O que diz o corpo de Blaya? Leia antes de responder.
Há muito que a liberdade no discurso de Blaya nos intriga. O diálogo que a sua presença inspira no panorama musical provocou o nosso encontro. Cantora e bailarina, aos 33 anos tonou-se incontornável nos palcos nacionais. Blaya ambiciona agora juntar o ativismo, presente nas suas redes sociais, aos ritmos de música pop que a tornaram conhecida. Aqui e agora, os preconceitos são postos a nu.

A presença de Blaya no estúdio da Máxima é desarmante. Ao longo do dia em que é fotografada, o foco nunca desaparece. O olhar atento, embarca nas sugestões de silhueta que lhe são propostas, há um riso contagiante. A sua concentração potencia sobretudo o corpo que se move para a máquina fotográfica de Rui Palma.
A certa altura, para em frente ao espelho para se ver vestida num total look de Constança Entrudo, um dos talentos mais relevantes da moda made in Portugal. Perguntamos se gosta de se ver assim. Diz, "está tudo bem". Há serenidade no tom, parece ignorar que qualquer fashion victim sonharia ter um vestido daqueles no corpo. O mundo é um palco, que Blaya atravessa com humanidade.


Cresceu no Alentejo, veio para Lisboa ainda antes dos 20 anos, para dançar. Foram os Buraka Som Sistema que lhe deram voz, manteve-se na banda durante 8 anos. Em 2018, aventurou-se a solo. O seu single Faz Gostoso acumula desde então milhões de visualizações no Youtube, e teve direito a uma versão cantada por Madonna e Anitta. Enquanto não chega o sucessor do seu primeiro álbum, Blaya Con Dios (2019), observamos com curiosidade as batalhas em que se investe on-line. Fala sem filtros com os seus seguidores sobre igualdade de género ou empoderamento. Há uma voz no corpo de Blaya, tentámos desvendá-la, ponto por ponto.
Quando percebeste que íamos ficar fechados, no lockdown de março, como reagiu o teu corpo?

Estava em ensaios, a fazer o meu novo espetáculo com músicas novas, estava meio cansada e pensei: ‘vou descansar um bocadinho’. Só que foi tempo a mais.
Foste a correr às compras?
Não fui a correr — mas fui. Até porque fiquei os meses todos com a minha filha. Adoro adaptação, gosto de me adaptar a tudo. Na vida eu só vou. Penso: ‘vamos ver no que isto vai dar’.
Aconteceram muitas coisas nesses meses. Houve a morte violenta do George Floyd. E muitas batalhas começaram nas redes sociais. Nessa altura, dizias (no Instagram) esperar que a tua filha adormecesse para gravar música… A pressão e o mundo em que vivemos atualmente inspira-te para escrever?
Inspira claro. Mas a pergunta que faço é: será que posso ou devo fazer música sobre o que está a acontecer? Eu sou considerada uma cantora pop, já experimentei fazer outros tipos de música, como o Rap, e a reação das pessoas não foi tão boa. Portanto na minha cabeça existe um misto de emoções. Faço pop, e isso faz-me vender e ter concertos, ou faço rap de intervenção e as pessoas não vão estar tão receptivas a isso. Logo não vou ter dinheiro para pagar a casa. (Grita para soltar a pressão)
Não é possível juntar os dois mundos? A intervenção não pode acontecer num universo mais florido, mais pop, mais positivo?

Dá para fazer isso, mas tem de se pensar numa maneira estratégica, não é assim tão simples. As pessoas não aceitam tão bem.
Não aceitam o facto de serem questionadas?
Pensar. Hoje em dia, as pessoas quando estão a ouvir uma música, não gostam tanto de pensar. Gostavam de estar a curtir, e não de pensar tanto no que significa. Eu tenho esses dois lados, gosto de dance music, e depois tenho o meu lado de intervenção. Só que ainda não explodiu da maneira que quero.

É uma equação difícil?
Fazer música não é fácil. Fazer algo que possa passar em casa de todas as pessoas, que não seja só para um núcleo, é complicado.


