Karl, o imortal

O diretor artístico da Chanel partiu. O criador que desafiou as leis da vida desapareceu aos 85 anos, em Paris. Retrato possível de um homem que sabia demasiado – e de quem, só aparentemente, sabíamos alguma coisa. Recordamos o artigo publicado na Máxima um ano depois da sua morte.

10 de setembro de 2019 às 07:00 Maria Wallis

Imaginemos Karl Lagerfeld a chegar às portas do Céu, esse lugar mágico que nos conduz à eternidade, e comentar com os anjos que o acompanham: "Vamos ter de fazer algumas modificações por aqui. Há demasiado branco, demasiada luz. Precisamos do rigor e da sobriedade do preto." E assim será. Aqui e ali, por entre nuvens e harpas, começarão a surgir pequenos apontamentos que dão conta da presença do "kaiser".

Blazers em tweed e little black dresses para elas, óculos escuros e luvas em pele, sem dedos, para eles. Tudo na cor que é a soma e ausência de todas as outras. À imagem e semelhança do que fez aquando da sua passagem pelo mundo terreno, o último dos grandes couturiers irá comandar as grandes revoluções lá no alto, regozijando-se com os pequenos fait divers que assombram a indústria do efémero: como as centenas de obituários que tentam glorificar a sua morte, no dia 19 de fevereiro último, em Paris. Para além de uma extensa obra, o que acrescentar, agora, à sua história? O que pensamos saber sobre o homem que viveu quase sempre por detrás de umas lentes escuras, de frases polémicas e de uma ética de trabalho irrepreensível? Será possível presumir que conhecemos alguém que, apesar de permanecer décadas a fio no "olho do furacão", se preparou, a vida toda, para a invisibilidade? Como diriam os franceses, va savoir.

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Excêntrico, controverso, inquieto, genial, Karl Lagerfeld insistiu em viver apenas no (e para o) momento presente, num desassossego constante, como quem foge do reflexo de um espelho. Artista total, viveu para construir a sua própria lenda – como um homem da Renascença. E alargou-a para lá das fronteiras da Moda que transformou num elemento-chave da cultura popular. Em 1979, numa entrevista ao jornal francês Le Monde, explicou: "Eu sou uma espécie de vampiro que observa tudo sem reter os nomes das coisas. Quero ver tudo, ler tudo. O melhor, o pior. Armazeno tudo, esqueço tudo e trabalho instintivamente. […] Sou um vendedor de vento. Eu concretizo o ar."

O nascimento de um mito.

Ninguém consegue dizer, ao certo, "quando" nasceu Karl-Otto Lagerfeldt (o t acabará por cair, mais tarde), mas os relatos mais comuns dizem que a história começa a 10 de setembro de 1938, em Hamburgo, na Alemanha.

O futuro designer, que mais tarde acabará por revelar que "nunca gostou de ser criança", tem uma infância privilegiada, passada entre a cidade e a propriedade da família, em Schleswig-Holstein. O pai, Otto, é o diretor-geral da filial americana da American Milk Products Company e era consideravelmente mais velho do que a segunda mulher, Elisabeth Bahlmann, mãe de Karl. Será ela a maior influência do criador e é dela que herda as feições e uma certa severidade.

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"Quando eu tinha 14 anos queria fumar porque a minha mãe fumava imenso. Mas ela disse-me: ‘Você não deve fumar. As suas mãos não são assim tão bonitas e isso nota-se quando se fuma.’" Em 1952, Lagerfeld muda-se para Paris com o intuito de se dedicar à Moda e, dois anos depois, mesmo sem ter qualquer educação na área, vence o International Wool Secretariat (agora conhecido como International Woolmark Prize) na categoria de casacos, o que lhe garante um lugar como assistente de Pierre Balmain. Três anos depois é nomeado diretor artístico da Jean Patou, onde ficará cinco anos. É então que decide trabalhar como freelancer. Colabora com uma série de marcas, desenhando não apenas roupa, mas também sapatos, tecidos e acessórios. Por essa altura, o pronto-a-vestir cresce vertiginosamente. Foi essa mudança de paradigma que o levou, por duas vezes, à Chloé (1963-1982/1992-1997) e à Fendi, onde aterrou em 1965 para dar início à colaboração mais longa de que há memória na indústria. Mas foi, sem dúvida, com a Chanel, onde chegou em 1983, a convite de Alain Wertheimer, que escreveu uma das maiores e mais singulares histórias de amor do mundo da Moda.

