me que sentira que o seu próprio corpo a tinha traído. É tremendo.

Quase no final do livro, faz uma comparação interessante sobre o mistério que envolve a escritora Elena Ferrante e a sobreposição da socialite Kim Kardashian. Porquê esta dupla tão desconcertante? 

Devo dizer que pensei muito se deveria incluir ou não Kim Kardashian. Muita gente admitiu mesmo a sua estranheza. O que eu acho interessante é que, sendo tão diferentes, cada uma escolhe a maneira como quer ser vista pelo mundo: uma mostrando quase nada, a outra mostrando quase tudo. Mas a escolha é sempre delas, o que não acontecia no passado com outras mulheres famosas, como a princesa Diana, por exemplo, que era constantemente perseguida por paparazzi. Ou Marilyn Monroe. É como se lhes dissessem: Queres ser famosa? Então, tens de pagar o preço, que é a constante invasão de privacidade. Pessoalmente estou convencida de que a Kardashian é uma mulher completamente diferente daquilo que mostra. Ela quer ter o controlo da sua própria história e da sua imagem e isso é interessante.

Sobre Elena Ferrante, como não se mostra, até há quem diga que é um homem.

É uma loucura. Escreve os seus livros, opta por não mostrar a sua vida privada e as pessoas especulam. Isso é tão misógino. Quantos homens escrevem e escolhem não partilhar com o público as suas vidas? Ninguém estranha.

Foto: DR

Pergunto-lhe finalmente se me consegue dizer qual é o objeto da sua vida?

Eu diria que um anel que era a aliança da minha trisavó, natural da Bretanha. Mas também os anéis que eram dos meus avós alemães e que o meu pai transformou num só. Gosto de objetos que me ligam ao passado e que estiveram presentes em momentos que eu não vivi.

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