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"Esta gravidez não vai evoluir, olhe para a quantidade de sangue"

Porque é que a culpa é sempre das mães? Com pouco tempo, muito trabalho e a lidar com uma pesada carga mental, a maternidade do séc. XXI continua mais à beira de um ataque de nervos do que de uma revolução. Às mães, exige-se devoção e instinto, mas o que acontece quando uma mulher não consegue interpretar o "seu" papel?

Foto: Getty Images
29 de dezembro de 2023 às 11:22 Rosário Mello e Castro

A notícia é daquelas que nenhuma mulher (ou homem) quer ouvir. Grávida de apenas oito semanas, um susto físico levou-me às urgências de um hospital no Algarve, onde o médico obstetra de banco me devolveu o diagnóstico com a descontração de uma noite de verão. "Esta gravidez não vai evoluir, olhe para a quantidade de sangue", anunciou com o levantar de um instrumento plastificado, perigosamente perto da bata aberta até meio do peito. Três horas de espera, 10 minutos de consulta e apenas uma recomendação a levar para casa: "De que é que estava à espera? Não devia andar na praia com este calor." Mais de um ano depois, a gravidez evoluiu – afinal – para um bebé sorridente, que gatinha para trás e faz questão de chorar a plenos pulmões, mas a culpa de poder ter gerido mal aquelas primeiras semanas continua lá. A batalha contra a permanente sensação de falha tinha apenas começado. "A maternidade é um momento de reconfiguração da identidade das mulheres", avança Dulce Morgado Neves, socióloga e investigadora do CIES-ISCTE (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia). "A mudança pode ser muito ou pouco intensa mas, na maioria dos casos, implica uma multiplicação de papéis. No caso das mulheres, passam a ser mães para além de amigas, filhas, namoradas/mulheres", resume. O sentimento de se estar a falhar nalguma destas funções torna-se, assim, uma quase inevitabilidade, podendo surgir logo no período de gestação (ou mesmo quando se está ainda a tentar engravidar) e intensifica-se quando o bebé finalmente chega. A cartilha de responsabilidades de uma boa mãe é imposta desde cedo nos comentários de estranhos que nos tocam na barriga enquanto esperamos na fila do supermercado ou em conselhos autoritários de familiares que só querem o melhor para o bebé.

Dulce Morgado Neves diz que a amamentação é uma das primeiras portas de entrada para a culpa porque é também uma das primeiras portas de entrada para a noção do que é ser-se uma boa mãe. "Subsiste a ideia de que se trata de uma escolha quando, na verdade, é uma não escolha: é óbvio que uma mulher deve amamentar, é esse o discurso social da boa maternidade, é uma decisão natural." Tão inata quanto as sucessivas imagens que vemos desse momento ao longo da vida, mãe e bebé conectados num vínculo inquebrável, emocional e físico, a saúde e o futuro do bebé diretamente dependentes deste precioso líquido que inspira tanta felicidade quanto falhanço. É o sucesso pessoal e profissional da criança que está em jogo. E se é verdade que os múltiplos e importantes benefícios do leite materno estão estudados, a saúde mental das mães que o produzem nem por isso. "O problema", continua a socióloga, "é que a amamentação implica um enorme conhecimento pericial, investigação, procura de consultoras especializadas" e um universo vastíssimo com o qual poucas mulheres se deparam antes de terem o primeiro filho. Por outras palavras, o que é natural pode implicar uma enorme logística, que muitas vezes se esconde nos bastidores das nossas vidas. "A isto acrescenta-se o facto de vivermos num mundo cada vez mais individual e, de certa forma, isolado, o que leva a que a transferência de conhecimento se perca ou seja muito diferente da que existia antigamente, incitando à procura da ajuda de profissionais." O resultado é paradoxal: se a mãe não amamenta é irresponsável, se o prolonga para lá de uma determinado período de tempo, é porque se tornou uma dependência.

A culpa materna nem sempre é racional, mas o mesmo não se pode dizer da sua origem, que a filósofa francesa Elisabeth Badinter tão bem questionou em Um Amor Conquistado. O mito do amor materno, nos início dos anos 80. "Fiz de tudo para continuar a amamentar, mesmo com mamilos em carne viva. Quando a minha filha bebeu fórmula pela primeira vez, chorei baba e ranho. Hoje percebo que nada daquilo fazia sentido", conta Paula Cosme Pinto, ativista pela igualdade de género e coautora do podcast Um Género de Conversa. Mãe há quatro anos, conhece bem a sensação de impotência que é querer fazer tudo como antes e ver as suas capacidades diminuídas, logo a começar na gravidez. "Sofremos horrores a tentar encaixar naquela ideia do suposto desígnio da mulher, a tentar perceber como escapar de uma narrativa construída durante séculos." É uma crise de identidade à espera de acontecer. "Passamos nove meses em sobrecarga biológica, vemos a vida pessoal e profissional afetada por sucessivos enjoos, cansaço extremo e a constante pressão para viver um estado de graça que, na verdade, nunca chega", resume. Ouvimos constantemente que "gravidez não é doença", mas é raro ver-se grávidas a dar pulos de felicidade. A pressão para "estar sempre bem" é inevitável. Outro problema é o acompanhamento que é feito na gestação e no pós-parto e que muitas vezes deixa de fora uma série de questões, principalmente de saúde mental. Uma mãe passa de consultas mensais com o obstetra para uma consulta de pós-parto muitas vezes apenas técnica, as questões da maternidade transferem-se para o pediatra e outros especialistas. São raros os momentos depois de o bebé nascer em que se pergunta a uma mãe como se sente. "Tive a sorte de ter um médico de família e uma enfermeira-parteira que o fizeram, o que foi uma enorme ajuda, mas sei que foram uma exceção", conta Paula Cosme Pinto.

