"Continuamos a perpetuar a ideia de que o sangue menstrual é uma coisa suja"
Patrícia Lemos dedica-se às áreas da fertilidade, saúde menstrual e literacia do corpo. Sentamo-nos com a especialista para perceber como andamos em matéria de conhecimento do nosso ciclo – e como a menstruação está longe de ser um assunto de mulheres.

"Quando comecei a falar das questões da vergonha menstrual, há uns anos, muitas vezes diziam que eu era doida e que isto era uma coisa que eu estava a tentar importar de outros países", conta Patrícia Lemos. Hoje, continua sem dúvidas de que o caminho para um futuro melhor (e mais justo) passa pela comunicação, pela informação, pela partilha. Depois de duas obras publicadas, uma delas (Período – Um guia para descomplicar) já na quarta edição, aventura-se agora num novo livro que é a "real talk", diz. Em Não é só sangue – uma conversa sobre o ciclo menstrual, a educadora para a saúde menstrual aborda desde o contexto histórico até às questões socioculturais em torno da menstruação, esse assunto ainda confinado a vozes baixas e secretismo. "A quem é que serve esta ignorância, esta desinformação ou esta informação obsoleta? Porque é que não queremos mulheres autónomas, donas do seu corpo, capazes de responder por si?", questiona Patrícia.

Quais são ainda hoje as principais dúvidas que lhe colocam sobre o ciclo menstrual?
De um lado, [as questões surgem de] pessoas que querem engravidar, ou que foram diagnosticadas com infertilidade. Do outro, há quem já pergunte "de que forma é que eu posso ter mais saúde menstrual?". E esta é finalmente uma pergunta que surge quase a par do "porque é que eu não estou a engravidar?". Antigamente vinham ter comigo como último recurso, já tinham experimentado de tudo, queriam engravidar e não estavam a conseguir. Finalmente começam a surgir pessoas que dizem "eu quero ter mais saúde menstrual, como é que eu ganho mais literacia de corpo, sei que tenho uma má relação com a minha menstruação, estou a tomar a pílula há 15 anos não porque precise, apenas porque não quero lidar com isto". Isto são sinais de que os tempos estão a mudar, é bom sinal.

No livro recorda o polémico artigo da feminista Gloria Steinem, If Men Could Menstruate (publicado em outubro de 1978). A menstruação ainda é usada como um perpetuador de desigualdades?
Vou ter de dizer que sim tendo em conta que tenho dezenas e dezenas de clientes grávidas por ano, e dessas dezenas ainda tenho dezenas de histórias de pessoas que foram convidadas a não fazer horário de amamentação, que foram postas na prateleira sem uma promoção à vista porque fizeram uma licença de maternidade juntamente com férias ou mais não sei o quê. Portanto, sim, as questões reprodutivas ainda acabam por ser um penalizador na maior parte dos casos. Talvez não em todo o espectro e em todas as camadas sociais, mas ainda são um fator de desigualdade.
Lá fora temos visto algumas políticas públicas para tentar amenizar estas desigualdades. A Escócia tornou gratuitos os produtos menstruais. Por cá, baixou-se em 2016 o IVA nos copos menstruais. O que é que falta ser feito?
É uma pergunta difícil. No ano passado foi apresentado na Assembleia da República uma proposta para trabalharmos o fim da pobreza menstrual e outra para as grandes orientações do diagnóstico da endometriose. Essa segunda proposta foi aprovada, saiu em decreto-lei em julho. [Quanto à pobreza menstrual], nós temos de perceber que pobreza menstrual não é aquilo que acontece em África, é aquilo que acontece aqui. Pode não estar debaixo dos nossos olhos, mas acontece aqui. Se calhar temos de tirar a palavra "pobreza", os portugueses não lidam muito bem com a palavra pobreza, chamemos-lhe dignidade menstrual. E isso significa que posso ter acesso a informação, a produtos de recolha, a analgésicos ou a pílulas no sentido de poder melhorar a minha experiência menstrual. Precisamos de estar atentos a estes ritmos.

