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"Educam-nos para sermos fortes e eu creio que a verdadeira força está em mostrar fraqueza"

Traição e luto, solidão e redescoberta. Aprender a Falar com as Plantas, de Marta Orriols, é um livro sobre uma mulher obrigada a reinventar-se. Em tempos incertos, faz ainda mais sentido olhar novas perspetivas e acreditar que há sempre uma saída.

23 de junho de 2020 às 07:00 Rita Lúcio Martins

Uma mulher de 42 anos, médica, almoça com o marido que, inesperadamente, lhe diz ter-se apaixonado por outra mulher. Horas depois é atropelado, acabando por morrer. Estas linhas iniciais servem para lançar a história de Aprender a Falar com as Plantas (Dom Quixote), mas, naturalmente, não resumem a obra. Nela se conta com calma, precisão e elegância os desafios e dramas que essa mulher, Paula, terá de atravessar para se reerguer, dos mais óbvios aos mais subtis. É disso que nos fala Marta Orriols (Sabadell, Espanha, 1975), a autora, à semelhança da sua personagem, também viúva.

Escreveu-nos de sua casa, em Barcelona, onde permanecia retida como os demais espanhóis devido à tragédia do coronavírus, com os dois filhos, olhos presos na televisão, quem sabe se a recolher as imagens que inspirarão as próximas obras. Formada em História de Arte, revela que nunca exerceu a profissão, mas é daí que vem parte do seu método: "A cineasta Agnès Varda tem um documentário intitulado Os Respigadores e a Respigadora em que, entre outras coisas, defende que o artista é alguém que vai recolhendo dados, daqui e dali, até transformar a realidade.

Sinto-me muito próxima dessa forma de escrita. Creio que escrevo a partir de recordações, de conversas captadas no ar, de sensações e, sobretudo, de imagens. De facto, quando um artista se dispõe a pintar, esculpir ou fotografar está de algum modo a moldar uma narrativa que evoca algo em concreto: há uma mensagem a transmitir, uma sensação, uma emoção, uma denúncia… Creio que quando escrevo faço o processo inverso: através das palavras gosto de criar uma imagem plástica da narrativa na mente do leitor."   

Assume-se como uma escritora de personagens. Como nasceu a Paula, a protagonista da sua história?

Para mim, as personagens são o motor narrativo de toda a história, são aquilo que mais entusiasma. Fascinam-me as pessoas, as relações que estabelecem umas com as outras e com elas próprias, e, talvez por isso, me empenho muito na criação das personagens. Este é um romance de segundas oportunidades narrado por uma voz que, apesar das circunstâncias, se atreve a dialogar consigo própria sem preconceitos, reconhecendo que, muitas vezes, é na queda que se descobrem as chaves da sobrevivência. Paula nasce dessa queda. Gosto particularmente das personagens que estão a ponto de se desmoronarem e precisam de assumi-lo, e de descobrir quem realmente são. Não queria uma personagem amável. Interessava-me trabalhar o campo das emoções, ter uma personagem com várias camadas que o leitor fosse descobrindo pouco a pouco, até finalmente poder compreendê-la.

Decidiu fazer dela uma neonatologista, alguém cujo dia a dia é estar em situações-limite, a vida por um lado, a morte por outro.   

Queria criar uma mulher totalmente imersa no seu trabalho para que, quando lhe acontecesse aquilo que aconteceu [a morte repentina do companheiro], se visse obrigada a sair detrás do escudo da profissão de forma a enfrentar não só a nova realidade, mas também ela própria. Pareceu-me que a profissão de médica era apropriada. Comecei por fazer dela uma cardiologista: parecia-me atraente do ponto de vista literário que alguém, cuja profissão fosse tratar corações, tivesse o dela destroçado. Mas um dia, numa conversa com uma amiga sobre algo que nada tinha a ver com o meu livro, ela falou-me de uma amiga sua, neonatologista, e, nesse momento, ficou tudo claro. Era uma profissão que nem me tinha ocorrido, mas que de repente parecia fazer crescer todo o simbolismo da história porque conseguia unir vida e morte na mesma profissão, num mesmo espaço e na mesma pessoa. Contei com a ajuda de uma neonatologista para me documentar, passei um dia com ela na sua unidade e consultei muita bibliografia. Ela fez a revisão das partes médicas do meu texto. O Colégio Oficial de Neonatologia da Catalunha também leu a obra, que recomenda. Isto é bonito, emociona-me muito.

Há na Paula uma certa elegância difícil de explicar, tem a dose certa de sobriedade e de simplicidade. É uma personagem muito empática, sem nunca se tornar óbvia. Acredita que as mulheres (as leitoras) se relacionarão com ela de uma forma diferente?

Creio que é vital narrar as personagens femininas de todos os ângulos possíveis. Até há bem pouco tempo, estávamos todos acostumados a encontrar personagens femininas muito limitadas ao cliché. Eu queria uma mulher do século XXI numa novela de luto, ou seja, uma mulher capaz de seguir adiante sozinha, cujo objetivo não passa por reconstruir-se com outro casal, mas fazê-lo sozinha. Uma mulher que contempla a possibilidade de não ser mãe como uma opção válida. Uma mulher que não é uma boneca partida, chorando, rodeada da compaixão dos outros. Não digo que todas as mulheres devam ser desta forma. Digo, apenas, que não queria uma personagem igual a tantas outras que já existem na literatura. A Paula é alguém que vive, sente, chora e deseja à sua maneira. Que se irrita muito quando lhe dizem o que devia sentir face à morte do companheiro. Creio que nós, leitoras, agradecemos personagens reais e que nos devemos desapegar dos clichés que projetam a imagem feminina imposta pelo patriarcado. Eu procuro a empatia quando leio e quando escrevo. Espero que as mulheres (e os homens) que o leiam se relacionem positivamente com ela.

