"A linha telefónica não é uma solução porque não resolve a falta de médicos nem o caos das urgências. Não protege nem organiza"
Uma nova medida obriga as grávidas a ligar primeiro para a linha de apoio do SNS antes de se dirigirem às urgências obstétricas. A opinião de Joana von Bonhorst, fundadora e presidente d'O Cordão.

Os dois traços materializados num teste de farmácia carregam neles o início de uma das maiores revoluções da vida humana. Desejada ou indesejada, planeada ou por acidente, com ou sem apoio, pouco importam os conceitos na medida da metamorfose que se segue, independentemente do seu desfecho.
A gravidez é certamente, para a esmagadora maioria das pessoas, a experiência mais transformadora de uma vida. A certeza da incerteza. Uma glória de sequências biológicas e químicas que quase roçam o milagre mais místico. Alquimia. Abre-se nela a exposição à vulnerabilidade absoluta, aos limites sobrehumanos de um corpo em mutação, à ambiguidade quase absurda entre o previsível e o imprevisível, o controlo e a redenção, o desconhecido de um futuro que é afinal, ao mesmo tempo, palpável, e que se conta fisicamente em semanas e trimestres. Admirável abstrato. Um futuro que passa a acontecer a cada dia, nas decisões e escolhas do presente, com o peso da responsabilidade transversal de quem passa a viver além de si, num exercício contínuo de humildade. Uma possibilidade de futuro. Ou cicatriz.

Aí, algures entre as duas linhas e a realidade, o lugar da revolução tem de acontecer num plano pessoal e privado que não cumpre nem pode obedecer ao plano burocrático, económico e capitalista dos papéis, automatismos, protocolos, algoritmos e números. Um plano que exige ser imune ou escudado de preocupações supérfluas e stress induzido e no qual políticas não podem ser barreiras ao cuidado.
O papel de todas as pessoas que rodeiam a pessoa que está grávida, mas sobretudo de um Estado que se quer justo, democrático e humano, é suportar e garantir a saúde e o bem-estar, protegendo condições de vida dignas e o direito ao cuidado e assistência para que possa viver a experiência de forma segura, informada e positiva.
Nas últimas décadas, mas sobretudo nos últimos anos, temos assistido ao contínuo desinvestimento naquela que é das mais generosas e igualitárias ferramentas democráticas do nosso país. O Serviço Nacional de Saúde, que na sua génese tem o dever de promover, prevenir e vigiar, oferecendo cuidados de saúde individuais e colectivos, sem descriminação nem excepção, está cada vez mais longe de cumprir o seu desígnio. O tal direito "de todos à proteção da saúde e o dever de a defender e promover", que consta na nossa constituição está a ser posto em causa. A mal de todas e todos.

Ironicamente, a realidade trágica dos últimos tempos mostra que são precisamente as áreas que se ocupam da saúde da mulher e da criança, o pré e pós-revolução, aquelas que mais têm sofrido com o desleixo e abandono. Somam-se as notícias de urgências caóticas, falhas graves no acompanhamento da gravidez, partos em ambulâncias, ecografias sem agendamento, planos e operações políticas que são remendos insuficientes. E, ainda, os relatos de experiências traumáticas, violentas e negligentes que marcam para toda a vida.
Em Portugal, faltam recursos, médicos, enfermeiros, ambulâncias, técnicos, máquinas.
Mas existem horas extraordinárias infinitas, bancos sem fim, equipas depauperadas, rácios em incumprimento, profissionais exaustos e lógicas remuneratórias absurdas que pagam mais a tapa-buracos que a equipas fixas.