Temos de entender que há um estigma que ainda está vivo que faz com que muitas destas desigualdades menstruais em termos sociais não venham ao de cima. Precisamos de falar sobre isto. E precisamos de garantir que quem está em situação de poder decidir no sentido de promover políticas, seja a nível da empresa de onde se é CEO seja a nível municipal, das escolas, o que quer que seja possível, que possa trabalhar nisto. Depois precisamos de políticas que venham de cima para baixo, precisamos de garantir que há ao nível dos profissionais de saúde uma maior sensibilização para estas questões, sobretudo para as queixas, para a valorização das queixas das mulheres, sejam sexuais ou menstruais. E, depois, precisamos que esta informação se espalhe. Que chegue às escolas, a tudo o que sejam marcos de distribuição de informação em massa.
O caminho passa pela gratuitidade dos produtos?
Isso a mim parece-me um bom ponto de partida.
Há uma tentativa no livro de adaptar o discurso para ser mais inclusivo, não só para as mulheres, mas também para homens e pessoas que menstruam. Porquê?
Porque o futuro acontece hoje. Este discurso pretende ser sobretudo um apelo à tolerância, que pode parecer que começa nas questões da menstruação, mas que eu quero que seja muito mais do que isso, e que passa por um respeito pelo indivíduo, pelas suas escolhas, sem que a sua privacidade tenha de ser completamente escrutinada e alvo de opinião pública. O capítulo das pessoas que menstruam é um capítulo em que dou voz a pessoas que menstruam. Porque eu também quis ouvir e aprender. Tenho pessoas nos últimos anos a vir ter comigo e a dizer "eu menstruo e não me revejo naquilo que tu escreves, eu não sou esta pessoa, dá para falares para pessoas como eu?". E se aquilo que me é pedido é só uma adequação na linguagem, fá-lo-ei com todo o gosto.

Porque a menstruação não é uma afirmação de género.
Certo. E há tantas de nós que optamos durante grande parte da nossa vida por não menstruar. Tínhamos uma hemorragia de privação, mas na verdade não menstruávamos, parávamos o nosso ciclo ovárico. Então durante esses anos que tomava a pílula não era mulher? Se eu puser um implante e não tiver sangramento não sou mulher? Se eu posso estar durante 15 anos com a minha menstruação inibida e não deixo de ser mulher, afinal o que é que define o que é ser mulher? Claramente não é a menstruação.
Mas concorda que o discurso, nomeadamente publicitário, ainda está feminizado?
Concordo com um aperto no coração.

As dores menstruais ainda são encaradas com relativa naturalidade?
Sim. Precisamos de literacia de corpo, de perceber que quando dizemos que a dor não é normal, que a pessoa que sofre terá sempre de se queixar e de não aceitar ser silenciada se lhe disserem que toma uns analgésicos e isto passa. Antes de mais há a responsabilidade de cada um identificar que não está bem. Neste caso específico, as mulheres estão muito habituadas a ser silenciadas. Temos esta coisa chamada "health gap", que é a forma como tratamos a dor nas mulheres e a dor nos homens, e não sou eu que o digo, são os estudos, é uma coisa diferente. Sabemos que os homens que sofrem de enfarte são mais depressa atendidos e medicados e seguem para cirurgia, do que as mulheres que chegam ao hospital com queixas de dor no braço ou no peito. Dizem que é ansiedade e mandam as senhoras embora. Portanto, temos de responsabilizar quem sente a dor. Depois, procurar um profissional que a valorize, que esteja sensível para estas questões.
A sexualização do ciclo menstrual é outro dos tópicos explorados nesta obra. Quando se menstrua pela primeira vez ainda se ouve "agora já podes ter bebés" ou "já és uma mulher". Porque é que esta abordagem tem de ser desconstruída?
A informação só é útil no sentido em que conseguimos fazer uso ela. Quando eu digo a uma rapariga de 12 ou 13 anos que começou a menstruar (e que nem sequer encetou a sua vida sexual na maior parte das vezes), "isto serve para tu teres bebés", eu estou a dar um salto quase quântico que é a capacidade que esta rapariga tem de fazer uso útil desta informação. Para que é que isto lhe serve? Ela sabe que para fazer bebés tem de ter relações sexuais, portanto ainda que ela tenha eventualmente esta informação com ela, isto não faz parte do seu quotidiano, do seu dia-a-dia. Muitas das vezes com as miúdas nestas idades fala-se de beijos na boca e elas acham nojento. E, de repente, ultrapassamos isso tudo, a esfera da salvaguarda psicoemocional e física desta criança e dizemos "isto serve para tu teres bebés daqui a 20 anos". Não vale de nada a esta criança este enquadramento neste momento. Neste momento o que é útil é facilitar o entendimento do evento que acabou de ocorrer e ver de que forma é que podemos aligeirar, caso tenha sido um momento mais emocional, de que forma é que podemos dar suporte a isto. Não é com o "já és uma mulher" ou, o pior de todos, o "tens de ter cuidado". Cuidado com o quê? A sexualização tem a ver com isto, pegamos no ciclo menstrual, acumulamos a questão reprodutora e responsabilizamos as raparigas por uma série de coisas que elas ainda nem têm como entender ou utilizar.