Era importante fazer uma separação entre a Paula e a própria Marta ou será algo inevitável, essa dose autobiográfica na escrita de um romance?

Quando escrevemos acabamos sempre por contar a nossa forma de entender o mundo. Obriguei-me a criar uma grande distância entre a personagem e a minha pessoa, caso contrário a dor limitar-me-ia muito. Inventei uma mulher com características vitais muito diferentes das minhas, uma história de casal que não teve nada a ver com a minha e uma morte que em nada é parecida com a perda que sofri. Ainda assim, a morte é um material literariamente delicado. Dizia Lucia Berlin, sobre o facto de abordar matérias delicadas, que deve haver uma alteração quase impercetível da realidade, uma transformação, mas nunca uma deformação da verdade. Eu acrescentaria que, em qualquer texto, o que emociona não é a identificação com a situação, mas este reconhecimento da verdade. Pois bem, a minha verdade é essa dor e a necessidade de aprender a reescrever o guião da minha vida. 

Confessa que houve um livro, Nora Webster, de Colm Tóibín, que foi importante para si. Ler um livro pode ser tão libertador quanto escrevê-lo? 

Bom, eu defendo que ninguém deveria escrever se não tem a leitura como uma constante vital. Ler é, simultaneamente, uma escapatória e um refúgio para mim, muito mais do que escrever. Tento encarar a escrita como o meu trabalho e, evidentemente, quando nos dedicamos a isso organizamo-nos e pensamos de forma mais clara. Mas a leitura liberta-me mais do que a escrita, isso é certo.

O seu livro fala muito de perda e de solidão, ideias e sentimentos particularmente pertinentes nos dias que correm. Porque é que se tornou tão difícil conviver connosco próprios, sem distrações ou ruído exterior?

Porque há décadas que vivemos uma forte crise de silêncio e creio que o novo modelo de comunicação surgido com as redes sociais incita-nos a mostrar-nos publicamente. Interiorizamos como sendo completamente normal que alguém que não conhecemos veja as nossas fotografias, leia sobre os nossos estados e vice-versa. Estamos cada vez mais "intoxicados" e somos menos coerentes com os nossos ideais porque vamos tomando como verdade a filosofia barata que nasce desse ruído exterior. Tenho a sensação de ter perdido a calma que me definia.    

Continuamos, nomeadamente em comparação com as culturas orientais, a não saber lidar com a morte?

Não, não sabemos. A morte é um tabu porque temos medo de tudo o que desconhecemos. Na realidade, os humanos, como seres frágeis que são, desabam facilmente face ao desconhecido. É muito mais fácil ceder à indústria da felicidade, ao capitalismo a que estamos tão habituados. É por isso que face à morte, quando estamos a lidar com uma perda, aceitamos que nos digam: ergue-te, segue com a tua vida, sai com os amigos, põe-te bonita, desfruta do sexo, continua a celebrar. O lado definitivo da morte coloca tudo isto em stand-by. Não sabemos como geri-lo, como respeitar o tempo, a tristeza, a reflexão. A dor é muito necessária num momento tão estranho e especial. Educam-nos para sermos fortes e eu creio que a verdadeira força está em mostrar fraqueza quando ela aparece.

E como é com a traição? No livro, ela esvazia-se perante a tragédia, de certa forma… Tem a ver com priorizar?

A infidelidade de Mauro está na história para dar à trama um caminho diferente daquele que teria se fosse somente uma perda devido à morte. Interessava-me literariamente jogar com dois tipos de perda e de dor para levar a protagonista ao limite. Também o fiz para abordar outro tabu: o incómodo que o sexo pode representar durante ou depois de um processo de aflição. Creio que o desejo é o que está mais distante da morte e de tudo o que a rodeia. Por isso acreditava que literariamente a ideia podia funcionar. Com isso, conseguia ainda abordar outro tema interessante: a culpa. A Paula, às vezes, está tão presa ao tema da infidelidade que ele lhe pesa mais do que a própria morte.

A Paula precisou de fazer essa travessia, uma espécie de imersão, para se redefinir. Acredita que este momento de reclusão que atravessamos pode ser uma oportunidade nesse sentido? Como é que está a viver este momento?

Creio que esta pandemia nos vai redefinir. Eu própria terei de me reinventar caso o impacto no setor editorial seja tão forte como se prevê. Num plano mais emocional, diria que enquanto durarem estes meses de incerteza e de permanência em casa, trataremos de tentar entender-nos melhor, entender o mundo, corrigindo certos comportamentos que temos vindo a adotar em sociedade, ainda que, quando terminar este estado de alerta e pouco a pouco voltarmos à normalidade, não tardemos a comportar-nos como agora. Não sou nada otimista relativamente ao destino da humanidade. Também é verdade que respondo a estas perguntas no quinto dia de isolamento em casa, sozinha com os meus filhos, escutando ao longo de todo o dia notícias que me fazem ter medo face ao que está para vir. Oxalá daqui a uns meses seja capaz de responder a esta questão de uma forma mais otimista.

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