Testemunho: "Tive um 'mini AVC' no domingo de Páscoa. Um dia depois o Papa Francisco morreu."
A 20 de abril tive um acidente isquémico transitório, também conhecido como “mini AVC” – um AVC que se resolve em menos de 24 horas, sem deixar sequelas no cérebro. Raramente uma experiência má é igual a outra, mas no meu caso os sinais estiveram mesmo todos lá. É capaz de ter sido essa a minha sorte.
Um mês antes estava a jantar com uma amiga, também ela colaboradora habitual da Máxima, e do nada, como é meu hábito, disse-lhe: “Caracol, queres ver que ainda tenho um AVC?” Ela abriu os olhos de uma forma muito meiga, típica dela, e atirou-me o guardanapo para cima (ou pelo menos é assim que o lembro), como que a ralhar comigo: “Estás parva, não brinques com coisas dessas!” No momento parecia uma coisa muito parva, de facto. Tenho 43 anos. Aparentemente (e isto é uma palavra crucial, como veremos à frente) sou uma pessoa saudável. Estas tragédias só acontecem (aos outros) noutras fases, mais avançadas, da vida (deles). Porém, havia um motivo para o meu desabafo. Na noite anterior tinha tido uma dor estranhíssima no braço esquerdo – uma sensação nova, má, quase impossível de explicar por palavras; era física e não era física, estava dentro do braço mas estava fora, à volta, do braço – que tinha ficado gelado. Contei-lhe. “Tu vê lá! Achas que não é melhor ires ao hospital?” Não achei.
Uma semana depois, a mesma sensação esquisita. Outra vez à noite. Outra vez no braço esquerdo – que ficou outra vez gelado. E podia ter sido só isso, mas nas semanas seguintes comecei a sentir uma fraqueza e uma sonolência extremas, e por receio não sei de quê decidi apontar os dias que passei praticamente deitada, sem conseguir fazer nada: 11, 13, 16, 18 de abril. Sábado, 19, foi o culminar de uma série de avisos que, todos juntos, não eram assim tão fáceis de ignorar: já acordei enjoada, meio zonza, e ainda assim só me apetecia dormir. Mais tarde, mal cheguei à cama, percebi que aquela dor estranhíssima no braço esquerdo – um misto de formigueiro, de facas a entrar e sair na pele, do barulho de um portão velho de garagem a abrir e fechar, de uma dormência repentina em loop, de um frio paralisante – estava de volta. Vezes dez.
E, ao longo da noite, foi-se se estendendo à perna esquerda, que aos poucos se tornava inútil, de uma forma semi-apocalíptica que me permitiu contemplar, de forma incrédula e absurdamente inocente, que ainda me faltavam fazer algumas coisas antes de aceitar que estava perante uma daquelas cenas de filme em que o personagem normalmente não leva a melhor: acabar de rever Os Sopranos, celebrar o bicampeonato do Sporting, publicar um livro que está na gaveta a ganhar teias de aranha, aprender a fazer sapateado, fazer uma tatuagem com a minha afilhada (quando ela tiver mais de 18 anos, claro), arrumar a sala, um universo caótico onde passo 85% dos dias e cuja energia, acreditava agora, era a origem das minhas dores. Tanto tempo para fazer tudo – assumimos sempre que temos tempo, vivemos com essa ilusão, somos arrogantes a esse ponto – e de repente parecia-me que o meu livre-arbítrio se cingia ao passar de cada minuto.
Sabia perfeitamente o que estava a acontecer, por isso fiquei estática, à espera do momento certo para engolir o orgulho e aceitar que teria de estragar (uma vez mais) o almoço de Páscoa e ir ao hospital. Penso que é importante sublinhar que talvez me tenha sido mais fácil perceber “os sinais” porque lido com o péssimo humor da minha saúde desde muito cedo. Já me pregou várias partidas – umas mais sérias que outras, mas várias, constantes. Habituei-me, por necessidade, a (re)conhecer sintomas ou avisos de que algo pode não estar assim tão bem. Também por isso, pelas centenas de horas que já passei em hospitais, evito ao máximo deslocar-me a um. Alguns médicos entendem isso, outros não. Outros acham que as pessoas vão às urgências porque não têm mais nada para fazer, e olham para nós, as pessoas que vão às urgências, como um peso extra. É tudo o que direi sobre o tema, porque acredito que todos os encontros têm uma razão de ser, e que por cada profissional menos empático há vinte heróis que anulam a sua indiferença.