Liberdade, é a mensagem
Tu dizes que a música, ao estar disponível na internet, pode chegar a qualquer pessoa.
O poder de existir uma mensagem política numa das tuas letras pode ser esse — tens uma capacidade de alcance muito grande…
É o que te digo, essa junção é complicada. É uma coisa que quero fazer agora, neste tempo em que não há concertos. Quero falar mais do que estou a sentir, com instrumentais com ritmo, vou tentar juntar as duas coisas e ver no que dá.
A mensagem da Blaya é obviamente uma mensagem de empoderamento, liberdade e que mais …
Diversidade… Diferença. Blaya é a minha maneira de falar com as pessoas e dizer-lhes que elas podem ser quem são. Vamos resumir … É liberdade. E eu sou igual às outras pessoas. Os meus sentimentos são os mesmos que os das pessoas. Não é por ser uma artista ou uma figura pública que não choro ou tenho momentos mais tristes. Não quer dizer que não tenha inveja. Todos nós temos um bocadinho de inveja, de dor. Todos temos dias piores.
Tu és uma artista. Consegues canalizar alguns desses sentimentos no teu trabalho?
Sempre fui habituada a outra coisa. Eu estive oito anos a ser cantora dos Buraka Som Sistema, então foram oito anos de festa. Fiquei habituada a essa cena.
E assumir o teu lado mais dark? Assumir isso e falar de saúde mental …
É uma questão de hábito, tenho de me habituar. Eu quero escrever, e sinto que posso escrever sobre isso. Há muitos temas sobre os quais não posso só fazer um post no Instagram. Há temas sobre os quais sinto que posso escrever, estou numa de tentar ir por aí.
Fala-se muito de saúde mental, neste tempo em que nos alimentamos de internet e tentamos ultrapassar a pandemia. Será uma preocupação real ou superficial?
As pessoas não estão mesmo preocupadas umas com as outras. Por causa das redes sociais, todos podem comentar ou escrever sobre o que quiserem — da maneira que querem. Não se medem as palavras, e não se mede como isso pode magoar a pessoa que está do outro lado. Hoje, eu posso magoar-te muito rapidamente. Há muitos anos não era assim. Deve falar-se da saúde mental, e não se fala. As pessoas acham que é superficial dizer a alguém, ‘és uma merda’, na Internet por exemplo. As pessoas à minha volta podem ler aquilo, e achar que é um comentário superficial, mas se calhar magoou-me. O bichinho acaba por ficar. Esta forma de magoar está acessível a todos. Tanto podes magoar, como ser magoado.
Em épocas em que estás sobre pressão, nunca pensaste passar as tuas redes a um agente ou a um Community manager?
Ai já! Às vezes só queria mandar fotografias, dizer a alguém para postar e apagava todas as redes sociais do meu telefone.
Se calhar atingias patamares de liberdade de expressão onde não estarias tão consciente da maneira como a tua mensagem é recebida.
As redes sociais tiram-nos o foco. Não temos nada para fazer, fazemos scroll. Vais ver as horas no telefone, e dás por ti e estás no Instagram outra vez.
O que é o teu foco, e o que te motiva e leva todos os dias a querer continuar? É algo que começaste quando ainda eras bailarina, é algo que se renova constantemente? Era algo diferente quando estavas com os Buraka Som Sistema e agora que és só tu a solo?
Não, eu sou sempre a mesma pessoa.
És sempre a mesma artista a querer progredir?
Sim, quero sempre mais. E estou sempre à procura de novas músicas, de fazer novos ritmos em casa e tentar escrever…Desde miúda com 14 anos que comecei a escrever, a dança só veio depois. E foi aquela coisa de passar para o papel o que eu estava a sentir.
Vi algumas entrevistas tuas, e parece-me que às vezes tentas minimizar as tuas frases, já com noção do impacto que elas possam ter num determinado tipo de imprensa.
Sim, sempre. Porque alguém vai pegar no que disse e colocar nos média de uma maneira diferente e vai chegar ao Facebook com um certo título que será a única cosa que as pessoas vão ler. Basta-lhes isso. Começas a fazer scroll nos comentários, e é só frases a dizer que eu só quero aparecer ou que só mostro o rabo.
Quando é que sentiste que a tua liberdade nesse tipo de comentários, tinha sido atacada?
Não sei, foram muitas vezes. E é já há muito tempo…Yah (tom desolado). E depois quanto mais chego a pessoas, quanto mais conhecida sou, mais eu vou levar com isto. Às vezes acabo por me retrair, porque não me apetece ficar com um dia negativo porque decidi ler um comentário que não devia ter lido.
Como evacuas essa frustração?
Esqueço muito rapidamente. Converso com o meu namorado sobre isso, mas a minha sorte é que não fico com as coisas na minha cabeça. Às vezes tenho de falar sobre elas, se me magoam tenho mesmo de falar.
Qual é o maior mal-entendido em relação à Blaya e que podíamos resolver já ?
Que eu só sei abanar o cu.
O que te apetece dizer a essas pessoas?
Leiam e pesquisem e vão ver o meu background. Vão ouvir músicas antigas. Está tudo no google, sei lá …Pesquisar é fixe.

