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Histórias de Amor Moderno: “Foi numa dessas vezes que eu e o Michel nos aproximámos em demasia”

“Foi arriscado brincar assim com a líbido de adolescentes com as hormonas fervilhantes e a imaginação em brasa.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB / 'A Familia'
20 de julho de 2024 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

O professor Michel seguia atrás de nós no seu velho Opel Astra de dois lugares. Nós íamos num pequeno autocarro, éramos talvez trinta pessoas: cinco monitores, o resto miúdos e miúdas adolescentes como eu, do campo de férias. Eu e as minhas amigas gostávamos de nos empoleirar nos bancos traseiros do autocarro e de passar o caminho todo a fazer caretas e gestos e graçolas para o professor Michel que, sempre sorridente, com os dois cães enormes muito quietos no banco do pendura, abanava a cabeça como quem diz "que patetas". Eu adorava vê-lo, moreno, com um sorriso largo e muito branco, uns dentes perfeitos, muito alinhados, muito proporcionais, arrumados entre os lábios grossos daquela boca grande e bonita como teclas num piano.

O Michel andava sempre no seu velho Astra porque gostava de levar com ele para todo o lado as pranchas longboard. Do banco traseiro do autocarro, eu via-o aos solavancos, com os cabelos encaracolados castanho-dourado, de uma cor que o sol queimou e transformou em quase loiro. De lado, junto à porta do condutor, tinha um autocolante com a cara de uma mulher, uma silhueta. "É da Penélope", dizia-nos. Eu, que não sabia quem era a Penélope, certo dia perguntei-lhe "qual Penélope?" Riu-se.

"É uma discoteca em Benidorm. Era muito popular nos anos 90." Depois acrescentou "fui lá muito feliz, mas este autocolante não fui eu que o colei aqui, já vinha com o carro". Fazia parte, nos anos 90 usava-se muito, tratou de explicar.

O Michel liderava a equipa de monitores dos campos de férias de Castro Verde, que organizava em conjunto com outros professores da escola local. Todos os anos íamos percorrer o Sudoeste Alentejano e a Costa Vicentina. O plano, normalmente gizado pelo próprio Michel, tendia a ser muito simples: íamos para um certo sítio, montávamos acampamento e, depois, logo se via. Nesse ano, íamos até à zona da Zambujeira do Mar e, se tudo corresse bem e o tempo o permitisse, depois descíamos para sul, em busca das melhores praias e ondas. Era um plano genial. Uma regra importante para quem se inscrevesse nos Campos de Férias: tinha de gostar de surf e, mesmo que não soubesse pôr-se em pé numa prancha - eram longboards, daquelas grandes, não era

assim tão difícil -, tinha de ter pelo menos coragem para tentar.

Eu tinha 16 anos, como boa parte dos miúdos. Havia alguns, poucos, mais novos, com 15. E outros tantos com 17. Mas as idades não variavam muito. Entre a comitiva, e além das minhas melhores amigas, a Marisa e a Madalena, sobressaía um rapaz, que

se chamava Nuno. "Sobressaía" não é o termo mais apropriado. Ele existia e eu gostava de olhar para ele, mas na verdade ele não sobressaía nada, pelo contrário, diluía-se naquela amostra de multidão. O Nuno era muito giro e tinha estilo. Só que era demasiado normal. Tão normal que só dávamos por ele graças à sua beleza - mas depois, num instante, parecia que desaparecia, esquecíamo-nos de que existia. O Nuno gostava de mim e tentava estar perto de nós, do nosso grupo. Eu gostava que ele andasse por perto e gostava de olhar para ele. Por vezes sorria-me e eu sorria-lhe de volta, "tudo bem?", e ele acenava que sim, depois desviava o olhar e continuava a existir, mas sem convicção.

Na primeira noite, fizemos o que costumávamos fazer nas noites de acampamento: uma fogueira, as tendas dispostas mais ou menos em torno do fogo, a uma distância segura, comida nas mãos, tudo sentado no chão. E começavam as histórias. Nessa noite, o Michel quis que nos apresentássemos ao mundo, que nos revelássemos. Não apenas dizendo "olá, eu sou a Célia, tenho 16 anos, moro em Castro Verde e o meu pai é tesoureiro na câmara municipal", mas acrescentando qualquer coisa. Por exemplo, "já beijei três rapazes, mas nunca tive relações sexuais com ninguém" - não fui ao detalhe de assinalar que não estava a contar comigo mesma, porque, convenhamos, quem é que naquele grupo de adolescentes não o fazia?