31, Rue Cambon.

Às três da tarde de 25 de janeiro de 1983, um pequeno grupo de convidados reuniu-se para o primeiro desfile Chanel by Karl Lagerfeld. Como relembra Patrick Mauriès na introdução do livro Chanel: Catwalk. The Complete Karl Lagerfeld Collections (Thames & Hudson), "Paris ainda se recuperava da notícia de que Karl Lagerfeld, uma das principais figuras do pronto-a-vestir e então no auge dos seus poderes criativos, chegara a uma casa de alta-costura um pouco adormecida. E todos se questionavam, talvez com uma pitada de schadenfreude [alegria pelo prejuízo alheio], como é que o homem do leque – o criador de desenhos fluidos e florais como os da Chloé – poderia encontrar o caminho para sair da armadilha em que se metera: continuar o legado moribundo de uma lenda da Moda e atualizá-lo."

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Hoje sabemos que saíram daqueles salões elegantes altamente impressionados. "Toda a gente está a falar da Chanel", resumiu a Vogue na sua review da coleção. Em vez de se refugiar nos elementos mais familiares da sua predecessora, o "kaiser" arriscou e inspirou-se em desenhos de Coco dos anos 20 e 30 que ainda não tinham visto a luz do dia. "Mesmo que ela nunca tenha feito [algo] assim, é muito Chanel, non?", disse, na altura. Foi uma forma subtil e inteligente de subverter os códigos da Casa, de os modernizar, de os trazer para o ansiado fim de século.

Missão cumprida. Lentamente, o léxico Chanel voltou a tornar-se conhecido no mundo inteiro, uma espécie de Esperanto da Moda. Karl Lagerfeld renovou os clássicos criados por Gabrielle Chanel, conseguindo a proeza de, ao longo de três décadas e meia, inovar as suas coleções a cada seis meses sem trair o legado de Mademoiselle e o espírito Chanel: o tailleur debruado, la petite robe noire, a camélia, o tweed, as pérolas, o duplo C, as carteiras acolchoadas, os sapatos bicolores e as correntes douradas. Ei-los ressurgidos e numa nova visão como símbolos máximos de luxo parisiense, da elegância e do glamour. Tal como refere Mauriès na obra citada: "Lagerfeld não tinha interesse em rejeitar a linhagem que era chamado a continuar e nenhum desejo em afirmar a sua própria identidade ao derrubar as regras da Casa por mais desatualizadas que parecessem. Em vez disso, ele mergulhou na história, puxando os seus fios para os transformar num novo tema, num design para o futuro." Foi essa busca constante de algo novo que voltou a colocar a Chanel no pódio da Moda, de onde nunca mais saiu. 

Foguetões, supermercados e casinos.

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As celebridades, já se sabe, adoravam Karl Lagerfeld. E ele adorava as celebridades. Nicole Kidman, Pharrell Williams, Kristen Stewart, Cara Delevingne, Keira Knightley, Penélope Cruz… Os rostos mais (re)conhecidos e mais rentáveis tinham ligações próximas à Chanel, através de contratos milionários ou como "embaixadores" da marca.  E depois, claro, havia os desfiles.

Muito antes da era Instagram, já o designer tinha percebido o poder de um grande espetáculo. Sem olhar a meios, criou os cenários mais improváveis de toda a história da Semana de Moda de Paris. São particularmente memoráveis o glaciar importado dos países nórdicos que, na apresentação da coleção de alta-costura outono/inverno 2010, obrigou o Grand Palais a ter uma temperatura de quatro graus negativos para evitar derretê-lo; o supermercado com produtos Chanel do outono/inverno 2014; a réplica de um boulevard parisiense, num desfile-protesto em que as modelos, lideradas por Gisele Bündchen, carregavam cartazes onde se liam palavras de ordem como "Feminist but Feminine", "Be Your Own Stylist" ou "History Is Her Story", na primavera/verão 2015; o elegante casino na alta-costura outono/inverno 2015; o terminal de aeroporto "maior-que-a-vida" na coleção pronto-a-vestir primavera-verão 2016; ou o incrível foguetão, colocado no centro do Grand Palais, na apresentação do ready-to-wear outono/inverno 2017.