"A cultura é segura só para alguns"
Como tem sido sobreviver em termos financeiros a esta pandemia?
Maior parte dos artistas estão na merda. Podes escrever merda?
Sim…
Tem sido complicado, eu estou sempre a pensar fazer coisas novas, mas um artista não é nada sem um técnico, são eles que estão por trás de nós, sempre, no palco, nos concertos…Gostava de chamar à atenção de uma coisa, vi slogans na internet, a dizer que a cultura era segura, e neste momento a cultura é apenas segura para alguns. Ainda bem que existem esses alguns, mas são sempre os mesmos artistas que tocam em todo o lado. Em Portugal até na música existem grupos. Nos festivais, são sempre muito os mesmo artistas — é preciso pensar nos mais pequenos também, pensar nos artistas que não estão em agências conhecidas.
Tu no teu caso, já deves ter royalties da tua música, consegues viver disso?
Todo o dinheiro que eu tenho para o ano é de concertos, não é o YouTube ou vendas. E também não tenho dinheiro de marcas, eu sou uma pessoa mais extravagante. Não tenho marcas atrás de mim…Nem eu, nem outros artistas que são mais urbanos.
Era preciso vir a Fenty, a marca da Rihanna, para agarrar em ti…
Em Portugal um artista extravagante ainda dá medo. É muito arriscado as marcas apostarem numa pessoa como eu. No Instagram, tanto meto fotografias nua, vestida ou com a minha filha. Possa estar a fazer twerk ou com as mamas à mostra ou a jantar com a minha família. Então eu sou um misto de cenas e as marcas não querem arriscar.
Achas que estamos a avançar para que se vejam outro tipo de corpos? Na imprensa, ou na publicidade?
O mundo alternativo já tem muita diversidade, mas o mainstream das cenas, da música, das revistas ou televisões é todo igual.
Quando vi o último desfile da Fenty da Rihanna, senti que a mudança podia estar a operar. Aconteceu algo naquele momento em que a Rosalía apareceu rodeada de bailarinas. À volta dela estavam todo o tipo de corpos …
Eu fiquei maluca, só me apetecia chorar. Eu fiz uma insta story a dizer q só me apetecia chorar depois de ver aquele desfile. Fiquei emocionada e fiquei a perguntar, porquê Portugal? Porque não arriscam com as pessoas assim.

"Eu vou sempre aguentar"
Como percebeste que tinham valor os textos que escrevias, mostravas aos teus pais quando eras miúda?
Na altura do mIRC (um popular chat, anterior ao facebook), gravava as coisas em casa e falava com outras pessoas que eram do hip-hop. Nunca ninguém puxou por mim … Não havia ninguém a dizer-me que podia tocar um instrumento. Foi sempre uma coisa que eu própria quis. Queria evoluir e tentar explora esses meus lados.
Porquê?
Foi sempre a necessidade de mostrar e partilhar o que eu penso. Tanto na dança como na escrita.
Então, o teu foco veio com a necessidade de te exprimires?
Não sei, eu sempre fui muito focada e trabalhadora. Já hoje quando estávamos a tirar as fotografias perguntavas se tinha fome, e eu respondi que enquanto estou a trabalhar, só trabalho.
O corpo de uma bailarina esta habituado a resistir…
Sim. Eu tenho às vezes problemas no joelhos e nunca fui ver o que é. Porque na minha cabeça eu vou sempre aguentar.
Com os Buraka Som Sistema fizeste muitos concertos, andaste anos na estrada?
E tinha que aguentar, na verdade é o hábito. É ganhar calo e aguentar. Os meus pais vieram para Portugal [do Brasil] e sempre trabalharam imenso. Então eu acho que acabei por ver esse foco, essa coisa que eles tinham, em que era preciso trabalhar para se conseguir ter algo.
Tiveste de lhes explicar o que era ser artista ?
Nãoooo. Eu disse, ‘olha mamãe [sotaque brasileiro], estou a escrever e há umas raparigas em Carcavelos’ Era a dama Bete. Então eles levaram-me a Carcavelos para escrever com elas, fui gravar música com elas. Quis fazer cursos de hip-hop, então eles vinham todos os fins de semana para Lisboa comigo… Eles apoiaram-me…Sempre me deram um empurrão.

