A arte de Esther Mahlangu, dos murais às tapeçarias
Aos 87 anos, a conceituada artista sul-africana vê o seu trabalho e a tradicional pintura mural da comunidade Ndebele eternizados em tapeçarias Dhurrie, numa união de duas artes em via de extinção. Em exposição no Tivoli Avenida da Liberdade.

Construir uma escola onde possa ensinar a arte Ndebele de pintura de mural, património em extinção, é o grande sonho de Esther Mahlangu, artista que dá nome à exposição atualmente patente no lobby do Tivoli Avenida Liberdade, em Lisboa. É aqui que a arte Ndebele ganha uma nova vida em dez tapeçarias Dhurrie (técnica de tecelagem da Índia), imortalizando o legado artístico da artista sul-africana.
Trata-se, assim, de uma fusão de duas práticas e culturas distintas - africana e indiana - surgidas da preocupação e paixão de Eshter Mahlangu e de Alexandra de Cadaval - que facilitou o encontro multicultural - por duas tradições que estão a desaparecer a passos largos. Escolhi a tapeçaria "porque queria fazer um seguimento altamente geométrico dos desenhos da Esther", explica a portuguesa em entrevista à Máxima. "Dentro dos meus diferentes testes, descobri que o Dhurrie, esta técnica de tecelagem centenária [está um pouco por toda a Índia, mas também está presente no Afeganistão e no Paquistão] era o ideal, porque queria este encontro entre duas artes indígenas" e porque esta reflete os aspeto geracionais e ornamentais da pintura Ndebele.

Na comunidade de Esther são escassas as pessoas que ainda pintam. Apenas as mulheres tinham a oportunidade de aprender esta arte abstrata, por norma produzida nos murais das casas de cada família como um registo do que acontecia à sua volta, como o nascimento de um novo membro da aldeia, uma família feliz ou até a evolução da tecnologia. Em 1989, aos 55 anos, Esther foi a primeira mulher da sua tribo a ir para lá do continente africano e a levar a sua arte a um público mais vasto, exibindo-a - aqui ainda em canvas - na exposição Magiciens de la Terre, com a curadoria de André Magnin, no Centre Georges Pompidou, em França.


As suas tapeçarias apresentam desenhos geométricos e cores fortes, imagem de marca da artista parte da família real da comunidade de Ndebele, porém tinham um problema de produção: os artesãos indianos não costumam tecer círculos, algo recorrente nos desenhos da sul-africana, porque usam um tear vertical para fazer as tapeçarias, o que dificulta a criação de formas circulares, conta Alexandra. Isto e o respeito pela perfeição dos motivos foram os maiores desafios da colaboração, uma vez que os artesãos tinham de fazer tudo a olho, não havia uma dimensão predefinida. Aqui não entram medições ou esboços.
Também é importante referir que as obras de Esther Mahlangu já eram conhecidas internacionalmente, embora tenha sido após conhecer Alexandra que a mulher de 87 anos deu o "salto" para o tecido. "Ela foi super mente aberta em relação à ideia, porque sabe que isto é uma continuação dos desenhos dela. E com a tecelagem, independentemente do tempo em que ela está connosco, a arte dela pode continuar a existir."


Como se veio a formar esta especial amizade?
"Foi através da música que comecei a ter contacto com este caminho das culturas mundiais e a ter uma verdadeira sensibilidade com o mundo tradicional. Esta noção de que temos um património em vias de extinção, e que se nós não começarmos a ter uma responsabilidade muito séria perante ele, ele vai desaparecer", recorda Alexandra, formada em indústrias culturais e co-diretora do Sacred Spirit Festival, na Índia. Depois de 16 anos de festivais em Évora, trocou Portugal pelo continente asiático e ficou uma temporada no Rajastão, antes de seguir para Moçambique no âmbito de uma missão humanitária em 2007.
Apaixonou-se pelo país e decidiu que era ali que queria ficar nos próximos tempos, tentando ao mesmo tempo trazer a informação que tinha adquirido na Índia para fazer um trabalho de pesquisa sobre a cultura local de Moçambique, trabalho que demorou sete anos a ser concluido. "Fizemos de Norte a Sul todas as diferentes etnias, percorremos rituais, instrumentos, danças. E também depois dentro desse âmbito do meu trabalho de pesquisa cultural, cruzo-me com a extrema pobreza, pelas zonas onde eu estava, e não consegui ficar indiferente. Portanto, também desenvolvi muitos anos de missões humanitárias em que a cultura foi o meu veículo de entrada", explica.


A atração pela ornamentação era apenas uma questão de tempo. "Começo a ter uma grande sensibilidade depois de ver mensagens absolutamente extraordinárias sobre as casas." Com poucos trabalhos do género em Moçambique, "pegou num avião e viajou para o local mais próximo" que tinha o que ela procurava, uma aldeia da comunidade Ndebele na África do Sul. "Toda a gente me disse que tinha de conhecer as pinturas da Esther" e é assim que a encontro em 2017.
"Em 2018 trago-a para Portugal, dentro do âmbito da minha exposição Paixão Africana, que foi um projeto sobre música, dança e arte contemporânea em Évora". Durante as quatro semanas que ela esteve em Portugal, pintou um mural no pátio do Palácio dos Duques de Cadaval [Alexandra esteve à frente da sua restauração], alguns pilares no interior do restaurante Cavalariça e um arco no exterior, um processo longo, uma vez que Esther pinta apenas com penas de galinha.

"O meu sonho é poder ajudá-la no sonho dela, que é a construção de uma escola na sua aldeia [onde ainda vive]. E dentro disso gostava de tentar ensinar a técnica de Dhurrie, trazendo os nossos mestres da Índia para a escola. Seria também um meio de subsistência para as mulheres, e também podíamos usar o algodão da África do Sul. Temos de ir passo a passo, mas a ideia é termos um lado filantrópico um bocadinho mais para a frente", declara.

A exposição estará no lobby do Tivoli Avenida da Liberdade até 30 de setembro. Cada modelo de tapeçaria conta com vinte edições e está disponível para venda aqui.

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