A última vez que Karl apareceu para os aplausos finais foi em outubro de 2018, numa praia improvisada, com ondas, areia e, até, uma cabana de madeira. Por momentos, Paris voltou a ser a cidade dos sonhos, pelo menos enquanto o público, exausto de dois meses de desfiles, acreditou que estava num paraíso tropical onde a indumentária se resumia a belos chapéus de palha, vestidos de seda, carteiras com correntes douradas e tons terra.

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Exatamente como Coco Chanel teria desejado. "Lagerfeld não é conhecido por popularizar qualquer silhueta ou inventar qualquer item de moda [daí não ter o epíteto de criador de moda, como todos os que se seguiram a Yves Saint Laurent, o último dos criadores]. Em vez disso, ele transformou a maneira pela qual a moda opera e a maneira como as pessoas se relacionam com ela", escrevia Robin Givhan no jornal The Washington Post. É um facto. Ele tomou de assalto a arena da Moda e definiu aquilo que seria o designer/artista no novo milénio. Nada mais nada menos que "a força criativa que se posiciona no topo de uma marca com história e a reinventa, identificando os códigos da sua indumentária e, em seguida, a puxa para o presente com uma saudável dose de desrespeito e altas doses de cultura pop", como salientava Vanessa Friedman, crítica de moda no The New York Times.

"Enfant terrible."

À semelhança de Andy Warhol, também Karl Lagerfeld vive na nossa imaginação como um avatar construído a régua e a esquadro. Os colarinhos muito altos e estruturados, tão eduardianos quanto rock and roll, as calças pretas justas, os dedos cheios de anéis, o cabelo branco-neve apanhado num rabo de cavalo meio tosco, os óculos de sol com lentes ultraescuras, as luvas de pele sem dedos.

À sua imagem e semelhança, o fabricante de brinquedos Mattel lançou, em 2014, o boneco Karl que apesar de custar €175 esgotou em menos de uma hora. Os compradores não foram, com certeza, as "mamãs gordas em frente à televisão com os seus pacotes de batatas fritas a dizer que as modelos magras são feias" (polémica de 2009), nem a cantora Adele que "apesar de ter uma cara linda e uma voz divina é demasiado gorda" (controvérsia de 2012). A sua irreverência in your face que nunca o impediu de expressar a sua opinião sobre temas polémicos (em abril passado confessou "estar farto" do movimento #MeToo) custou-lhe muitos dissabores.

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Ao invés de se resguardar na sua biografia de génio incompreendido, Lagerfeld lançava (ainda) mais achas para a fogueira. Em 2000, quando decidiu perder peso para poder usar os fatos criados por Hedi Slimane para a Dior Homme, começou uma dieta feroz e perdeu 42 quilos – as declarações que proferiu sobre as mais-valias de ser magro versus ser gordo são por demais conhecidas para voltarmos a elas. Atacava tudo e todos com a mesma confiança com que se criticava a si próprio.

Quem o conheceu, no entanto, salienta a generosidade imensa, a fidelidade, a atenção. A escritora Natasha Fraser-Cavassoni, que trabalhou com Lagerfeld no início dos anos 90, lembra um episódio que demonstra o quão dedicado ele poderia ser: "Uma vez, quando estava de partida para Nova Iorque, ele perguntou se me podia trazer alguma coisa. Eu disse: ‘A biografia de Ava Gardner.’ E nunca mais pensei nisso. Uma semana depois, o livro apareceu." Karl Lagerfeld era uma alma velha num cérebro do futuro. Não fumava, não bebia, não tomava drogas. Bebia dez latas de Diet Coke por dia. Tinha um colaborador, cuja única função era manejar os seus 300 iPods. Dormia com a almofada que a sua nanny de infância lhe tinha oferecido. E, diz-se, teve apenas um grande amor: Jacques de Bascher, um dandy libertino que apesar de ter vivido com Karl durante 18 anos se envolveu com Yves Saint Laurent, o que acabou por minar a amizade entre os dois rivais e homens da Moda.

A insustentável leveza do ser.