Mundo de homens
Dizias algures que no liceu eras um bocado a menina gorda, mas sempre puxaste as pessoas que te rodeavam a aceitar o corpo…Tiveste sempre esse lado em que querias dar voz aos outros?
É assim…Eu sempre tive esta coisa de puxar tanto pelas mulheres como pelos homens. Para que fizessem o que quisessem. Mas nunca foi propositado. Quando me perguntas o que aconteceu quando era mais nova eu não faço a mínima ideia. Acontecia! Fui para o liceu e criámos um grupo de dança.
Não havia um professor a apoiar-vos?
Não, éramos nós que fazíamos as coisas. O meu incentivo foi o querer saber fazer as coisas, depois acabávamos por ter coreografias.
Quando estavas no liceu já tinhas noção do que era o machismo?
Não, eu acho que não.
Quando é que percebeste que o hip-hop era um mundo de homens?
Isso foi aos 15 anos, quando comecei. Não existiam muitas mulheres no hip-hop, e então comecei a focar-me mais na dança. Senti que não ia conseguir grande coisa se quisesse seguir o caminho de rapper ou MC, por ser um mundo particularmente de homens.
Em 2017, começaste a fazer uma rubrica no 5 Para a Meia-noite em que falavas de sexo (Late Night with Blaya)….Há agora uma polémica, em que os pais de alguns alunos se opõem a que os filhos tenham aulas de cidadania, onde se fala de sexualidade …E tu és mãe também. Como devemos falar de sexo aos mais jovens?
Um pénis é um pénis, e uma vagina é uma vagina. Não podemos estar a dizer, ‘um pirilau e um pipi’. Não é fixe. É importante falar bastante do preservativo. É uma conversa que tem de haver em casa, e na escola normalmente. Não é por falamos disto que vamos começar a ter sexo uns com os outros. (começa a gritar) Vagina, Péniisssss! (risos) É uma coisa que tem de ser falada e explorada. No caso do homens, fala-se disso quando são mais novos. Por exemplo quando uma criança mexe no pénis, diz-se ‘ah que giro’. Quando é uma menina a mexer na vagina já é tipo, ‘tira daí a mão’. E as mulheres começam a retrair-se desde pequeninas, talvez por isso os homens falem da sexualidade de uma maneira mais aberta. Quando uma mulher fala de sexo, diz-se logo ‘que grande porca’.
Achas que faltam pontos de vista femininos sobre sexo? Acaba por ser esmagador esse olhar masculino sobre as coisas? Escreveste um livro de contos eróticos (Mulheres, sexo e manias, 2018) para fazer existir um ponto de vista feminino?
A visão da realidade é um bocado destorcida. Mas é como em tudo, há mulheres que gostam de pornografia assim como ela é, e também já existe pornografia mais real…Não é tão ‘puxa cabelo e cospe’…isso são coisas que os homens estão habituados a ver, e querem realizar nas suas relações sexuais. Muitas vezes não são maduros o suficiente para o fazer, e esperam que a parceira ou parceiro lide bem com a situação. Mas é algo onde tem de haver diálogo e pode mudar de parceiro para parceiro. Somos todos diferentes.

Aliados, procuram-se
Se houvesse vida noutro planeta, e pudesses mandar três coisas do teu trabalho numa cápsula, o que escolhias? De que te orgulhas mais?
Orgulho-me da minha dedicação. Mandava uma cápsula com a minha dedicação e mandava diálogo. Mandava frases, e ficava à espera de respostas (risos). É importante dialogar.
O que te dá o público?
Confiança e garra para continuar a ‘empoderar’. Recebo mensagens onde me dizem que por minha causa perderam vergonha de fazer certas coisas… Acaba por ser motivador.
Estás a tentar criar um diálogo, acabas de me dizer…
Exatamente, é isso. Não faço as coisas com intenção, faço-as porque sinto que as devo fazer. Há dias em que decido falar sobre menstruação, ou sobre as mamas, porque são coisas que me veem à cabeça e decido escrever sobre isso. Há depois pessoas que se identificam.
Sobre a tua vontade de igualdade…O que achas que se pode fazer para que as coisas mudem? O que podemos fazer para que a conversa evolua?
É importante que figuras públicas puxem esse assunto. É importante que não sejam sempre as mesmas a falar. Fiz um vídeo, agora há pouco tempo, que é de intervenção. É como um movimento SER LIVRE #serlivre e convidei vinte figuras públicas. Apenas duas me responderam…Porque é que as figuras públicas não se querem ligar a este tipo de coisas?
Se calhar não são livres?
Aí está! Mas depois vão para as redes sociais e fazem parecer que são.
Queres aliados?
Sim, é preciso falar de temas sensíveis, ainda há muito pouca gente a falar deles aqui em Portugal.
CRÉDITOS:
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