"Começo eu", disse o Michel. "O meu nome é Michel, nasci na Suíça, o meu pai é português e a minha mãe é belga." A audiência reagiu, "conta mais, conta mais". "Vim para Portugal com 14 anos e vivi sempre ao pé do mar, até vir para o interior do Alentejo há quatro anos." E depois rematou: "Primeiro morei em Peniche, e logo nesse verão aconteceram-me duas coisas fabulosas, consegui pôr-me de pé numa prancha de surf e… AH AH AH AH perdi a virgindade com a surfista que me ensinou a surfar." Toda a plateia enlouqueceu, houve assobios, urros, palmas, gargalhadas, gente boquiaberta - os outros monitores, claro, mas até esses acabaram a rir e a partilhar connosco quem eram. No meio da balbúrdia, os cães do Michel, confusos e assustados, desataram a ladrar e não paravam, de um lado para o outro, como se quisessem mas não conseguissem perceber o que se passava.

Daí em diante, foi um desfilar de apresentações, umas mais, outras menos arrojadas. Quase todas continham os mesmos ingredientes e consistiam numa pequena apresentação genérica da pessoa, seguida de detalhes mais privados e possivelmente picantes. A noite foi divertida, mas acredito que foi arriscado brincar assim com a líbido de adolescentes com as hormonas fervilhantes e a imaginação em brasa.

Nos dois dias seguintes, mantivemo-nos naquele lugar, mas na noite do terceiro dia, o Michel disse "amanhã de manhã vamos embora, estas ondas não estão boas aqui". Rumámos a sul, nós no pequeno autocarro, o Michel na Opel Astra com a Penélope e os dois cães. Parámos na Praia do Amado. "Aqui parece-me que está bom." Montámos tendas por trás da praia, num dos desfiladeiros. O cenário era perfeito. À noite, à volta da fogueira, alguns já estavam cansados. O Michel desafiou então os mais despertos

para um passeio noturno, "tragam lanternas, mesmo, não venham só com os telefones". Eu fui. Eu e mais umas cinco pessoas, talvez. Mas eu queria ir e estar ao pé do Michel. E acho que ele não se importava que eu estivesse por perto.

Durante a caminhada, passámos pelas dunas e pelo areal, mas sem nos chegarmos demasiado perto da rebentação - "isto à noite é um perigo, se a onda puxa, não sabemos onde estamos". Os cães iam connosco e começámos, eu e o Michel, a brincar com eles, atirando paus para eles irem buscar no escuro. E eles, incrivelmente, lá iam e conseguiam achar os paus. Às vezes demoravam mais tempo. E foi numa dessas vezes que eu e o Michel nos aproximámos em demasia. E beijámo-nos. "Eu devo estar louco", disse ele, e eu "schhhh", e beijei-o de novo.

Foi tudo muito rápido. Quando demos conta, já estávamos deitados na areia, a mão dele dentro dos meus calções. Não conseguia ver perfeitamente a expressão dele, porque desligámos as lanternas. Só as estrelas e o luar nos emprestavam uma luz mínima para que víssemos os suficiente. O resto, encontrávamos pelo tato. E era assim que estávamos quando um dos cães se aproximou de nós a arfar, trazendo um pau. Só que atrás do cão vinha o Nuno com a lanterna apagada. Quando a acendeu, já bem perto de nós, o Michel mexia em mim como eu nunca tinha sido mexida. Só me ouvia respirar muito profundamente, só me sentia evaporar, cheia de calor, a ferver. "Nuno?", balbuciou o Michel. "Stôr?", estranhou o Nuno, franzindo o sobrolho. E eu em êxtase, "não pares", foi tudo o que consegui dizer, mas o Michel levantou-se, arranjou-se, abanou a cabeça e só dizia "Nuno", e abria os braços, como se dissesse "epá, tu não me estragues a vida", ou então "isto foi só um descuido, não sei o que me passou pela cabeça". E pela minha cabeça só passava o "não pares", eu só pensava "faz-me tudo". Mas não aconteceu mais nada.

Na manhã seguinte, tentei aproximar-me do Nuno. Tentei explicar-lhe o que aconteceu, que tinha sido culpa minha, que eu fora a ninfeta do professor e que ele, coitado, caíra na tentação. Pedi-lhe que não contasse a ninguém. Nunca. Para a vida toda. Que isso podia trazer problemas graves, tanto a mim como ao professor - mas especialmente para o Michel, porque eu era só uma adolescente a quem tudo se perdoa e tudo se esquece daqui a uns tempos, mas ele não, ele tinha responsabilidades. O Nuno ouviu e ouviu e foi ouvindo. Não dizia palavra. Até que, por fim, disse: "Não digo nada, mas então faz aquilo tudo comigo."

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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