Se estou aqui, agora, “o resto é história.” Não sou particularmente boa a escrever sobre coisas científicas, pelo que reduzo o meu testemunho ao essencial. O mais importante, parece-me, já está: tudo o que senti antes e durante um acidente isquémico transitório (AIT). Não serei de grande ajuda para ninguém a discorrer sobre exames e tratamentos, prefiro acreditar que ao sublinhar os sintomas, que tantas vezes passam despercebidos (e/ou ignorados), posso levar duas ou três pessoas a ter mais atenção àquilo que o seu corpo lhes está a tentar dizer. Um AIT é um “mini AVC”, ou um AVC que se resolve em menos de 24 horas; é, de acordo com o site da CUF, um “bloqueio temporário e de curta duração – habitualmente, de menos de cinco minutos – do fluxo sanguíneo para o cérebro ou medula espinhal.”
No hospital, a primeira coisa que me fizeram foi um eletrocardiograma, para retirar a hipótese de um ataque cardíaco, e análises ao sangue. Depois seguiram-se uma série de testes à visão, à fala, ao movimento, à força, aos reflexos, etc. Aqui, efetivamente, nada estava normal. Esticava os braços ao nível do peito e o esquerdo caía, como uma folha de papel. O mesmo com a perna esquerda. Tinha muito frio. Uma enorme dor de cabeça. Sentia vontade de vomitar. Deve ter sido nesse fim de tarde que fiz a primeira tomografia computorizada (TC). Sei que depois disso foi decidido que ficava internada, “por precaução e para observação”, e para fazer mais exames. Na segunda-feira, 21 de abril, o Papa Francisco morreu (causa: um AVC que provocou uma insuficiência cardíaca irreversível), e eu, que tenho uma fé muito particular, mas simpatizava bastante com o Papa, fiquei a achar que a sua morte era uma espécie de milagre – ele tinha partido para me salvar. Fiquei três dias, fiz uma ressonância magnética (RM) com contraste, fisioterapia, e depois saí. A profissional de saúde responsável disse-me que não tinha sequelas, que parecia estar tudo no bom caminho, e deu-me um site americano com uma lista de doenças do foro físico para, imagino, escolher uma delas e acrescentar à minha lista de dramas pessoais. Voltou a ver-me passado quinze dias. Admirou os meus progressos – estava francamente melhor dos membros do lado esquerdo – aconselhou ginástica, terapia, meditação, e perguntou se já tinha ido espreitar o site. Não a voltei a ver.
Ainda não sei porque é que isto me aconteceu. Não o digo que uma forma filosófica, esse tempo já lá vai, digo-o de uma forma prática. Só agora, passados meses, e depois de “levar na cabeça” de vários médicos que me acompanham regularmente, é que ganhei coragem para enfrentar o dilema de frente e perceber que: a) a profissional de saúde responsável mandou-me embora com uma bomba-relógio na mão; b) eu aceitei. Leio em vários sítios que “uma vez determinada a causa do acidente isquémico transitório, o objetivo do tratamento inclui tratar-se a causa subjacente e a prevenção de AVC”, mas nada disso foi feito. O (meu) desejo de virar costas ao problema foi tão grande que se transformou no tradicional “se não falarmos do que aconteceu é porque não aconteceu.” A culpa também foi minha. Eu pus uma pedra no assunto, eu fechei a gaveta e tirei a chave. Não sou a paciente perfeita, longe disso, mas sou uma doente relativamente fácil. Troco a minha dor por um comprimido, prefiro um exame a uma infeção, dou a minha impaciência pelo meu bem-estar. Em abril, foi o facto de ter um historial clínico menos bom que me permitiu perceber que estava num momento crucial da minha vida. Quero acreditar que aprendi alguma coisa com isso. E que não volto a escrever sobre o assunto.
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