A toma indiscriminada da pílula é uma prática sobre a qual também disserta. Porque é que na sua opinião isto continua a acontecer?
Porque acho que nos está a faltar este novo enquadramento sobre o ciclo menstrual, que não é novo, mas que tem uma nova linguagem, uma nova roupagem, uma nova utilidade, de acordo com a evidência que tem surgido nos últimos 20 anos. Nós já sabíamos coisas sobre o ciclo menstrual, foi por isso que se desenvolveu a pílula contracetiva, o objetivo era sobretudo ajudar mulheres com endometriose e, depois disso, ajudar as mulheres a encontrarem uma capacidade de gerir o seu aparelho reprodutor, e, portanto, a sua vida. Deu-nos a possibilidade de escolher quando é que queríamos ter filhos, quantos filhos queríamos ter e por aí fora. Mas varremos para debaixo do tapete toda a informação que tínhamos do ciclo menstrual, como se isto fossem old wives tales.
Aquilo que sabemos ao dia de hoje e porque felizmente a ciência evolui, é que temos de olhar para a menstruação neste momento, de duas novas perspetivas. A primeira ao nível da saúde, que vai de encontro ao que a nova evidência nos diz, ou seja, "vamos olhar para isto como um barómetro de saúde". No British Medical Journal, no final do ano passado, saiu um estudo importante, com alguma robustez, que nos falava sobre as irregularidades do ciclo, muitas vezes associadas com a síndrome de ovários policísticos, que é uma condição de saúde séria, ao nível endócrino, e uma das coisas que [o estudo] nos dizia era que não só estas mulheres têm menos qualidade de vida como morrem mais cedo. Portanto, temos de olhar para o ciclo menstrual como um barómetro de saúde, e isso significa que não o podemos inibir, ou quando o inibimos sabemos porque é que o fazemos. Mas não o podemos silenciar desde já sem entender primeiro o que ele nos quer contar.
Por outro lado, na vertente psicoemocional, [é importante] entender que as questões relacionadas com a menstruação têm dinâmicas que mexem diretamente com a forma como as mulheres vivem o seu corpo, a sua sexualidade e como se relacionam com o seu corpo, que também é muitas vezes falar em como se relacionam com a comida. E isto leva-nos a questões de saúde pública, de perturbações alimentares, da questão da estética, como é que olhamos para o corpo, enfim, não saíamos daqui. Temos de nos atualizar em relação a isto, nesta perspetiva da saúde pública, tirando o ciclo menstrual debaixo da patologia, debaixo da linguagem mágica. Dizendo que da mesma forma que se temos uma dor de estômago e é recorrente sabermos que algo se passa e que precisamos de alguma ajuda, pois todo o processo digestivo não é suposto acontecer com desconforto. É isto que estamos a precisar de enquadrar ao nível do ciclo menstrual. É preciso descomplicar e utilizar o conhecimento no sentido de dar mais informação e saúde às mulheres ou às pessoas que menstruam.

Defende a necessidade de uma formação específica para os profissionais de saúde que lidam de perto com estas questões ou é uma atualização de conhecimentos que deve ser feita a título individual?
Vai levar muito tempo (...). É necessário que todos aqueles que trabalham diretamente com uma comunidade que menstrua se atualizem. É quase uma responsabilidade ética imprescindível. Garantindo que com isso e com boas práticas e bons resultados, eventualmente isto afete a montante e a jusante e que as coisas se comecem a alterar até que cheguemos às sebentas universitárias e a essa atualização de conteúdos.

