Histórias de Amor Moderno: “Dei-me conta de que me sentia só quando percebi que não fazíamos sexo há algumas semanas”
“Dei comigo a bisbilhotar-lhe a carteira, a abrir-lhe o computador, a vasculhar os perfis de amigas do Facebook e do Instagram.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Lembro-me da chuva alagando os passeios e as ruas, caindo de tal maneira copiosa que eu tinha dificuldade em ver através do pára-brisas. Era fim de novembro, a luz do dia rareava quando estacionámos. Minutos depois, era noite escura, mesmo que o relógio marcasse só seis da tarde. Quem diria que eu, adulta, independente, progressista, emancipada e dona do meu nariz, haveria de estar ali, naquele ocaso de um dia chuvoso de outono, sentada no carro, ao lado do meu pai, a fazer uma espera vigilante.
Como um par de detetives privados dos filmes noir, permanecíamos silenciosos e atentos. Cada gesto amplificado pela ausência de outros ruídos - se um braço se mexe, o parceiro olha logo; se os dedos de um fazem batuque nas calças ou no volante, o outro repara de imediato. Tudo o que acontece lá fora ganha, de repente, importância: aquela senhora que sai da farmácia de gabardine escura com dois sacos de papel na mão - o avio vai ficar todo encharcado; o homem de boina, ali nas arcadas, a lutar contra o vento enquanto tenta acender o cigarro - "é uma boa oportunidade para deixar de fumar", nota o meu pai com a sua ironia cínica. Diante de nós, do outro lado do pequeno jardim suburbano, o alvo da vigília: um prédio pequeno-burguês do final dos anos noventa. As luzes do hall acendem-se automaticamente sempre que os sensores detetam a presença de alguém. De cada vez que a luz se acende, sustemos os gestos e a respiração, fazemos zoom com o olhar: será agora que ele desce?
Alguns meses atrás, comecei a sentir-me só. A sensação de solidão, quando partilhamos a vida com alguém, não é uma coisa que nos aconteça de repente, não é um fenómeno implacável que nos derruba. É antes como o fruto de uma erosão demorada e paciente, e nós, rochas distraídas, damos por ela só quando já muito de nós se transformou em areia. É uma realidade feita de pequenas coisas, constituída por pequenas partículas quase impercetíveis, que dificilmente fariam soar alarmes. No meu caso, dei-me conta de que me sentia só quando percebi que não fazíamos sexo há algumas semanas. A periodicidade das relações não é boa nem má, saudável ou deficiente só por si. Mas quando o ritmo abranda é porque alguma coisa mudou. E se acaba por deixar de acontecer, é porque a mudança foi profunda e severa.
Não falei com o Nelson sobre o assunto. Não faz parte do meu feitio pensar logo no pior dos cenários. As distrações do dia-a-dia, o trabalho, um filho, o cansaço, a rotina, o hábito, todos os ingredientes reunidos por uma relação de vários anos - conhecemo-nos ainda antes do liceu, começámos a namorar tínhamos 15 anos, eu, 14, ele - vão ter efeito, mais tarde ou mais cedo, no comportamento e nos desejos. Basta que andemos distraídos. Só que nós tínhamos uma vida sexual razoavelmente ativa, dadas as circunstâncias. Além disso - e talvez tenha sido esse o meu despertador -, fomos sempre muito afetuosos um com o outro, atentos um ao outro. E, no dia em que fiz contas ao sexo, percebi que o Nelson também não me dava atenção - daquela atenção simples e pura. Estava desligado, desatento.
O meu ex-marido era bonito. Refiro-me ao Nelson. Era charmoso e, desde que começou a frequentar o ginásio, tornou-se ainda mais apetecível. Já com os seus trinta, é certo, mas uns trinta muitíssimo bem conservados e, entre máquinas, passadeiras e haltéres, cada dia mais cuidados. O ginásio, aliás, começou por ser uma maneira simples de fazer cardio: uma vez por semana, uma hora de passadeira. A velocidade do tapete foi aumentando e a aptidão física do Nelson também. Começou a querer experimentar outros exercícios. Trabalhou os abdominais, os dorsais e as coxas, os bícepes, os trícepes e os glúteos. E que bem os trabalhou. Entretanto, a ocupação displicente da hora semanal na passadeira transformou-se em quatro idas por semana ao ginásio.
Eu lidava bem com isso, até porque os resultados eram esteticamente aprazíveis. Quem não gosta de ter um homem em forma? E esse foi outro aspeto que gerou mais um grão de areia, um pequeno alarme, uma daquelas desconfianças leves que nos fazem dizer "humm". Pela mesma altura em que percebi que me sentia só, comecei a olhar com mais atenção para o meu marido. Para o corpo dele. Continuava em forma, é certo, mas já não era nenhum Hércules. E, então sim, a matemática já começava a não bater certo.
Nunca quis parecer paranóica. Nunca quis que o Nelson suspeitasse que eu andava desconfiada. Então, tentei seduzi-lo e perceber como reagia. Tentei tirar a limpo se ainda tinha ou não desejo por mim. Tesão. A palavra é tesão. Às vezes tinha, outras nem por isso. Comecei a perder o controlo sobre mim. Dei comigo a bisbilhotar-lhe a carteira, a abrir-lhe o computador, a vasculhar os perfis de amigas do Facebook e do Instagram. E invariavelmente não encontrava nada de conclusivo. Até cedi aos meus impulsos mais primários e aceitei a minha própria sugestão de ir vê-lo ao ginásio. Fui três vezes no espaço de duas semanas. Nunca o encontrei.