A psicóloga Maria Serra Brandão, fundadora da Eternity Clinic, em Lisboa, especialista em sono e em particular no sono dos bebés, acredita que é preciso normalizar a existência de algum sentimento de culpa, mas que o segredo está em saber geri-lo a favor de cada personalidade. "É uma questão de expectativa", diz. "As mulheres são mães cada vez mais velhas e quando chegam a essa fase já lhe foram criadas uma série de pressões sobre o que devem e não devem ser", explica. Logo a começar pelo timing em que se decide ter filhos, "a pressão biológica que existe nas mulheres, ao contrário dos homens, tem logo um peso", diz. "Uma mulher que decide ser mãe tem de fazer uma gestão da sua carreira, da sua vida, para concretizar esse projeto, muitas vezes fica à espera do momento certo e adia a maternidade cada vez mais." Defende que não se deve patologizar tudo, mas que é importante consciencializar profissionais de saúde para questões como o sono, que tanto afeta a vida dos pais, trabalho que faz através das aulas que dá na Escola Superior da Cruz Vermelha. "Já tive mães que choraram durante toda a consulta do sono, muitas vezes é a primeira vez desde que tiveram filhos que alguém fala com elas sobre elas e não sobre os bebés", conta. "Há muitas mães exaustas."

A conciliação da maternidade com a vida profissional é outro caso paradigmático: quanto mais intensa é a carreira da mulher, mais esta corre o risco de se penalizar por estar a falhar como mãe. "As expectativas que as mulheres têm para si próprias não estão desligadas das expectativas sociais. Essa tensão externa pode resultar em mulheres que olham para si e não se reconhecem, mulheres que se sentem diferentes e não percebem porquê", descreve Dulce Morgado Neves. No caso português, a missão de conciliar trabalho e família, tão profundamente documentada na investigação Género na Rush Hour of Life, coordenada pela socióloga Anália Torres, é especialmente difícil porque temos mulheres tão ou mais qualificadas que os homens, sujeitas às mesmas pressões laborais, mas que quando chegam a casa começam uma espécie de segundo turno. "Tanto as mães como os pais trabalham, só que a pressão de cuidar continua desproporcionalmente entregue às primeiras." Mais: enquanto noutros países a transição para a maternidade é feita com algumas alterações laborais, entre elas licenças de maternidade mais longas e mais bem pagas, horários mais reduzidos ou mesmo alterações do vínculo laboral para part-time, por cá a tendência é para acumular o papel de mãe sem grandes alterações à carreira. É isso que também se espera de uma boa mãe, ao contrário do que acontece, por exemplo, noutros países latinos, em que se assume como normal que as mães abrandem durante os primeiros tempos de maternidade. A boa notícia, assegura Dulce Morgado Neves, é que, pelo menos em determinados contextos, está-se a contestar esta ideia, "existe finalmente um discurso público que quer contradizer o ideal da mulher sacrificial, as mulheres não são supermulheres, não se pode exigir que façam uma coisa e ao mesmo tempo o seu contrário". Além de que as políticas públicas, como as licenças de maternidade partilhadas entre homens e mulheres, têm incentivado o equilíbrio dos papéis e a redução da carga de trabalho das mães. "Muitos homens querem fazer o seu papel e quando chegam às suas empresas com essa intenção deparam-se com os problemas que as mulheres enfrentam desde sempre quando tentam sair para uma consulta com os filhos ou tratar deles quando estão doentes. É preciso reconhecer que cuidar de uma criança tem valor económico, é um direito, não apenas um dever."    

Crescemos com ideias sociais muito claras do que deve ser uma boa mãe e, por isso, o embate com a realidade é particularmente chocante. Desde o fim dos anos 80, que a Máxima aborda o tema com artigos tão relevantes como "Amor Materno…Nem sempre o que parece é", de 1992, ou "Mães. Muito trabalho, pouca ajuda", de 1995. Trinta e cinco anos depois, o mundo mudou, mas não tanto quanto gostaríamos. Carregar, nutrir e ver crescer um bebé é um dos processos mais belos da Natureza, é certo, mas o reverso da medalha continua escondido atrás de montras, como as redes sociais e não só, que ainda não conseguimos partir. É que os miúdos provavelmente estão bem – a saúde mental das mães é que não.

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