Há uma discussão em torno da linguagem sobre se devemos referir-nos a produtos "de higiene" ou produtos "de recolha menstrual". Isto é uma questão de escolha de palavras ou estamos na verdade a insinuar que o período é uma coisa suja?

É as duas coisas na verdade. Nas questões da cena menstrual é impossível evoluirmos todos ao mesmo ritmo. Nós temos o Paquistão, o Bangladesh, a Índia e o Nepal ainda a lidarem com coisas muito básicas ao nível da menstruação. A menstruação não é uma coisa suja, não têm de pôr as miúdas isoladas, isso foi uma prática que foi proibida há tão pouco tempo que na verdade foi ontem. Mas por outro lado, ao dia de hoje, na nossa sociedade, na sociedade ocidental contemporânea, nós precisamos de ter em atenção estas coisas que nos querem vender para problemas que não temos, mas que foram criados para que os produtos façam falta. Não estou a dizer que não precisamos de produtos de recolha, mas a questão da higiene menstrual está de facto associada a uma ideia de que temos de estar frescas, sem odor, livres de odores, todas aquelas manobras de marketing menstrual que conhecemos tão bem enquanto consumidoras. Temos de perceber que por detrás dessa linguagem, nesta mensagem subliminar, continuamos a perpetuar a ideia de que o sangue menstrual é uma coisa suja. E nós queremos vaginas asséticas, corpos próprios para consumo, não queremos líquidos a sair de sítios de corpos que nós queremos sexualizar. E é aqui que entramos nas dinâmicas da objetificação. Mas afinal é higiene ou recolha menstrual? Não é só sangue, como é o título do livro, e, para responder rapidamente à questão, também não é só uma escolha de palavras, temos de perceber que estas coisas contam, que têm um contexto e um peso histórico.
O copo menstrual e as cuecas menstruais são fenómenos recentes de popularidade, tendo por base a fundamentação ecológica. Mas ter um destes produtos ainda é uma questão de privilégio pelo seu custo. É possível ter esta discussão enquanto ainda se assegura as necessidades básicas de comunidades? Ou podemos andar a dois ritmos?
Podemos andar a vários ritmos. Parece-me essencial. Da mesma maneira que sabemos que há preservativos a ser distribuídos nos centros de saúde, sabemos que a maior parte das pessoas que faz consumo de preservativos, jovens adultos, não vão propriamente ao centro de saúde buscá-los quando tem a possibilidade de os comprar, numa farmácia, numa passagem rápida, etc. A mim o que me faz sentido são estes dois ritmos ao nível da recolha menstrual, que é por um lado garantirmos uma distribuição e um acesso gratuito, sem custo, para tudo o que são as pessoas que menstruam. Há muita pobreza menstrual escondida em Portugal. Nós somos um país de brandos costumes e de muita vergonha.
Quando comecei a falar das questões da vergonha menstrual, há uns anos, muitas vezes diziam que eu era doida e que isto era uma coisa que eu estava a tentar importar de outros países. Quando no Círculo Perfeito, no Instagram, comecei a falar sobre isto, choveram mensagens de pessoas que trabalham em escolas, que trabalham com comunidades que menstruam a dizer "isto é verdade, eu já tive de ir ao supermercado comprar pensos para as miúdas" ou "aqui não temos, não conseguimos aceder ou os produtos que temos não são os melhores e por isso não deixam as pessoas que menstruam confortáveis". Não nos podemos esquecer que há pensos higiénicos que pelo seu baixo custo têm uma capacidade de aderência muito mais reduzida do que outros e, eventualmente, se eu tiver acesso a um penso por dia no meu agregado familiar vou estar menos confortável para fazer a aula de Educação Física às cinco e meia da tarde do que se aquele fosse o meu terceiro ou quarto penso. Portanto, trabalhamos a dois ritmos, por um lado para garantir livre acesso e gratuitidade de produtos, para que haja dignidade menstrual disponível para todas as pessoas que menstruam. Por outro lado, para continuar a sensibilizar para as questões da ecologia que estão relacionadas com o enorme desperdício de quem menstrua durante 40 anos.

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