Durante mais um jantar banal em casa, cada um a olhar para o seu telefone, ao fundo as notícias de crimes e desgraças como som de fundo, no prato uma comida encomendada fora pela aplicação no telefone e entregue por um desconhecido montado numa bicicleta. E eu decidi quebrar aquela espécie de silêncio zombie, cheio de ruídos absurdos. Perguntei-lhe "achas que estou gorda?" Ele levantou os olhos do Pad Thai, mas não largou o telefone, "o quê?" "Se estou gorda: Perguntei-te se achas que estou." Disse que não, mas disse-o sem convicção, sem crença, como se me despachasse para voltar de novo a atenção para o telefone. Até encolheu os ombros e prosseguiu com a sua atividade. Eu decidi continuar. "Acho que estou. Tenho uma gordurinha aqui que gostava de reduzir", e mexi na cintura, apertei a pele, estiquei e mostrei-lhe. Olhou, mas só de raspão, e fez "u-hum". Continuou a mastigar e a olhar para o ecrã. Na televisão, a repórter falava de qualquer coisa relacionada com um cão, um Pincher, que tinha ficado fechado num apartamento. Lembro-me porque uma pessoa memoriza estas coisas: nesse momento a pergunta "mas que raio é que está a acontecer aqui?" ressoou na minha mente, mas como se estivesse escrita em letras grandes néon. Disse-lhe "vou-me inscrever no teu ginásio". Parou de mastigar e olhou para mim. "Até podemos ir juntos", disse-lhe.
O Nelson discutiu comigo nessa noite. Não por causa do assunto "ginásio". Ou, pelo menos, não de um modo diretamente relacionado. Sei que ficou agastado, desagradado, e que isso o deixou enervado. Discutiu comigo por causa do canal das notícias. "Por que raio estás sempre a ver isso? Temos mais de 200 canais e tu escolhes sempre essa porcaria! É só mortos e crimes e repórteres em direto do local." Fiz notar que fora ele a mudar de canal, sublinhei que eu raramente tocava no comando da televisão. Ficou ainda mais furioso. No dia seguinte, disse-lhe que me ia inscrever no ginásio. "Faz o que te apetecer", respondeu. Ríspido, bruto. Disse-lhe que não se preocupasse, que não iria fazê-lo, que não precisava de ficar assim. "Faz o que te a-pe-te-cer!", repetiu, muitíssimo irritado.
Alguns dias mais tarde, quando visitei os meus pais antes de jantar, aproveitei para falar um pouco com a minha mãe. Estava sozinha com ela na cozinha. O meu pai estava por perto, mas na sala, entregue às suas leituras. A conversa com a mãe foi-se desenrolando e eu acho que precisava muito de desabafar. Acabei por me desfazer em lágrimas. Disse-lhe tudo o que sentia. Contei-lhe as minhas desconfianças. Falei-lhe das discussões com o Nelson. Ela, coitada, muito preocupada, mais não pôde fazer do que consolar-me, abraçar-me, pedir-me que me acalmasse, sugerir que talvez fosse só uma fase, que os homens são mesmo assim. "Alto!" O meu pai reagiu quando ouviu esta frase. "Alto lá, que os homens são cada um à sua maneira." Dobrou o jornal, levantou-se e veio ter connosco. "Amanhã, ao fim da tarde, vem aqui buscar-me." Não entendi. A mãe também não. Ficámos as duas a olhar para ele. Convicto, sereno, seguro, num tom de voz muito calmo, disse-me simplesmente "não vou fazer comentários nem me vou meter demasiado, mas vou levar-te ao sítio onde vais ver o que precisa de ser visto".
Lá fora, do outro lado do jardim, o senhor que, momentos antes, tentava acender o cigarro lutando contra o vento, tratava agora de endireitar as varetas do guarda-chuva. Não seria o seu dia de sorte. Nada parecia estar a seu favor. E foi então que as luzes automáticas do hall daquele prédio se acenderam. Eu e o meu pai ficámos em silêncio, um silêncio tenso, nervoso. À frente, uma mulher que eu nunca vi. Logo atrás, com a mão pousada na ilharga dela, o Nelson. Despedem-se com um beijo junto à porta, ainda do lado de dentro. Depois saem, ele numa direção, ela na direção oposta, entra na farmácia. Ele olha na nossa direção, abriga os olhos debaixo da mão, que faz de pala. Parece querer ver melhor o carro, certificar-se de que não é o meu. A chuva não o deixa ver bem. Desiste e começa a dirigir-se para o seu carro. O meu pai suspira fundo, abana a cabeça, mas não diz palavra. Eu choro e não consigo reagir. O meu marido continua a dirigir-se para o carro dele, abriga-se da chuva como pode. Eu sinto impulso forte, alguma coisa que me empurra por dentro. Abro a porta e grito, "Nelson!" Ele para e fica a olhar na minha direção, espantado. E eu, engasgada em lágrimas, grito como posso, uma vez mais, "Nelson!"