Costumava dizer que era absolutamente terra a terra, apenas não desta terra. A citação exata, proferida numa das várias entrevistas, nas quais nunca se esquivou a temas controversos, tem sido partilhada até à exaustão nas últimas semanas – a língua de Shakespeare torna-a mais lírica, quase como o verso de uma canção: "I am very much down to earth. Just not this earth."

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Afinal o homem rude, sem maneiras, sabia assumir a sua condição de alienado, de viajante. E de visionário. Apesar de estar claramente à frente do seu tempo, não se fechou dentro do seu hotel particulier, longe dos gritos das ruas. Em 2004 foi o primeiro designer a colaborar com uma cadeia de fast fashion, a H&M, na criação de uma coleção-cápsula que pretendia chegar a um público mais abrangente. Aqueles que, na altura, se horrorizaram pela massificação da sigla KL são os mesmos que hoje, 15 anos depois, esperam pelas dezenas de parcerias semelhantes que surgem um pouco por todo o lado.

"Karl percebeu cedo que o pronto-a-vestir não era o parente pobre da alta-costura, mas antes o centro vibrante do estilo de vida de uma nova mulher realizada. Numa altura em que muitos dos seus pares procuravam abrigo em marcas de luxo estabelecidas, ele ousou experimentar sozinho, criando para múltiplas marcas com energia suficiente para acender todas as luzes de Piccadilly Circus", sublinhou Anna Wintour, em 2015, quando subiu ao palco dos British Fashion Awards para lhe entregar o galardão de Outstanding Achievement Award

Último ato.

Nada será como dantes. É o fim da Moda como a conhecemos. Mas o espetáculo deve, e vai, continuar. Lagerfeld teria odiado que fosse de outra maneira. "O Karl e eu já vivemos muitos momentos extraordinários, ao longo dos anos, e eu adoraria partilhar alguns desses momentos convosco não fosse eu saber quão horrorizado o Karl ficaria. Olhar para trás para quê quando há tanto à nossa espera no futuro? Mais do que qualquer outra pessoa, ele representa a alma da moda: inquieto, voltado para o futuro e vorazmente atento à nossa cultura em constante transformação", afirmou Wintour naquela noite para uma plateia a rebentar de emoção. E acrescentou: "O Karl não é apenas um dos nossos maiores e mais prolíficos designers, ele é também um linguista, um fotógrafo, um decorador de interiores, um colecionador, um realizador, um artista e um filantropo e a lista não acaba aqui.

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Às vezes, pergunto-me se ele não é também um físico louco que descobriu uma forma engenhosa de acrescentar horas ao dia." Anualmente, além das oito coleções que desenhava para a Chanel e de outras cinco para a Fendi, Karl Lagerfeld era ainda responsável pela sua marca homónima que fundou, em 1984, sob o nome de Lagerfeld Gallery. Manteve, ao longo da extensa carreira, colaborações com outras marcas, como a Krizia ou a Charles Jourdan. "No fim de contas, eu sou apenas um mercenário contratado para perpetuar a marca", afirmou numa das primeiras entrevistas dadas após tomar as rédeas da Chanel. "A minha vida e o meu trabalho é esquecer-me de mim próprio." Era isso que guiava a sua visão transgressiva de Moda: "A Moda é composta de duas coisas – a continuidade e a contradição. Nada é mais paralisante do que a fixação sobre a modernidade de um momento, como [fez André] Courrèges que era genial em 1965, mas que pensou que o estilo ‘partamos para a Lua’ se manteria até ao ano 2000. A gramática da Moda não é a de uma língua morta. Não é grego antigo. Há sempre que romper para reconstruir, amar o que se detestou e odiar o que se amou. É como a música em que se cria uma miríade de melodias com escassas notas musicais." Lagerfeld, ávido leitor (estima-se que a sua biblioteca alcance os 300 mil volumes), colecionador compulsivo (confessou a Susannah Frankel, do jornal The Independent, que tinha mais de mil camisas Hilditch & Key), era um homem pragmático. Nada dado a sentimentalismos, jamais separava a vida da obra. "Por favor, não diga que eu trabalho muito", sugeriu a Frankel. "Ninguém é forçado a fazer este trabalho e, se não gostar, deve fazer outro. As pessoas compram vestidos para serem felizes, não para ouvir falar de alguém que sofreu com um pedaço de tafetá."

No Céu, acreditamos, nada será como dantes.

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