Milhões sem médicos de família, listas de espera que não obedecem ao tempo das necessidades (muito menos quando os prazos e o rigor do resultado funcionam em métrica de semanas), serviços de urgência fechados que obrigam a deslocações de centenas de quilómetros para garantir atendimento. Mas temos linhas telefónicas, atendedores automáticos e algoritmos de ponta.
Se sairmos da esfera que o privilégio protege, uma pessoa que esteja hoje grávida e que dependa do SNS, encontra inúmeros obstáculos naquilo que é o acompanhamento exigido por qualquer organização de saúde. Muitos são os casos de dificuldade no acesso a consultas nos Centros de Saúde, no acesso a rastreios e ecografias por falta de vagas e no acesso a Urgências, cujos mapas de funcionamento são autênticas lotarias. Podemos ainda juntar a tudo isto, a falta de intérpretes e tradutores que, num país onde a natalidade anda a conta gotas e depende de pessoas estrangeiras que escolhem aqui ter os seus filhos, empurram para a completa alienação milhares de pessoas que ao não falarem a língua-mãe, não compreendem nem podem comunicar, sendo excluídas de um processo informado e digno.
Qualquer pessoa que conviva com pessoas que estiveram grávidas recentemente conhece o impacto real da soma de todas estas falhas, barreiras, lacunas e violências.
As associações que se dedicam ao tema, de forma independente e muitas vezes voluntária (como é o caso do CORDÃO, do OVO e da APDMGP), têm vindo a alertar para a doença do sistema pois são quem está na linha da frente, em contacto com a comunidade, na recolha de dados, relatos e experiências. São quem, à falta de meios públicos, tenta colmatar falhas e prestar apoio absolutamente necessário para o restabelecimento de bem-estar e qualidade de vida e, por vezes, à justiça e cumprimento de direitos fundamentais. São também, as associações, aquelas a quem sempre foi recusado o diálogo por parte de governos e ministérios.
Agora, além de todos os entraves anteriores, às pessoas grávidas é exigido que realizem chamadas telefónicas para uma extensão da conhecida linha SNS24, antes de se dirigirem a Serviços de Urgência Obstétrica e Ginecológica naquilo que é, segundo o Governo, uma medida de organização que garante uma "resposta rápida e segura", justificada com a afluência desnecessária a estes serviços. Mas quando tudo falha num sistema, a culpa é de quem nele procura apoio?
Desde o ínicio desta semana, em Lisboa e Vale do Tejo, é obrigatório a quem, na posição de vulnerabilidade física e emocional que simboliza uma normal gravidez, na desconfiança ou certeza de que algo de errado se passa consigo ou com a revolução em curso dentro de si, faça uma chamada para um serviço de atendimento telefónico, navegando o labirinto burocrático, económico, capitalista, dos papéis, automatismos, protocolos, algoritmos e números que fará o escrutínio da gravidade do relato e lhe dará acesso aos cuidados disponíveis.
Sem qualquer campanha informativa para utentes, sem programas ativos de literacia para a saúde e sem período de adaptação ou transição, a medida foi anunciada a uma sexta-feira e entrou em vigor na segunda-feira seguinte.
Colaram-se cartazes e fecharam-se portas.
A quem desconhecia a novidade, barraram-se entradas, apontando para telefones colocados à entrada das Urgências, naquilo que simboliza um ato de insensibilidade atroz.
"Situações de emergência são excepção e admitidas de forma directa nas Urgências", garantem. O Governo deslocou assim aquele que é um dever e responsabilidade do Estado, para um plano individual em que uma pessoa, em plena revolução, tem de decidir sozinha, o que fazer numa situação de alarme. Um exercício de discernimento quase no plano da bola de cristal que, até para médicos experientes, é difícil de fazer.
Num país em que a literacia em saúde é escassa, em que a saúde da mulher é ainda um tabu, em que nas comunidades abundam mitos e ideias ultrapassadas, em que a informação atualizada e gratuita é escassa, em que o acompanhamento de gravidez é curto, apressado e, muitas vezes, feito de checklists batidas a eito, a irresponsabilidade de se aplicar um projeto-piloto a esta população tão específica é um risco que vale literalmente por dois e cujo preço de um eventual erro é demasiado alto. A linha telefónica não é uma solução porque não resolve a falta de médicos nem o caos das urgências. Não protege nem organiza. Complica, afasta, restringe e limita.No primeiro dia, há relatos de mais de 40 minutos de espera em linha. Entre segunda e quarta-feira, das 1712 pessoas que ligaram para a Linha SNS24, 326 foram encaminhadas para centros de saúde, 68 ficaram em regime de autocuidado e 93 tiveram o socorro de emergência pré-hospitalar accionado. O desvio de 28% dos casos para alternativas às urgências significa que a maioria das chamadas se traduzia em situações reais de urgência Situações urgentes ou emergentes às quais foi exigido um procedimento extra, de pura burocracia económica e desumana que implica tempo. Tempo que, em tempo de revolução, vale ouro (ou vidas).
Resta saber, agora, de onde surgirão subitamente os médicos (os tais que, como se sabe, estão cronicamente em falta por todo o país) necessários para a realização do acompanhamento destes encaminhamentos e quais os prazos previstos para consultas abertas em hospitais e centros de saúde.
É que por melhores que os algoritmos sejam, ainda não geram pessoas.
